Em São Paulo – De 10 de outubro a 02 de novembro de 2019, fica em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade, o espetáculo teatral “A morte de Ivan Ilitch”, da obra de Liev Tolstói.

(Foto: Divulgação)

Ao longo dos seus 15 anos de carreira, junto ao Núcleo Caixa Preta de Teatro, a atriz Cácia Goulart tem enveredado por um proposta teatral cujos conteúdo e forma propõem estruturas dramatúrgicas não convencionais, pondo em xeque o sentido tradicional das narrativas. Não por acaso, mais de uma vez o grupo teve a literatura como fonte de palavras potentes que, associadas à expressão teatral, traziam à tona os temas mais pungentes da condição humana, estabelecendo um ponto de contato em que se atualizavam e dialogavam com o público. Assim foi com Bartleby, de Herman Melville, sucesso de crítica ao longo dos anos em que esteve em cartaz em diversas salas brasileiras.

Em trabalho solo, Cácia Goulart redescobre em um clássico literário tema e abordagem que tocam de perto o homem do nosso tempo. Tão de perto, aliás, e tão incômodos, que não se tem feito mais do que interditá-los, condenando-os a uma zona de silêncio e de cinismo: o nosso tempo é relutante em admitir a própria finitude; morrer ou falar da morte é “improdutivo”. Disposta a tratar honestamente da questão, tocando nesse calcanhar de Aquiles da pretensa autossuficiência do homem contemporâneo, Cácia se desdobra na atuação, direção e dramaturgia do novo espetáculo, A Morte de Ivan Ilitch, baseada no clássico homônimo do escritor russo Liev Tolstói a partir da tradução de Boris Shnaiderman. O mais famoso moribundo da literatura universal vem então se juntar à galeria de homens infames que a atriz costuma dissecar nos palcos.

Se na novela em questão as personagens secundárias não têm vida própria e, servindo às vezes de projeções da personagem principal, intensificam a solidão e a impotência do protagonista, funcionam também como alegorias de um tipo de comportamento esvaziado de qualidades humanas. Sendo assim, “esposa”, “filhos” e “amigos” jamais aparecem em suas singularidades de sujeitos, mas na mera abstração de um papel que desempenham num sistema que burocratiza a vida desde o cotidiano. Nesse quadro é que se emoldura a trajetória de Ivan Ilitch, e se apropriando desses artifícios que isolam e põem em relevo o seu destino, é que Cácia Goulart se propõe colocá-lo em cena, em sua densidade própria, na desafiadora forma de monólogo.

Para tanto, nesta livre adaptação dramatúrgica assinada em parceria da atriz com Edmilson Cordeiro, o espetáculo se serve de dois planos paralelos e complementares em que narrativa e interpretação se ajustam e tensionam, evidenciando os múltiplos aspectos em que tema e enredo estão implicados. O primeiro plano é o da atriz em cena, enunciando as bases da trama ou jogo cênico em vias de armar-se, sinalizando com habilidades e recursos narrativos a contextura de uma história que se desenrola. O segundo plano, solidário ao primeiro, é quando os desdobramentos da narrativa forçam a intensificação do ponto de vista ou conflito da personagem, desembocando na figura de Ivan Ilitch posta em cena por força da interpretação – é a fusão entre atriz e personagem. A descrição dos conflitos interpessoais do enredo encontra, na abertura de uma dramaturgia assim concebida, a possibilidade de evocar personagens secundárias, através de recursos cênicos ou narrativos diversos, convertendo-as em meras fantasmagorias de um fluxo de consciência cada vez mais delirante. O que vemos é uma atriz servindo de passagem para vozes e disponibilidades corpóreas que se modulam às exigências de cada movimento narrativo, em diferentes níveis do monólogo. Aprofundam-se o ponto de vista e as afecções da personagem, mas em diálogo com o ponto de vista da atriz, que também é sujeito e autora da trama. Obtém-se assim, numa oscilação entre o lírico, o épico e o dramático, um efeito de distanciamento crítico de significados múltiplos, em franco diálogo com o público, sem hermetismos. A plateia é convidada a experienciar a obra, como testemunha ou como quem toma partido no cortejo ora fúnebre ora sarcástico dos familiares, amigos e servos, ora por perspectivas que também se multiplicam: solidárias, patéticas, irônicas, poéticas, etc.

