o que nos aproxima

Cada um vive a crise que vê. Vivo uma crise de escassez de esperança, um tempo de tristeza pelo que minha geração se tornou e de angústia pelo ambiente em que a próxima geração está crescendo.

Estou cansado do “climão”, dos olhares tortos, das acusações trocadas, da onipresente falta de respeito.

Penso em quando éramos crianças e nossos cérebros absorviam informações como esponjinhas insaciáveis. Ah, é impressionante como as crianças absorvem informações. Éramos maquininhas de aprender, mas em algum momento tornamo-nos máquinas de já ter certeza.

Queria voltar ao tempo em que tínhamos cérebros ávidos por aprender, mas que ninguém me ensinasse que o diferente é pior, que é perigoso, que é inimigo, que eu sou bom e ele é mau, que pobre é vagabundo e por isso sofre mesmo. Como o mundo seria diferente se ninguém ensinasse esse tipo de coisa.

Queria que as famílias, a sociedade, a mídia e a escola tivessem sido sinceras no sentido de informar que somos todos imperfeitos, limitados e iludidos, todos! Isto é ser humano e esta é uma certeza inquestionável.

Podiam ter dito que os adultos vivem em agonia há muitas gerações, angustiados e em guerra, nesse mundo que nossos ancestrais nos deixaram.

Queria que tivessem dito que precisaríamos amar e pensar muito, a fim de construir uma sociedade justa e pacífica, porque eles não conseguiram. O que conseguiram foi nos fazer repetir seus passos. Conseguiram nos fazer hipócritas, infelizes, desumanos, exploradores da miséria alheia e prepotentes.

Podiam ter dito que o sistema em que vivemos tem muitas falhas e que é urgente encontrar alternativas, ou o planeta não suportará.

Poderiam ter ensinado que os abraços curam, o perdão abre caminhos na escuridão, que somos todos um só e que todo sofrimento do mundo é de cada um.

Poderiam ter preservado nossos rios e nos ensinado a amá-los, a amar a todas as crianças, amar a Natureza e ser a cada instante gratos a Ela.

Mas eles aprenderam que alternativas sustentáveis são utópicas, então preferiram nos falar sobre o Papai Noel. E nós aprendemos sobre ele. Dizemos que um bom velhinho virá com seu trenó e deixará presentes para as crianças “comportadas”. Os cérebros ingênuos e ávidos de aprender assimilam. Então, numa data que pretensamente lembraria o nascimento de um homem que pregou exclusivamente o amor, nós invadimos as lojas, geramos muito dinheiro, dilapidamos as entranhas do planeta, destruímos florestas, bichos, competimos feito bichos, exploramos mão de obra escrava e infantil para consumir enlouquecidos e presentear, como se fôssemos nós os bons velhinhos, já que um dia aprendemos que era mentira o que nos ensinaram.

Os presentes, descartáveis, logo viram lixo e se acumulam em rios e oceanos. As crianças pobres também acreditam no Papai Noel, mas não ganham presentes, fodam-se, não vem ao caso, elas não mereceram, resolver isso é utopia. Este é o senso de justiça que aprendemos a considerar normal.

É com a certeza de coisas erradas que nossos cérebros estão sendo regados, geração após geração. Aprendemos a ser obedientes e aceitar como certa a imposição de conceitos e dogmas do passado.

Fomos crianças cheias de interesses, brincamos juntos e aprendemos coisas, mas, dependendo daquilo que aprendemos, passamos a ser vistos como inferiores e indignos de dividir o Planeta com quem aprendeu diferente. É triste viver num mundo desunido, onde amigos passam a se odiar e ofender.

Gostaria que nossos corações e cérebros infantis não tivessem sido intoxicados com as mentiras que nos fizeram adultos inimigos de nós mesmos.

Aprendemos que há esquerda e direita e que uma é boa, outra é ruim. Gostamos de acreditar que aprendemos da melhor forma possível e, se aprendemos assim, aprendemos certo.

Ninguém instigou a criança, que tinha um cérebro livre de rótulos, a enxergar o fato de que, tanto gênios quanto pessoas comuns, defensores tanto da esquerda quanto da direita, digladiam-se há séculos na tentativa de provar que uma é melhor que a outra, mas até hoje ninguém convenceu ninguém.

Há gente boa e inteligente de ambos os lados. Há amigos de ambos os lados. Se há uma multidão que defende a direita e outra que defende a esquerda, me parece que ambas devam ter seus encantos e problemas.

Parece que os dois lados não podem estar 100% certos… eu não quero mais acreditar que o certo seja eu e os errados sejam meus diferentes, não! Quero continuar aprendendo!

Minhas influências, o que absorvi quando criança e o que me permito absorver ainda hoje me tornaram um homem de esquerda. Penso que minha vida não será melhor sem igualdade social. Penso que não é um benefício me distanciar monetariamente de quem está abaixo de mim, mas que todos tenham direito a evoluir dignamente e em igualdade de condições. Não consigo recriminar a atitude de evitar que pessoas morram de fome ou vivam na miséria. Acho que uma vida salva, uma criança na escola ou um sorriso de dignidade restaurada justificam mil anos sem ir à Disney ou trocar de carro. Penso que colaborar seja mais frutífero para a humanidade que competir. Penso que competir e consumir sejam preceitos capitalistas que estimulam a inveja, a ganância, a guerra e o esgotamento do planeta.

Sou da esquerda, mas enxergo que, onde governos de esquerda foram instituídos, não conseguiram evitar as desigualdades, as guerras, as tiranias e privações da liberdade, por isso não acredito que o simples fato de se dar poder à esquerda possa mudar o mundo.

Por outro lado, vejo que o mundo é capitalista e isso não faz dele um lugar melhor. O mundo é desigual, o mundo é cruel, explora crianças que produzem supérfluos até se tornarem velhos explorados. O mundo oprime as minorias. O mundo incita a ganância. O mundo prioriza o dinheiro em detrimento à vida humana. O mundo fomenta guerras porque guerras dão muito dinheiro. O mundo quer que compitamos, que tenhamos medo um do outro, o mundo faz muito gosto em que sejamos inimigos e vivamos em pé de guerra. O mundo se alimenta de vidas humanas que trabalham para sustentar fortunas monstruosas e parasitárias ao planeta. O mundo alimenta um sistema que faz povo de bobo, pra não dizer escravo.

Este é o mundo capitalista em que vivemos.

Podiam nos ter dito que nascemos livres, mas num mundo com regras estranhas que não foram feitas por nós, mas por alguém do passado, muitas vezes com interesses mesquinhos e que hoje devemos nos insubordinar a tais regras, pois não são de nosso interesse.

Podiam dizer que um dia alguém decidiu que nós, o povo livre, deveríamos dar carta branca para que pouquíssimos seres humanos, falíveis e seduzidos por regalias impensáveis ao cidadão comum, assumissem o papel de tutores de nossas vidas.

Podiam ter dito que foram criadas estruturas inatingíveis a fim de encobrir a falibilidade de nossos tutores, onde eles poderiam errar como nós não podemos, usar o que nós não podemos, ter privilégios que jamais teremos e manipular-nos de forma que jamais poderíamos ver.

A teoria diz que os “tutores” são nossos funcionários, contratados como sendo as pessoas certas para cuidar de nossa segurança, saúde e educação. Pagam-se marqueteiros, os mesmos que nos convencem de que um sabão em pó é milagroso, para nos convencer de que nossos tutores são honestos e se preocupam muito conosco, quase como deuses, de tão honrados.

Convencidos de que nossos cuidadores resolverão nossos problemas, pagamos-lhes altos salários e os agradamos com inúmeros benefícios para que eles cuidem de tudo para nós.

Quando delegamos nosso destino a quem quer que seja, abrimos mão de nossas individualidades, de nossas liberdades e de nossa intrínseca capacidade de sermos felizes. Deixamos de ter autonomia sobre particularidades cruciais de nossas vidas e acabamos vivendo pela conveniência de nossos “tutores”.

No mundo capitalista, as conveniências são o dinheiro e o poder.

Mas cuidar de nossas próprias vidas é a única missão que recebemos quando nascemos. Ter autonomia sobre nós mesmos não é um encargo sofrível, é nossa dádiva. Experimentar a liberdade e o respeito à vida humana e a partir daí criar um novo mundo é um objetivo mais nobre e belo que o de acumular coisas e ter muitos serviçais.

