Em São Paulo – A Companhia de Teatro Heliópolis realiza até o dia 19 de maio temporada de sua nova montagem,(IN)JUSTIÇA, na Casa de Teatro Maria José de Carvalho (sede do grupo). A encenação é dirigida por Miguel Rocha, fundador e diretor do grupo; Evill Rebouças assina o texto que foi criado em processo colaborativo com a Companhia.

(Foto: Caroline Ferreira)

(IN)JUSTIÇA é um ensaio cênico guiado pela indagação ‘o que os veredictos não revelam?’, que reflete sobre aspectos do sistema jurídico brasileiro. Para tanto, conta a história do jovem Cerol que, involuntariamente, pratica um crime. A partir daí, surgem diversas concepções sobre o que é justiça, seja a praticada pelo judiciário ou aquela sentenciada pela sociedade.

Permeado por imagens-sínteses (característica da Companhia de Teatro Heliópolis) e explorando a performance corporal, o espetáculo coloca em cena a complexidade da justiça no país, deixando a plateia na posição de júri em um tribunal. O embate entre os dois lados da justiça – da vítima e do criminoso – se estabelece em um jogo contundente que expõe com originalidade a crua realidade dos jovens pobres e negros. A música ao vivo confere ainda mais densidade poética ao ‘relato’, que foge de qualquer abordagem clichê.

A história de Cerol é contada de forma não linear. Exímio empinador de pipas, ele vive com sua avó, pois a mãe morreu no parto e o pai, assassinado. Depois de uma briga por conta do alto volume da música na vizinhança, Cerol foge e acaba disparando involuntariamente um tiro em uma mulher, que morre em seguida. Ele acaba preso e é submetido ao julgamento da lei e da sociedade.

Com base nesse argumento, a Companhia de Teatro Heliópolis discute direitos humanos à luz da Constituição Nacional. A encenação recupera também a ancestralidade brasileira em passagens ritualísticas. “Queremos pensar o homem negro e a justiça, desde a nossa origem até os dias de hoje”, afirma o diretor Miguel Rocha.

Cenas impactantes e desconcertantes surpreendem todo o tempo. A encenação de Miguel Rocha, alinhavada pela dramaturgia de Evill Rebouças, mostra como a democracia pode ser manipulada. O crime versus a vítima ou o criminoso versus a justiça aparecem de forma não superficial nem previsível. A abordagem de (IN)JUSTIÇA parte do ponto de vista mais íntimo para aquele mais coletivo: da comunidade para a sociedade, da moral pessoal às convenções sociais. Isso permite, igualmente, as leituras de um mesmo caso jurídico, como no julgamento – defesa e promotoria -, onde ambos os discursos são tão contundentes quanto convincentes. “Para falar de justiça, temos que falar das relações humanas contraditórias, pois a justiça se apresenta pelas contradições”, reflete o diretor.

Permeado por emoções e sensações que fogem da obviedade, o espetáculo tem quadros coreografados que trazem o respiro necessário à dinâmica da encenação: cidadãos urbanos, policiais, advogados com suas togas desfilam pela área cênica e hipnotizam o espectador. Os depoimentos inseridos nas cenas humanizam e tornam crível a proposta da montagem, sejam eles densos, desconcertantes, ou mesmo lúdicos. Segundo o diretor, os três pontos de vista sobre justiça – “o pessoal, o divina e o do homem” – são considerados na concepção de (IN)JUSTIÇA, bem como a máxima que diz “só quem passou por uma injustiça sabe o que é justiça”.

O cenário (Marcelo Denny) situa a força da ancestralidade, presente na terra e no terreiro, na força fria do zinco, na estética religiosa que foge dos estereótipos. Traz também o símbolo da lentidão da justiça com toda sua burocracia em pilhas e pilhas de papéis e processos. Elementos como areia, terra, projéteis de bala e pipas compõem a área de encenação, onde predomina a cor cinza. A trilha (de Meno Del Picchia) e os efeitos sonoros são executados em sincronismo com as cenas. Os atores interpretam cantos de tradição que reforçam a busca pela humanização e pela ancestralidade propostas pelo espetáculo.

(IN)JUSTIÇA nasceu de um longo processo criativo, iniciado em fevereiro de 2018, disparado por encontros dos integrantes da Companhia de Teatro Heliópolis com pensadores ativistas que falaram sobre os vários aspectos da Justiça. Os convidados foram Viviane Mosé (filósofa), Gustavo Roberto Costa (promotor de justiça), Ana Lúcia Pastore (antropóloga) e Cristiano Burlan (cineasta), tendo Maria Fernanda Vomero (provocadora cênica, jornalista e pesquisadora teatral) como mediadora.

