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Proposta da Reitoria põe em risco acervo do Centro de Memória da Unicamp, avaliam bibliotecários

Jefferson de Lima Picanço

A Biblioteca Professor José Roberto do Amaral Lapa do Centro de Memória da Unicamp (CMU), maior acervo documental da história de Campinas e referência nacional de pesquisa sobre uma das mais importantes regiões econômicas e científicas do país, fechou as portas para a visitação pública nesta segunda-feira, 23.

E as consequências que se anunciam podem ser devastadoras para o acervo que reúne centenas de milhares de peças, entre elas documentos, livros e jornais publicados há mais de dois séculos. “Trata-se de um acervo único sobre a história de Campinas e da nossa região, a do antigo ‘Oeste-paulista’, com peças, livros, jornais e documentos que não existem em nenhum outro lugar do mundo”, lembra o diretor-adjunto do Centro, professor Jefferson de Lima Picanço, do Instituto de Geologia.

O acervo é fonte de pesquisa para a comunidade acadêmica de diversas universidades brasileiras, latino-americanas e europeias. E, desde a sua criação, em 1985, vocacionado a atender também os mais diversos segmentos da sociedade.

Muitas das peças e documentos que compõem o acervo foram arduamente restauradas por uma equipe de especialistas que se vê reduzida sistematicamente ao longo dos últimos anos. “A equipe de restauradores do Centro é altamente especializada e uma referência nacional para este setor”, diz Picanço.

A redução da equipe, aliás, é a causa do fechamento da biblioteca e do acervo do CMU para a visitação pública nesta segunda-feira, 23 de julho.

Desde 2016, o Centro já perdeu dez funcionários, por aposentadoria ou transferência. Dos 21 que trabalhavam em 2016, restam apenas 11, e as duas únicas bibliotecárias capacitadas para atender o público se afastam agora.

Eliana Barbosa Moreira, bibliotecária do Centro desde 1993, acaba de se aposentar e só tem ido lá, nos últimos dias, para dar “últimos ajustes na papelada” junto com sua colega Rosaelena Scarpeline, responsável pela biblioteca desde 1992.

Rosaelena e Eliana

O último dia de Rosaelena na biblioteca foi a sexta-feira, 20. Ela entrou em licença-prêmio para concluir sua tese de doutorado e se aposenta em seguida. Com as duas últimas bibliotecárias da equipe aposentadas, a biblioteca do Centro fica sem funcionários especializados para atendimento ao público. “Diante disso, simplesmente não temos como manter as nossas portas abertas”, afirma Picanço.

A Reitoria da Unicamp foi sistematicamente comunicada, ao longo dos últimos anos, sobre a iminência da crise de funcionamento que se avizinhava pela falta de reposição de funcionários. “Nós prevíamos as aposentadorias e tomamos todas as providências junto às últimas gestões da Reitoria, incluindo a atual. Mas as contratações nunca foram autorizadas”, aponta Picanço.

Rosaelena lembra que as advertências à Reitoria sobre a inviabilização do atendimento ao público haviam se multiplicado ao longo dos últimos anos. “O nosso acervo é muito especializado. O ideal é que quem venha nos substituir passe pelo menos um ano trabalhando ao nosso lado, para que possa conhecer particularidades do material que estudamos e sistematizamos ao longo destas últimas décadas”, avalia.

Mas, hoje, isso não é mais possível.

Mesmo assim, agora, já afastadas oficialmente, Rosaelena e Eliane se colocaram à disposição do Conselho do CMU e da Reitoria para capacitar novos funcionários que venham substituí-las. “Mesmo aposentadas, nos sentimos na obrigação de manter vivo este patrimônio único da história de Campinas e região. Mas não temos tido o mesmo retorno da Reitoria”, afirma a diretora do Centro..

Eliane relata que, mesmo após 25 anos de trabalho cotidiano com o acervo, não passa um dia sem que encontre uma novidade. “O acervo do Centro é uma raridade, uma preciosidade. E não é de uma hora para outra que o profissional, mesmo o mais capacitado, vai pegar uma publicação e perceber toda a sua importância e a sua relação com outras peças e coleções catalogadas no acervo”, diz.

Graças a esta vivência diária no CMU, as duas bibliotecárias que já orientaram milhares de pesquisadores ao longo das últimas décadas advertem sobre o que chamam de “consequências traumáticas” para o conjunto do acervo, caso ele venha a ser desmembrado como propôs a Reitoria nos dois comunicados divulgados na semana passada sobre o fechamento da biblioteca.

Proposta da Reitoria põe em risco a riqueza do acervo

Em notas oficiais emitidas na semana passada, a Reitoria da Unicamp justificou o fechamento da biblioteca como medida para enfrentar a “crise financeira” (na verdade, uma crise de financiamento) que as universidades públicas paulistas atravessam. E garantiu que o acervo do Centro de Memória será preservado, mas que será distribuído para outras bibliotecas que continuam abertas ao público em diferentes unidades da universidade.