A novela A morte de Ivan Ilitch, de Liv Tolstói (1828-1910), é considerada universalmente a mais perfeita obra do gênero do século XX. Publicada no ano de 1866, a trajetória exemplarmente medíocre de um burocrata entre as cartas marcadas dos “pequenos poderes” burgueses, do caruncho do cotidiano familiar e amoroso, da extenuante e ao mesmo tempo sublime meditação sobre a culpa e a morte, do corpo-consciência do ser humano como labirinto de si mesmo, foi imediatamente alçada ao posto de parábola universal. Dissecando a alienação burguesa emergente na Rússia do final do século XIX e a profunda cisão entre o homem e a sua essência, decorrente da reificação avassaladora de um sistema que barganha liberdade por bens materiais, perdura até os dias de hoje na sua plena potência literária. Segundo Boris Schnaiderman, cuja tradução para o português serve de base para a adaptação do espetáculo, trata-se de “uma dessas obras que convidam à veneração”, ao lado de Sonata a KreutzerAnna Kariênina e Guerra e Paz, outras três obras-primas do gênio russo.

Ao mobilizar um aparato literário sofisticado em torno da trajetória patética de um homem mediano, tornado moribundo no auge da sua ascensão nas engrenagens de um judiciário burocrático, e ao enfatizar a agonia incessante desse homem que descobre a morte em si mesmo alojada, o autor põe em movimento um assombroso exame de consciência que pouco a pouco põe por terra toda sorte de farsa que reveste e sustenta a representação social e ontológica que temos de nós mesmos.

Hoje, ao raiar do século XXI, tributário de uma longa construção política e filosófica pautada no progresso, ao mesmo tempo em que se consolidam as críticas mais contundentes a essas crenças desde meados do século passado, a triste figura de Ivan Ilitch se impõe e se atualiza como o reflexo espectral do homem contemporâneo. Porque o imperativo burguês triunfou em proporções planetárias, e o homem aí produzido se instituiu, se reproduziu e foi naturalizado. É a este homem, portanto, alojado em cada um de nós, que Ivan Ilitch insiste em provocar, exortando-nos, pelo seu testemunho de moribundo, a uma tomada de consciência radical sobre a vida que nos foi legada e sobre a que pretendemos legar.

SINOPSE: Trajetória patética de um homem mediano, tornado moribundo no auge da sua ascensão nas engrenagens de um judiciário burocrático.

A morte de Ivan Ilitch, de LIEV TOLSTÓI

De 10 de outubro a 02 de novembro de 2019

Quintas e sextas às 20h e sábados às 18h

Ingresso: GRATUITO (retirar com 01 hr de antecedência)

Drama |14 anos | 90 minutos

Oficina Cultural Oswald de Andrade – Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro Telefone: (11) 3222-2662

FICHA TÉCNICA

Livre adaptação a partir da tradução de BORIS SHNAIDERMAN- Editora 34

Dramaturgia: EDMILSON CORDEIRO e CÁCIA GOULART

Direção e atuação: CÁCIA GOULART

Assistente de Direção: INÊS ARANHA

Cenografia: ANDRÉ CORTEZ

Desenho de Luz: LÚCIA CHEDIECK

Música original: MARCELO PELLEGRINI

Figurinos/Visagismo: MARINA REIS

Fotografia: CACÁ BERNARDES

Idealização: CÁCIA GOULART

Assessoria de Imprensa: RAFAEL FERRO

Realização: NÚCLEO CAIXA PRETA DA COOPERATIVA PAULISTA DE TEATRO de SP

(Carta Campinas com informações de divulgação)