Por Rodrigo Arruda
A HQ trata de um momento da vida altamente comum a tantas pessoas. São dúvidas, desencontros, questionamentos que o jovem protagonista tenta desvendar. Sem ter a quem recorrer ele se sente perdido, amargurado, sozinho, num verdadeiro turbilhão de sentimentos.
É a partir da ajuda do terapeuta que começa a tentar compreender sua vida por um novo ângulo, repensando sua vida e suas escolhas, como faculdade, namoro, relação com os pais, amigos. Nas palavras de Marina Kurcis: “Assim surgiu o nosso garoto, que tem angústias e sofrimentos sem uma razão aparente, e que teve a coragem de pedir auxílio a um psicólogo para poder se aprofundar mais nestas questões e aprender a lidar com elas. Ele pode ser qualquer um de nós, e pode ser todo mundo.”
Mario Cau faz um trabalho primoroso na arte gráfica, utilizando-se através de técnicas de encher os olhos, trazendo verdades impactantes por meio de metáforas e mesmo detalhes subliminares, desafiando e estimulando o público leitor. Público este bem participativo. São inúmeros comentários em cada página, e a interação com os autores é muito proveitosa. Através dos comentários são reveladas identificações com o personagem, confissões acerca da vida dos leitores, dúvidas e sutilezas reveladas pelos autores.
Mário comenta este desafio: “gosto demais de produzir Terapia, é um desafio constante: preciso lidar, como artista, com todas as nuances de expressões, e ainda proponho uma experimentação nos estilos e recursos gráficos que precisa atender a necessidade de cada situação”.
Na entrevista a seguir os autores explicam sobre o processo de criação, desde a ideia do roteiro a produção da arte final, sobre os personagens, sobre paixões, juventude, expressão pela arte, como destacado por Rob Gordon: “Ele ainda não sabe se expressar pela própria arte, e é por isso que temos tantas referências de outras músicas. Porque ele se expressa pela arte dos outros.”
A primeira pergunta é sobre o formato, lançar a página na internet semanalmente (ou quinzenal). Como é o processo de desenvolvimento da história nesse formato? Como tem sido essa experiência?
Mario: A proposta de publicar páginas semanais (com o tempo virou quinzenal, por causa das nossas agendas e outros projetos) veio do Petisco, o site onde publicamos Terapia. É a ideia de revisitar as antigas páginas dominicais de quadrinhos, quando eram publicadas em jornais, em tiras ou páginas inteiras.
O desafio é ser relevante na história e na arte e cativar os leitores, semana após semana. As páginas precisam funcionar sozinhas e ainda fazer parte de uma história maior.
Nós conversamos muito sobre os rumos da história, e a partir de uma ideia geral do que acontece no capítulo, Rob e Marina fazem uma reunião onde escrevem um primeiro tratamento do roteiro, que depois é lapidado pelos três em várias idas e vindas, por email.
Com o roteiro definido, passo para a fase do desenho: estudo a composição da página, a narrativa, os recursos gráficos e as técnicas que pretendo usar. Faço o processo clássico: lápis, nanquim. Escaneio e faço as cores geralmente no computador, e deixo a experimentação gráfica correr solta, para poder expressar melhor os sentimentos e momentos da história, criando leituras mais complexas e cheias de nuances.
O processo todo é muito desafiador, pois exige uma disciplina grande. Como não me dedico exclusivamente a Terapia, lido com vários projetos, palestras, aulas e eventos. A mudança para a periodicidade quinzenal veio justamente da nossa dificuldade, em 2014, de manter a produção constante. Mas gosto demais de produzir Terapia, é um desafio constante: preciso lidar, como artista, com todas as nuances de expressões, e ainda proponho uma experimentação nos estilos e recursos gráficos que precisa atender a necessidade de cada situação.
Rob: Detalhando um pouco mais o roteiro… Como o Mario disse, temos ideias gerais do que acontece na série nos próximos capítulos, mas são apenas isso: ideias gerais que servem como fio condutor para a história. Nas reuniões que faço com a Marina, nosso trabalho é detalhar isso de forma que cada capítulo vire quase uma história independente que, mesmo obedecendo à mitologia que já criamos em Terapia, tenha começo, meio e fim, divididos em doze páginas. É nessa primeira versão que eu coloco todas as referências de blues, que é uma das partes mais difíceis do processo. As músicas citadas precisam sempre funcionar dentro daquilo que está acontecendo na cena ao mesmo tempo em que exprimem o que o personagem central está sentindo – ou, muitas vezes, pensando.
Após a reunião, eu escrevo o primeiro tratamento, com todos os diálogos e indicações de cenas para o Mário. Quando o cenário interfere com o roteiro eu descrevo detalhadamente, mas outras têm apenas indicações gerais para ele criar à vontade em cima. E tenho certeza que ele sofre com isso, pois quando você escreve para um desenhista você quase que o trata como “um brinquedo novo”. Não é difícil eu ligar para ele no meio da tarde e perguntar: “você consegue fazer isso ?” “você consegue fazer aquilo?”, “é possível fazer uma textura assim nesse personagem?” [risos]
Mas a parte mais difícil do roteiro é, como o Mario disse, que, se as doze páginas de cada capítulo precisam ter começo, meio e fim, o mesmo precisa acontecer com cada página individualmente. Afinal, como trabalhamos publicando uma página por vez, cada página precisa ter um senso de conclusão ou um gancho para a página seguinte. Fazemos isso para manter o interesse do leitor. Como ele recebe apenas uma página por vez, é nossa obrigação fazer com que ele se sinta satisfeito com ela.