O espetáculo integra o projeto Justiça – O que os Vereditos Não Revelam, contemplado pela 31ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

Uma reflexão sobre o espetáculo

Durante o processo de pesquisa do projeto anterior da Companhia de Teatro Heliópolis, Microviolências e Suas Naturalizações, contemplado pela 28ª edição do Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, o grupo se debruçou sobre as pequenas violências do dia a dia, naturalizadas pelo hábito e mantenedoras de uma opressão quase sempre silenciosa. Constataram que as lideranças do tráfico em Heliópolis exercem sua autoridade, entre outros métodos, por meio dessas pequenas violências e as perpetuam em prol de um ‘bem-estar’ local. Constataram então que o poder paralelo na favela, de certa forma, reproduz a lógica punitivista do Estado e sua carga repressiva. O crime organizado classifica os ‘limpos’, em relação aos ‘infratores’, tal como acontece na sociedade brasileira, ao aderir à divisão entre ‘cidadãos de bem’ e ‘bandidos’. Miguel Rocha explica que no tribunal do crime, o lema é: ‘aqui ninguém te julga, quem te julga são seus atos’. “E assim, como moradores de Heliópolis, acostumamo-nos a viver sob o domínio desta ‘justiça’ que nunca falha. Não falha?”, reflete o encenador.

Fora dos limites da favela, a seletividade da justiça oficial recai sobre esses mesmos moradores. O diretor completa: “A maioria da população de Heliópolis é jovem, negra, pobre e migrante; justamente o segmento mais criminalizado pelo sistema penal brasileiro. Costuma-se dizer que essa justiça também não falha, será que não falha?”.

Instigados pelo fenômeno da judicialização da vida social e política, em consonância com a crescente criminalização de indivíduos ou movimentos outrora tidos como opositores ou transgressores, a Companhia busca, por meio do espetáculo (IN)JUSTIÇA, compreender a fundo o que significa justiça e examinar, na cena, suas representações, seus mecanismos e seus rituais. “Temos constatado a gradual desmoralização da ideia de justiça em contraposição ao veloz recrudescimento das posições em favor de um senso de justiça, refletido na sede por ‘justiçamento’, ou seja, por vingança ou punição”, declara Miguel. Ele diz que, no Brasil, justiça parece ser um valor que serve apenas a uma pequena parcela da população e lhe assegura privilégios e blindagem, minando totalmente a viabilidade de um Estado que garanta equidade de direitos e do estabelecimento de uma sociedade em que todos usufruam de possibilidades iguais. (Carta Campinas com informações de divulgação)

Ficha técnica

Encenação: Miguel Rocha. Texto: Evill Rebouças (criação em processo colaborativo com a Cia de Teatro Heliópolis). Elenco: Alex Mendes, Cícero Junior, Dalma Régia, Danyel Freitas, David Guimarães, Gustavo Rocha, Karlla Queiroz e Walmir Bess. Cenografia/instalação: Marcelo Denny. Assistência de cenografia: Denise Fujimoto. Figurino: Samara Costa. Iluminação: Fagner Lourenço e Miguel Rocha. Direção musical: Meno Del Picchia. Oficina de voz: Bel Borges. Oficina de canto: Luciano Mendes de Jesus. Músicos: Amanda Abá (violoncelo e violino), Bel Borges (violão e percussão) e Fernanda Broggi (percussão). Provocação teórica e prática: Maria Fernanda Vomero. Provocação / teatro épico: Alexandre Mate. Provocação / teatro performático: Marcelo Denny. Direção de movimento: Lúcia Kakazu e Miguel Rocha. Preparação corporal: Lúcia Kakazu. Coreografia: Camila Bronizeski, Lucia Kakazu e Miguel Rocha. Oficina de dança: Camila Bronizeski. Oficina de mímica: Thiago Cuimar. Operação de luz: Fagner Lourenço e Viviane Santos. Operação de som e sonoplastia: Giovani Bressanin. Mesas de debates: Viviane Mosé, Gustavo Roberto Costa, Ana Lúcia Pastore e Cristiano Burlan. Mediadora/debates: Maria Fernanda Vomero. Comentador convidado: Bruno Paes Manso. Organização de textos do programa: Maria Fernanda Vomero. Direção de produção: Dalma Régia. Produção executiva: Elaine Vital Marciano. Fotos: Caroline Ferreira e Donizete Bomfim. Design gráfico: Camila Teixeira. Assessoria de imprensa: Eliane Verbena. Realização: Companhia de Teatro Heliópolis. Apoio: 31ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

Espetáculo: (IN)JUSTIÇA

Estreia: 25 de janeiro, sexta, às 20 horas

Temporada: 25 de janeiro a 19 de maio

Horários: sextas e sábados (às 20h) e domingos (às 19 horas)

Ingressos: Pague quanto puder (bilheteria: 1h antes das sessões)

Duração: 90 minutos. Gênero: Experimental / Ensaio cênico. Classificação: 14 anos

Casa de Teatro Maria José de Carvalho

Rua Silva Bueno, 1533. Ipiranga/SP. Tel: (11) 2060-0318

Capacidade: 60 lugares. Não possui acessibilidade. Não possui estacionamento.