“Essa proposta mostra um desconhecimento completo das características do acervo do Centro de Memória”, avalia Rosaelena Scarpeline. De acordo com ela, a distribuição das peças em diferentes bibliotecas vai “descaracterizar completamente” o conjunto do acervo.

O professor Jefferson de Lima Picanço, afirma que quase 100% do acervo do Centro é resultado de doações. “Não se trata de uma biblioteca comum”, diz. A grande maioria das doações não são peças isoladas, mas coleções compostas por diferentes tipos de documentos.

“Além de livros e documentos, em muitas destas coleções nós temos manuscritos, correspondências, fotografias e até objetos pessoais dos doadores. E é exatamente essa diversidade que transforma o nosso acervo em um acervo único no Brasil sobre a história de Campinas e região”, explica Rosaelena.

Impactos

Na avaliação de Picanço, o fechamento da biblioteca ao público já causa um grande impacto na missão do CMU, que é atender aos pesquisadores e ao público em geral. Mas ele adverte que a divisão do acervo será ainda pior. “As coleções correm o risco de perder sua organicidade e serem desfiguradas”, aponta.

E há casos, inclusive, que podem gerar problemas jurídicos, de acordo com as bibliotecárias que agora se afastam. Elas apontam o caso da vasta coleção, com milhares de documentos, peças e livros doados pelos familiares de João Falchi Trinca, em 1986.

O acervo, de grande diversidade temática sobre a história de Campinas e de seus personagens, contém fotografias, documentos, textos, correspondências, recortes de jornais e revistas, entre outros. Ele foi doado especificamente para o Centro de Memória e não para a Unicamp. E, caso seja dividido e de alguma forma descaracterizado, corre o risco de ter a doação questionada pelos familiares de Trinca.

Ainda mais grave, de acordo com os gestores do Centro, é o risco de rompimento da rede de atualização do acervo que hoje existe graças ao amplo trabalho de pesquisas realizado desde a sua fundação.

“O Centro recebe da Unicamp apenas pouco mais de R$ 1.200 por ano para a compra de livros. Toda a atualização do nosso acervo é feita a partir de doações estimuladas pela ampla rede de colaboradores do Centro, integrada por pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras, por figuras públicas e também por centros de pesquisa e documentação histórica como a Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional de Lisboa e as da Espanha e México, entre outras”, relata Rosaelena.

O acervo único: uma breve história

“A ideia da criação de um Centro de Memória pela Unicamp surgiu no início da década de 1970, durante a gestão do Prof. Zeferino Vaz, idealizador e primeiro reitor da universidade, mas só ganhou força a partir de 1978, quando o historiador e professor José Roberto do Amaral Lapa soube da intenção do Fórum de Campinas de descartar seus arquivos cartoriais por problemas de infraestrutura. Diante da ameaça de incineração dos mais de 50 mil processos que abrangem um importantíssimo período da história da cidade – do final do século XVIII até o início do século XX – Lapa não mediu esforços até que a universidade oficializasse o interesse pela documentação”, relata a página do Centro de Memória da Unicamp na internet ( www.cmu.unicamp.br).

A transferência dos arquivos para a Unicamp foi autorizada em março de 1985. Assim, para oficializar a posse e responsabilidade pela preservação dos documentos, em 1º de julho daquele ano, uma portaria do então reitor, professor José Aristodemo Pinotti, criou o Centro de Memória da Unicamp. Lapa foi nomeado seu primeiro diretor, cargo que exerceu durante os dez anos seguintes.

No início, o Centro funcionou provisoriamente nas dependências da Biblioteca Central, onde foi realizado o tratamento inicial dos documentos recebidos. Logo depois, a Reitoria destinou o andar térreo do prédio do Ciclo Básico I para as instalações do Centro, onde ele funciona até hoje.

A partir de sua fundação e com a divulgação do trabalho, o Centro passou a receber um número crescente de coleções e doações, que hoje somam centenas de milhares de documentos e peças. Uma breve visita à página do Centro na internet mostra a raridade e diversidade do acervo.

“Obviamente, todo esse material foi rigorosamente restaurado, por uma equipe que hoje é referência nacional nesta atividade, e até hoje vem sendo catalogado, uma vez que novos documentos continuam chegando para integrar o acervo”, diz o professor Jefferson de Lima Picanço.

A biblioteca hoje reúne mais de 11 mil livros, entre eles o acervo doado pela Cúria Metropolitana, com publicações desde 1771; além de jornais e revistas publicados em Campinas e região e datados desde a segunda metade do século 19; a mapoteca com mapas e plantas de Campinas e de outras cidades da região; partituras do maestro Carlos Gomes e coleções completas de centenas de personagens da história de Campinas. (Da ADunicamp)

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