.Por Lucas Coradini.

Talvez como em nenhuma outra eleição presidencial esteja se falado tanto em voto útil, voto crítico, ou voto pragmático, sobretudo em um primeiro turno. Em meio a um cenário de incertezas, de dispersão da intenção de votos entre candidaturas das mais diferentes matizes ideológicas, as pesquisas eleitorais protagonizam o xadrez da disputa eleitoral. Variações importantes no cenário político, decorrentes principalmente da impugnação da candidatura de Lula e do atentado sofrido por Bolsonaro, fazem com que, quase às vésperas do pleito, eleitores avaliem criteriosamente a viabilidade de cada candidatura diante um inimigo comum: o fenômeno extremista.

O cenário desenhado pelas pesquisas eleitorais apontam para a presença de Bolsonaro no segundo turno. O debate, portanto, parece circunscrito a quem possui as melhores condições de superá-lo nesta etapa, o que é factível de ocorrer, segundo as mesmas pesquisas, em diversas candidaturas. Graças a sua rejeição, a maior entre todos os concorrentes, até presidenciáveis com baixa aderência popular, como Geraldo Alckmin, ganham expressão diante de Bolsonaro. Dos tímidos 9% de intenção de votos no primeiro turno, o tucano chegaria a 40% contra o candidato do PSL em um hipotético segundo turno (dados da pesquisa Datafolha divulgada em 20/09). O mesmo ocorreria com Ciro Gomes, Fernando Haddad e Marina Silva, que se apresentam tecnicamente empatados com Bolsonaro no segundo turno, porém com maiores perspectivas de crescimento, se considerada a rejeição apresentada por cada um.

Até mesmo o PSDB, oposição histórica ao PT, cogita apoiar Fernando Haddad em um segundo turno contra Bolsonaro, como manifestou um de seus principais líderes, o ex presidente Fernando Henrique Cardoso. Apoio que é igualmente esperado de toda a centro-esquerda, o que demonstra a ojeriza ao projeto político representado pela candidatura do ex capitão. Este cenário incomum enseja uma reflexão sobre o que afinal está em jogo com o “fenômeno Bolsonaro”.

É preciso entender como inexpressivos 27 anos de atuação parlamentar, sustentada por uma base social bastante restrita, limitada à caserna e profissionais da segurança pública, conformam o fenômeno político que ganhou as redes sociais e faz o ex militar figurar na primeira colocação da corrida presidencial. Mais conhecido pelo tom caricatural e envolvimento em polêmicas do que propriamente pela sua qualidade política, Bolsonaro se tornou um fenômeno de massa de forma relativamente recente, depois de duas décadas de anonimato quebrado vez ou outra por episódios burlescos que geralmente destacavam o absurdo de seu pensamento. Hoje, é possível identificar pelo menos três ingredientes que ajudam a compreender seu emergente apelo popular: o obscurantismo, a crise de representatividade, e o anti-petismo.

O obscurantismo, no sentido estrito, diz respeito àqueles que se veem representados pelos discursos de ódio, pelo racismo, machismo e homofobia, reconhecidamente imanentes ao candidato. De uma forma torta, Bolsonaro traz à luz preconceitos enraizados na cultura brasileira mas, por muito tempo, velados. Sua ascensão amplifica perigosamente as vozes da insensatez. Seria injusto, entretanto, associar a totalidade de seus eleitores às sociopatias nele expressas. Bolsonaro absorve adesões também de uma parcela que não se identifica necessariamente com tais valores, mas que encontra-se absolutamente descrente com o sistema político brasileiro e suas mazelas, relegando a ele uma espécie de voto de protesto. É, em outras palavras, resultado de um contexto de crise de representatividade, um misto de despolitização e ingenuidade que tornam crível a aposta num candidato sem as menores condições de governabilidade ou qualquer virtude política, na ilusão de que seu tom de indignação moralista possa se refletir em uma capacidade real de mudança sobre aquilo que está hoje estabelecido. Por último, e não menos importante, é preciso reconhecer que o fenômeno Bolsonaro é, em boa parte, fruto do anti-petismo, sentimento construído por uma campanha sistemática de criminalização do partido realizada por corporações midiáticas e disseminado entre parcela significativa da população. Assim, Bolsonaro emerge no cenário político como uma antítese ao PT, apesar de jamais ter oferecido uma plataforma muito clara como alternativa. Ao contrário, no debate de ideias, veem-se mais soluções simplistas para problemas complexos, quando não um vazio intelectual.

Cabe frisar que o anti-petismo não encarna apenas uma rejeição à sigla pelos seus envolvimentos em corrupção, mas se direciona também ao que representa em termos de projeto de país. Abarca parte da sociedade que se viu ameaçada pelas mudanças na estrutura social brasileira decorrentes das políticas daquele período, em que a mobilidade social de alguns ressentia os privilégios e o status quo de outros. Mais do que isso, abrange a adesão de uma classe trabalhadora que pouco se viu representada pelas políticas sociais (o caso do pobre homem branco que nenhuma vantagem vê em políticas de equidade de gênero ou em cotas raciais). Fenômeno semelhante se observou nos Estados Unidos com a ascensão de Trump após oito anos de investimento em políticas sociais de Obama, como aponta a socióloga Arlie Hochsild no seu artigo “Como a direita seduziu o eleitorado popular”, explicando a contraditória adesão das camadas menos favorecidas a candidatos que combatem benefícios sociais (Le Monde Diplomatique, agosto de 2018).