A prática diz que nossos “tutores” também têm suas vidas próprias e as priorizam às nossas, o que é natural, na lógica da competitividade. A prática diz que no mundo capitalista a competição é brutal. A prática diz que é difícil competir com quem tem muito dinheiro e poder.

A teoria diz que não há empregado milionário de um patrão miserável, mas a prática de nosso sistema desmente a teoria. Nossos tutores, os políticos e os representantes do poder judiciário já deixaram de nos servir há muito tempo. Eles, pelo bem de suas próprias vidas, prestam serviço a si próprios e a senhores muito mais afortunados monetariamente que o povo que os contratou, ou elegeu, como queiram.

Nós estamos acostumados a comer nas mãos desta estrutura, aprendemos a vê-la como amiga e protetora. Ela, porém, é mentirosa e tirana.

Tal estrutura só se sustenta porque acreditamos que dependemos dela e porque ainda não aprendemos a destruir estruturas, só sabemos destruir pessoas. Destruir pessoas não faz a menor diferença no combate ao sistema que nos escraviza, pelo contrário, desvia nosso foco e evita que nos unamos contra o que, em verdade, nos impede de evoluir.

Não será a prisão de um homem adorado por muitos e odiado por outros tantos que colocará fim a minha crise. Não será o extermínio de um partido político, não será o impeachment nem tampouco será a continuidade desse governo, não haverá um salvador da pátria que coloque fim à crise que vejo. O salvador da pátria seremos nós, unidos.

Não, eu não sou defensor de bandido. Defendo cada vida humana e acredito na máxima importância de cada pessoa. Defendo uma tendência democrática de que se cumpra um mandato de 4 anos (faltam 2 anos e 9 meses). Mas principalmente, defendo o fim do ódio e da guerra.

Gostaria que ficasse claro que, de qualquer lado que se esteja hoje, quem te enxerga do outro lado pode te julgar como um defensor de bandido. Julgar qual bandido é o pior é perda de tempo, é exercício de hipocrisia e prepotência, é o engodo do sistema para dividir nossa força. Tudo bem se isso te faz bem, mas esse julgamento é cruel, tanto quanto generalizar e afirmar que em favor do impeachment só há alienados e fascistas, isso não agrega e é como matar com fogo amigo.

O sistema contra o qual eu luto conta exatamente com essa percepção discriminatória, com esse ódio e essa ilusão de que nossos inimigos são as pessoas que aprenderam diferente de nós. O sistema se garante enquanto o povo for polarizado e desunido.

Quem estiver disposto a somar ideias, quem pensa em reforma política, em exigir transparência em todos os setores da sociedade, em reduzir o poder e os privilégios políticos, do judiciário e da grande mídia, quem acredita que as grandes fortunas sejam incompatíveis com a construção de uma sociedade equilibrada e um planeta sustentável, quem crê que estas sejam reivindicações comuns em prol de nossa liberdade e felicidade plena, independente de que lado esteja, estará atuando pela verdadeira mudança. Devemos dialogar e reivindicar cada vez mais a participação popular na vida do país. Devemos lutar pelo fim da concentração do poder nas mãos de poucos sobre muitos.

Precisamos mudar e para isso será necessário unir quem realmente estiver aberto à transformação.

Não há como mudar sendo conservador, o conservador quer conservar, não mudar. Mudar com guerra, com ódio, com discurso fascista, com intolerância e querendo manter gente na miséria não é mudar, é conservar, é repetir o erro, é morder a isca do ciclo vicioso.

Não queremos transferir para nossas mãos este poder injusto, pestilento e desumano que nos fez chegar a esta situação lamentável. Nascemos naturalmente poderosos. Temos o poder da liberdade, do amor e da união, só precisamos experimentá-lo, exercitá-lo e comprovar que é possível viver num mundo diferente.

Minha crise era de esperança escassa, mas é impressionante como as crianças absorvem informações e como as esperanças germinam, proliferam e dão os melhores frutos nos piores terrenos.

Antes de sermos diferentes, somos humanos capazes de nos amar e admirar. Antes de termos nos tornado propriedade de um estado que nos registra e retém dentro de suas fronteiras como gado, nascemos livres. Antes de sermos brasileiros, somos habitantes do Planeta e devemos dividir seus recursos de forma racional e humanitária.

É impressionante como, em minutos, minha crise tornou-se pura esperança!