.Por Eudes Cardozo.

Essas verdades não precisam ser jogadas na cara dos homens. Elas não pretendem entusiasmar. Nós desconfiamos do entusiasmo.” (Fanon)

O que se pretende aqui não é uma crítica aos elementos artísticos da obra cinematográfica, uma vez que o pobre autor destas linhas não está (nem se julga) capacitado para tanto. Os elementos e componentes estéticos pertinentes ao fazer artístico devem ser consultados em veículos especializados e de preferência por peritos. Enquanto opinião, que não altera o resultado obtido pelos produtores e realizadores da peça, cabe um elogio ao conjunto da obra e principalmente ao ator Joaquim Phoenix que apresenta um personagem de quadrinhos como nunca antes um filme adaptado dos quadrinhos conseguiu apresentar, e isso em uma obra que se propôs a não ser uma mera caricatura dos quadrinhos. Baita filme! Um clássico do cinema sem dúvida, porém sem entusiasmo.

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A proposta deste tratado é uma crítica a crítica dos espectadores da obra, comentários históricos/sociológicos com uma pitada nerd acerca dos comentários “sociológicos” suscitados pelo publico após a audiência do filme.

Um filme reacionário ante uma hegemonia reacionária

É preciso antes de avançarmos sobre o personagem caracterizarmos o ambiente (Universo) onde este se insere. Coringa pertence á galeria de vilões do super herói Batman/Bruce Wayne. Um milionário excêntrico detentor de um monopólio industrial e financeiro na fictícia Gotham City (Manhatan? Los Angeles? Nova York?), a exceção da maioria dos super heróis de sua editora (DC Comics), Batman não possui um super poder, uma alteração genética que lhe confira força sobre humana, uma origem alienígena que lhe permita fritar ou cozinhar outro ser humano com sua visão de calor ou nada do tipo, o super poder de Batman/Bruce Wayne são suas habilidades físicas ao nível de um atleta olímpico, domínio de variadas e distintas artes marciais e um arsenal bélico/tecnológico sempre à sua disposição para o enfrentamento do crime e realização da justiça, o super poder de Batman na realidade é o dinheiro, pois este, herdado de seus pais e não adquirido através de suas habilidades, foi o instrumento e insumo para a aquisição de suas habilidades. É importante um grifo neste realização da justiça, pois mais adiante veremos como este paradigma sempre impreciso vai à lona com o novo clássico da Warner.

O que é um super herói? Via de regra, porém com confortáveis e vastos desvios, um super herói tem nacionalidade, são geralmente norte americanos, brancos, patriotas – sendo patriotas mesmo quando negros; vide: All Simons/Spawn – e personificam além do bem, a abnegação do uso de seus super poderes para si pela prática da “salvação da humanidade”. Nenhum dos super heróis nos padrões editoriais Marvel e DC, agraciado com a bem-aventurança de seus dons cogitou sua utilização para o enriquecimento pessoal. E isso faz deles super heróis, a disrupção da ordem, a deposição dos regimes políticos vigentes em seus países (invariavelmente os EUA), a política externa ou as relações entre o poder publico e população não figuram entre as prioridades dos super heróis. O que temos é a recusa voluntária da utilização de seus poderes em benefício próprio sendo o maior dom de qualquer super herói. Os que desviam, são remanejados (rebaixados) para a categoria de super vilões, simples assim. Não só simples como também útil, afinal de contas não haveria necessidade de super heróis para combater criminosos comuns. Mudar o mundo na concepção de um super herói dos quadrinhos é exatamente manter tudo em seu lugar, lutar contra invasões alienígenas e super vilões. Alterar as estruturas de mando e sociabilidade são tomadas como desvio, uma fuga da norma social estabelecida, é tomada por crime. Joker é um filme de vilão, um vilão que corresponde ao universo de um super herói. Sem compromisso em destruir estes padrões e concebido e proposto para estes moldes.

Destaque-se que como apontado anteriormente existem, sim, confortáveis e vastos desvios e fugas à regra, porém mesmo nos anti-heróis como em The Boyz de Garth Ennis e Darick Robertson, é a equipe de Billy quem faz o contrapeso, atuando como um desvio de princípios válido ante os desvios morais do grupo de heróis desviantes: Os Sete.

Traçado o perfil e estereótipo dominante e vigente de super herói, passamos também pelas linhas gerais de seus antagonistas, o completo oposto ao super herói padrão é o super vilão. Volvemos ao Coringa.

Nas histórias em quadrinhos da DC Comics, Coringa ocupa um papel central na galeria de vilões da editora, rivalizando e disputando o papel de antagonismo até mesmo com Lex Luthor, o milionário do “mal” e vilão central das histórias em quadrinhos do Superman. O que temos nestas disputas, seja na linha temporal oficial; seja nos arcos atemporais, é um duelo entre Coringa e Lex Luthor pelo papel de principal vilão da DC, sem que se estabeleça com precisão quem de fato ocupa o posto. Ou seja, o filme em questão não é meramente um filme sobre a loucura, uma crítica a desordem social e uma disputa de narrativas sobre os caminhos e descamimhos do capitalismo como pretendem alguns – infelizmente muitos – é, antes de qualquer coisa e ainda que seja tudo isso, um produto, uma marca da DC/Warner inserida em uma disputa de mercado.

Por seu papel central em todo o Universo da DC Comics, por mais que se prenda a narrativa de origem de um único vilão a trama de Joker está atrelada necessariamente a uma rede de eventos e ações maiores e repleta de outros significantes que, muito antes de engendrarem seus distúrbios mentais, compõe o tecido das histórias do Batman. Para simplificar: qualquer história do Coringa é uma história do Batman. Ainda que desfrute de um papel de protagonismo dentre os vilões, Coringa, Lex Luthor, Flash Reverso, Gorila Grod e congêneres serão sempre coadjuvantes, pois histórias de super heróis narram a mesma ancestral verdade dual, judaico/cristã ocidental do bem contra o mal. Coringa é, mesmo em seu próprio filme, a personificação do mal a ser combatida pela personificação do bem.

A personificação do Mal

Nas Histórias em Quadrinhos do Batman a hipótese de causa da existência do crime sempre foi abordada, ainda que sem profundidade, por diversos matizes, em diversas histórias e por outros vilões com maior destaque até mesmo para o “Anarquia/Lonnie Machin” que para o Coringa. A possibilidade de a desigualdade social estar por trás da onda de violência em Gotham, que além de policiais detém um amplo panteão de vigilantes sem nunca obter êxito em erradicar o crime, sempre figurou nas páginas da DC. Coringa e Batman mais que antagonistas ora são equivalentes, ora coexistem em uma relação simbiótica, ora se retroalimentam. Para mais ou para menos sempre há a vitória de Bruce Wayne, o triunfo de Batman mesmo com percas significativas, representa a vitória da moral contra a degeneração, a supressão da loucura pelas virtudes da sanidade, o autocontrole contra a destemperança. Este, por mais elementos que sejam incluídos pelos hiper criativos roteiristas, será sempre o eixo da saga. De um lado o Batman: o cavaleiro que se amalgamou às trevas para realizar a “justiça”, representa o bem, a virtude; do outro o Coringa: a degeneração social, o malfazejo, o vingador inescrupuloso. E por último, e mais importante após o último filme, a turba, a desordem, o caos, que por mais justificável seja, não é capaz de ofertar um regime melhor em oposição ao que confronta, desnuda e combate.

Coringa/Arthur Fleck, por mais porradas que tenha tomado da vida, ao longo do último mês, na ultima semana ou mesmo em um único dia, é o mal, o mal a ser vencido, suprimido e erradicado ao seio da sociedade, a personificação de um individuo a ser responsabilizado pelo caos coletivamente engendrado.

Na Cara sim!

Ressaltando que não haveria ramo de desenvolvimento da história de um antagonista sem menção ao seu rival: o herói, seria impossível a exclusão do núcleo Wayne da trama. Se Batman não se faz presente em corpo e máscara durante o filme, o núcleo desencadeador de sua origem enquanto super herói, o seu rito de iniciação foi primordialmente apresentado, bem como o personagem Zorro, no qual se inspira. E é aqui que toda a histeria propagada via redes sociais sobre um personagem subversivo se encerra. O Coringa redentor resta morto, feneceu junto aos corpos dos progenitores do herói. O caos desencadeado, a revolta das massas, a violência divina que seu último ato diabólico fez brotar não tem controle.

Thomas Wayne representa o poder financeiro, as grandes corporações, a oligarquia tomando as rédeas da política que sempre conduziu, mas escancarando tal condição, o capital em sua face mais cristalina. Não se importa com o comportamento depravado de seus associados e investidores, não se importa com a má sorte de seus subalternos, não se importa com nada além do lucro. O comportamento dos cidadãos/palhaços não lhe diz respeito, os infortúnios da sociedade lhe asseguram estabilidade e lucro. O destino cruel de uma antiga empregada não lhe impede de retornar ao assento para acompanhar o fim da peça teatral no conforto de seu camarote. “Que comam brioches.”

E isso é uma crítica aguda ao capital? Um ataque direto ao modo de vida da sociedade norte americana? Vejamos: a tomada de cena mantém o status quo, o personagem que buscava vingança, reparação ou apenas um abraço recebe um soco. O mundo não é justo, Thomas Wayne não é seu pai, sua mãe possui um distúrbio psiquiátrico grave, parte de seus transtornos foram desencadeados pela neura atipicidade de sua mãe. Arthur se decide por tomar as rédeas de sua vida. Não está em seus planos uma revolução social, não é nem nunca foi cogitado pelo assassino acidental do metrô um levante contra o sistema, as circunstâncias que o levaram até ali podem agora de algum modo ser usadas ao seu favor, mas não há tempo. A polícia está em seu encalço, sua esquizofrenia foi desvelada, sua epilepsia gelástica é um meme (talvez um meme, assim como o vídeo vazado, sendo um furo no roteiro sem espaço no período abordado), há um corpo em seu apartamento. Não há nada a perder, a não ser a possibilidade de uma vingança e desta vez bem executada. Notem, com a corda no pescoço, sem a mãe, sem a amada imaginária, sem medicações e sem chance alguma. O agora vilão de fato é agraciado com as luzes e o palco que buscou incessantemente.