Mas se o segundo turno não por fim ao falseante “fenômeno Bolsonaro”, no mínimo deverá expor as suas fragilidades e contradições. E para isso não é necessário nada mais do que informação. O candidato do patriotismo terá que explicar sua subserviência ao pensamento liberal e as posições que afrontam a soberania nacional. O defensor da moral e bons costumes terá que explicar o envolvimento em ilegalidades, como a utilização de recurso público para emprego de funcionário fantasma, o recebimento de auxílio-moradia quando possuía residência própria no município de exercício do mandato (recurso utilizado, segundo o próprio candidato, para sua satisfação sexual), a surpreendente evolução patrimonial de sua família quando na vida política, ou ainda a questionável maquiagem contábil para receber recursos da JBS. O religioso Bolsonaro terá que explicar como os preceitos cristãos comportam seus discursos de ódio para com as minorias, seu apreço pela violência, pela tortura como prática institucional, e reverência a violadores de direitos humanos ao nível de Carlos Brilhante Ustra. Em resumo, o mito de Bolsonaro não resiste a uma pesquisa no Google, apesar do exército de iletrados que militam virtualmente a seu favor e que pouco se afetam com estas verdades inconvenientes.

Preocupa mais em sua candidatura, contudo, para além do pensamento que representa, a quem está associada. O recente encorajamento de lideranças militares a se manifestarem em temas da política faz soar sinal de alerta sobre os riscos que cercam a jovem democracia brasileira. A escolha de um general como candidato a vice-presidente parece fazer reviver a fagulha saudosista dos anos de chumbo, cultivada no íntimo de parte da classe militar que, como “cadelas no cio” – na expressão recentemente utilizada pelo presidenciável Ciro Gomes – vislumbram a oportunidade de uma retomada do protagonismo no cenário político nacional. Declarações que aludem a possibilidade de uma nova constituição sem participação popular, ou insinuações que colocam em suspeição o próprio processo eleitoral – e, por consequência, seu resultado, quando assim lhes convir – assombram o debate político e fazem transparecer que Bolsonaro pode ser usado como instrumento de um golpe por uma nova geração de déspotas.

Por mais contraditório que pareça, diante de tal ameaça que as eleições de 2018 podem ser a oportunidade do Brasil se reencontrar com a democracia. Com todas as dificuldades que as forças progressistas brasileiras possuem de formar um consenso mínimo em torno de uma agenda política, o inimigo comum que se apresenta exige senso de solidariedade e comunhão de esforços. O segundo turno das eleições tende a unificar diferentes ideologias políticas contra o fascismo e em defesa do estado democrático de direito. E esta união, possivelmente em torno da candidatura de Fernando Haddad, como esboçam as pesquisas, adquire um simbolismo ainda maior como resposta ao golpe de 2016. Pode, em última análise, significar uma repactuação da ordem institucional e da política com os anseios populares, e a retomada de um projeto nacional de desenvolvimento socialmente mais justo e inclusivo. Bem verdade que o Brasil seguirá polarizado, e que sempre haverá projetos de governo e modelos econômicos em disputa. Mas os desdobramentos pós ruptura democrática de 2016, tais como a prisão Eduardo Cunha, a desmoralização de Aécio Neves, o agravamento da crise econômica e institucional, e o desastroso governo Temer e seus ataques a direitos sociais e trabalhistas, já não conferem a mesma força ao discurso anti-petista. Soma-se a isso a autocrítica realizada pelo PSDB, na figura de seu ex-presidente, Tasso Jereissati, pela participação naquele triste episódio da política nacional, demonstrando que mesmo a tradicional oposição ao PT dificilmente se prestará a reproduzir aquele papel.

Assim como não existem heróis ou “salvadores da pátria”, é ingênuo pensar que qualquer candidatura possa unificar o Brasil. A maturidade de uma democracia reside justamente na capacidade de convivência com o divergente e apreço à pluralidade. Por isso, a única união possível – e necessária – é a união contra o fascismo e a intolerância. Nesse sentido que Bolsonaro pode unir o Brasil: contra si. E se o PT conquistar a quinta eleição presidencial consecutiva, será dever de todos que prezam pela democracia e pela ordem institucional o respeito ao seu mandato. É a oportunidade do Brasil se reencontrar e sair da crise política instaurada desde 2014. Precisamos aprender a superar as divergências, sem diminuí-las, como sinal de deferência ao espírito republicano, à normalidade institucional e, principalmente, à soberania da vontade popular.

* Lucas Coradini é mestre em sociologia, doutor em ciência política, e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul.