Renato Souza, que estudou o programa Future-se para participar de um debate no próprio MEC (Ministério da Educação), aponta em alguns tópicos o que significa o projeto do governo Bolsonaro (PSL).
A análise de Renato Souza tem 6 pontos. O primeiro é sobre a lógica de risco dos mercados de capitais que poderão controlar a administração dos IFETs (Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia). Veja o primeiro ponto:
Por que devemos ser contra o FUTURE-SE
.Por Renato Souza.
Recentemente fui convidado a debater o Future-se, do MEC, em evento na minha universidade, com um debatedor favorável ao Projeto. Obriguei-me a sistematizar minhas críticas, que agora repasso aqui, tentando ser o mais objetivo possível e ao mesmo tempo sem perder a profundidade que o tema requer. Meu debatedor falou o tempo todo que o Future-se levaria a uma gestão mais eficiente dos recursos e que a lógica empresaria imposta pelo Projeto qualificaria os serviços prestados pela Universidade, notadamente a formação profissional, vista por ele como uma mercadoria a ser entregue aos consumidores/estudantes e ao mercado de trabalho.
Assim, vou pontuar minhas divergências com o Future-se uma a uma abaixo, mas antes, preciso estabelecer a premissa de Universidade que tenho em mente, que não é mesma da Universidade-empresa daqueles que defendem o Projeto.
Na minha concepção, a Universidade não é apenas um local de formação profissional, embora esta também seja sua atividade fim, e tenha de ser de qualidade. Mas mesmo neste quesito, não precisaríamos do Future-se nem de uma gestão empresarial/corporativa, pois o modelo atual das universidades públicas garante a melhor qualidade no ensino superior do país, superando com folga os modelos privados pelas avaliações do próprio MEC e avaliações internacionais.
Além da formação profissional, sobretudo em um país com profundas desigualdades sociais como o Brasil (das maiores do mundo) e défcits históricos de desenvolvimento humano (dentre os piores do mundo), a Universidade tem um papel fundamental de fomentar o desenvolvimento econômico, social e cultural, e de oferecer oportunidades iguais a todos, de ascensão social e ocupação dos melhores postos de trabalho e melhores posições sociais, coisas que só o ensino superior, e não a educação básica, pode proporcionar.
Mas a universidade é também um repositório de conhecimentos, e uma espécie de “guardiã” do patrimônio intelectual e cultural da humanidade (científico, tecnológico, filosófico e artístico), que por ser um patrimônio intangível e em boa medida incrustado na própria sociedade, não cabe a um museu. Nenhuma outra instituição tem o compromisso com este patrimônio que a universidade tem, não só de guardar, mas de estudar, discutir, transmitir e formar pessoas capacitadas a lidar com ele, zelar e utilizá-lo em benefício da própria civilização.
Por fim, a universidade é lugar de produção de conhecimentos e
pensamento crítico, autêntico e autônomo na sociedade, sem os quais a
ciência, a filosofia, a economia e a sociedade não teriam chegado ao
ponto que estamos hoje.
Vou tentar mostrar que, na verdade, o Future-se não dá respostas para
nenhuma destas atribuições fins da Universidade. Ao contrário, sua
lógica, concentrada na conversão da instituição universitária à lógica
do mercado imobiliário e financeiro rentistas, reduz ou elimina as
possibilidade das universidades cumprirem qualquer destas funções.
E por que? Bem, vou discutir isso a seguir, a partir de uma análise da Minuta do Projeto disponível às universidades brasileiras.
1- O Future-se é um projeto essencialmente privatista
E ele é privatista de uma maneira tão perversa como nenhum outro já foi ou seria caso pensasse com uma lógica minimamente universitária. Na verdade, ele praticamente estingue as IFES como instituições públicas, e mesmo como instituições acadêmicas.
Antes vamos estabelecer uma premissa: não podemos confundir público com gratuito, nem privado com pago. Há instituições públicas que são pagas pelos usuários, como bancos estatais e a própria previdência social, assim como empresas privadas que oferecem certos serviços gratuitos, como o Facebook, Youtube e Shoping Centers.
Portanto, privatizar as IFES não implica torná-las pagas, e o Future-se não prevê isso, ao menos num primeiro momento. Privatizar é submeter instituições de interesse público, que tem todas aquelas funções intangíveis e civilizatórias de que tratei no início deste texto, a uma lógica privada de valorização do capital via mercado, e é isso que o Projeto propõe.
A lógica do Future-se é terceirizar a gestão das universidades e IFETs e mesmo as atividades fins, de ensino, pesquisa e extensão, para entidades privadas chamadas Organizações Sociais (OSs), empurrando-as para uma lógica de mercado não apenas inconsequente, pois oportunista, especulativo e de curto prazo, como também totalmente incompatível com a visão de universidade expressa acima.
E não se engane com o nome Organização Social, como se fossem organizações que representam algum interesse social. Sequer são empresas que teriam algum interesse em vender a mercadoria “ensino”, por exemplo, pois o Projeto não prevê a cobrança de mensalidades, exceto em cursos de especialização.
Na verdade, no âmbito do Future-se, as OSs são fundos de investimento que gozam de alguns privilégios fiscais, e cujos recursos são provenientes de diversas fontes, porém, com predomínio de fontes rentistas. Das 12 fontes de recursos previstas para os fundos, oito são oriundas do chamado rentismo (rendas não ligadas à produção de algo), ou seja, rentabilidades financeiras de capital, aluguéis, direitos de propriedade, etc.
A lógica de privatização do future-se, portanto, é uma lógica financeira e imobiliária, e o “mercado” que pautará as ações nas universidades, do qual fala o Projeto, será o mercado de capitais. Por exemplo, no Art.11 da Minuta, quando diz que as IFES participantes deverão “implementar programas de integridade e de gestão de riscos corporativos”, e “adotar códigos de autorregulação reconhecidos pelo mercado”, é deste mercado, e dos riscos deste mercado que se trata.
Por certo, serão programas e códigos privados tão eficazes como os que sucumbiram à crise de 2008 no mercado de capitais mundial, em que as próprias agências de classificação de risco faliram, e os bancos foram salvos com recursos do Estado.
Submeter as universidades à logica do mercado de capitais, um mercado puramente oportunista, especulativo, volátil e de curto prazo, é muito mais grave do que se decidissem cobrar mensalidade dos alunos, mas preservassem o sentido original das instituições acadêmicas. (Do GGN)