Ser notado, objetivo menor ao personagem tão complexo, é agora possível. Porém, o mundo “normal” e palpável, não é mais acessível a Arthur Fleck neste ponto. A sociedade que normatiza e normaliza as relações não se mostrou mais sã que o personagem ao longo de toda trama, mas ainda sustenta regras e decoro. Suas contradições foram esmiuçadas, evisceradas e expostas. Ante o descontentamento popular emerge a fria figura de Thomas Wayne, o salvador encarnado em uma mórbida persona inumana, incapaz de enxergar seus erros ou os erros no sistema vigente, um mantenedor do status quo. Os vícios e a falta de escrúpulos desta casta representada pelos Wayne são também expostos, o velho mundo desmorona, há fissuras graves em sua estrutura.

É o fim. Das cinzas desta implosão social desencadeada involuntariamente pelo Coringa deve emergir algo novo. Será? Voltemos ao Zorro, ao mito de criação, ao Genesis de Batman. Bruce Wayne se encontra ali, exposto, frágil e ameaçado. Incapaz de compreender os reveses da vida de Arthur, Bruce está estático frente ao revés que irá resignificar toda sua vida. Na contra mão dos que vislumbram nisso algo “revolucionário” está uma propaganda anti-subversão mil vezes maior que a escancarada pela segunda temporada de Stranger Things. O filme adulto se utiliza de duas crianças para dialogar sobre os riscos de uma convulsão social. Sobre o perigo da anarquia, os custos da revolta, o preço da rebelião.

O alto preço da desigualdade e da falta de possibilidades velou o sono do menino Arthur ao longo de sua vida miserável, o fez frio, suscetível ao azar, exposto sempre ao pior do mundo. O alto preço de uma revolta popular deixou o menino Bruce órfão. O menino Arthur, pobre vitima de tragédias sociais é redimido pelo rico menino Bruce, este não é culpado pela riqueza que herda, não tem parte no cinismo do pai, e como sabemos virá a ser o herói de Ghotam, irá conduzir sua revolta e não se deixar levar por ela. O Arthur adulto é irrecuperável, foi corrompido pela revolta. A vingança, discreta, mas presente nos olhos do menino Bruce se apresenta.

Justiça, como todos sabemos é o pretenso objetivo buscado por Batman em sua longeva epopéia, mas não mais após a tragédia, após o caos desmedido e sem controle. Seu pai fora um escroto. Sim! Mas e daí? A Wayne Corps é um monopólio ganancioso e frio? Sim também, mas e esse novo mundo? Será mesmo melhor que a ordem prestes a ruir? Um mundo que em seu parto assassina com frieza os pais de um garoto indefeso sem dizer a que veio. O menino Wayne não merece vingança mais que justiça? A vingança de Fleck atingiu seus objetivos? Fleck merecia mesmo uma vigança?

Lembremos que antes de ser aclamado como líder do levante, não houve planejamento algum por parte do Coringa, atônito pelo resgate não esperado e desnorteado pela batida na viatura o vilão desperta altivo. Pronto! Maior que nunca e ciente de sua potencial potência. O espontaneismo tão aclamado pelos pós modernos e libertários está ali, legitimo, porém sem propósito, sem rumo ou programa; desprovido de critica e de possibilidades, desvairado e sem norte como riso do Coringa. A ruptura com a norma social estabelecida foi apresentada, de suas cinzas emerge um monstro incapaz de controlar seu próprio riso. O desvio moral e ético está aí, o que surge após a ruptura é estarrecedor. Contra a democracia falida, outra democracia se faz necessária. Ainda que esta por sua vez venha novamente a ruir. Mas virá?

Corte. Asilo Arkham, possibilidade já aventada anteriormente como destino fatídico do vilão. O mundo retorna ao seu “normal”. As pessoas vivem o seu normal cotidiano, Coringa está preso. Prisões apresentadas como aterrorizantes até então, agora mais que necessárias são precisas. Não é necessário dizer que a “paz” foi restabelecida. A ordem reina, seus agentes a restabeleceram, outras revoltas virão, e serão prontamente contidas. O vilão está preso, o “mal” se foi, um Super herói nasceu. Pronto para restabelecer o “equilíbrio” sempre que preciso, trará a todos “justiça”, manterá suas vastas posses e quando preciso… Trará a vingança. A merecida vingança contra aqueles que ousarem fazer ruir o mundo.