Marina: Só complementando o que eles já disseram, é muito importante mantermos o foco na linha do tempo da história toda, lembrando fatos e acontecimentos que já passaram e queremos retomar por algum motivo, e pensar no rumo que iremos tomar, para conseguirmos distribuir tudo isso ao longo das páginas e tornando cada uma interessante o suficiente por si só. No meu caso, o mais trabalhoso é utilizar as teorias da Psicologia como se o garoto fosse um paciente de verdade, no meu consultório, e não deixar que os diálogos se tornem muito extensos e maçantes. As intervenções do terapeuta precisam ser realistas, porém dando margem à liberdade poética da narrativa. Muitas vezes preciso “guardar” para o final do capítulo alguma frase mais impactante do terapeuta, por exemplo. O timming é essencial para manter Terapia interessante, e para isso preciso controlar minha própria ansiedade de resolver logo as questões do garoto, porque se não acabamos logo com a história (risos).
Um traço muito legal da Terapia é a identificação com as pessoas mais jovens (e nem tão jovens), das dúvidas que enfrentam, se estão trilhando o caminho certo, ou se fizeram as decisões acertadas nas encruzilhadas da vida. Vocês tinham essa intenção? Sentem que atingiram o resultado?
Mario: Nossa intenção, desde o início, era contar uma boa história com bons personagens. E, com o tema abordado, conseguimos atingir os leitores de uma forma muito especial, pois a identificação deles com nossos personagens e suas situações de vida é enorme. Eles são todo mundo, todos já passaram por algo similar. Não sei se os leitores percebem de cara, mas nunca dissemos os nomes de nenhum personagem.
Percebemos pelo feedback dos leitores e colegas que conseguimos criar uma narrativa intimista e ao mesmo tempo bastante aberta a interpretações. Como cada pessoa tem uma vivência e uma bagagem, vão interpretar a HQ de sua própria forma, e com isso, espero, possam refletir também sobre si mesmos. E claro, desmistificar a psicologia, a terapia, que é visto ainda por tanta gente de forma equivocada.
Espero que a história seja um pouco atemporal, também, e que possa continuar fazendo sentido e ajudando muita gente. Sabemos de leitores e amigos que não só se identificaram com o tema e o personagem, como também foram fazer terapia.
Rob: Sim, cada leitor interpreta muitas das situações de Terapia de acordo com a sua bagagem, e essa, acho, é a maior recompensa que podemos ter, pois, com isso, percebemos que estamos criando uma história universal. Às vezes, conversando com leitores, pessoalmente ou por internet, eles me contam o que acharam dessa ou daquela cena e como enxergaram aquilo na história… E é algo completamente diferente do que nós tínhamos imaginado. E às vezes é uma interpretação até mais rica que a leitura que nós fizemos.
Essa, para mim, é a grande força de Terapia. Assim como eu sou uma pessoa e o leitor é outra, o garoto de Terapia para mim é uma pessoa e para o leitor é outra completamente diferente. Aliás, isso funciona entre a gente: acho que se você pedir para eu, Marina e Mario descrevermos o personagem principal, você terá três descrições parecidas, mas não totalmente semelhantes.
Marina: Desde o início tive em mente que essa era uma boa oportunidade para tentarmos diminuir o preconceito que as pessoas têm em relação a fazer terapia. É muito comum ouvirmos por aí que ir ao psicólogo é “coisa pra doido”, ou “tenho meus amigos, não preciso de terapia”. Na prática, optamos por criar um personagem que não tivesse sofrido um grande trauma, nem que tivesse alguma questão psicológica mais séria e pontual. Pensamos que quanto mais comum ele fosse, mais abrangente seria. Assim surgiu o nosso garoto, que tem angústias e sofrimentos sem uma razão aparente, e que teve a coragem de pedir auxílio a um psicólogo para poder se aprofundar mais nestas questões e aprender a lidar com elas. Ele pode ser qualquer um de nós, e pode ser todo mundo. Sinto que atingimos nosso objetivo sim, especialmente porque a identificação dos leitores foi muito maior do que o esperado, e, além disso, como o Mario disse, tivemos relato de pessoas que foram fazer terapia depois de ler a história, o que me deixou muito contente!
Vocês se identificam com a busca do protagonista? Com a expressão através da arte, a paixão pelo que fazem?
Mario: Bom, eu sou um autor de quadrinhos, de corpo e alma. Trabalho com ilustração, sou professor de desenho, de arte. Sou artista. Se eu não for apaixonado pelo que faço, eu não seria ninguém, seria um mentiroso. Eu amo o que faço. É um clichê, mas ser quadrinista não é glamouroso como tantos pensam, muito menos é garantia de sucesso financeiro. A arte não é valorizada como devia, em todas suas vertentes (mas esse é um assunto pra outra hora, hehe).
A busca do nosso personagem pela sua identidade, seu lugar no mundo, é algo que todos passamos. Me identifico pois já passei por muita coisa parecida, e acredito que estamos sempre evoluindo, aprendendo. E precisamos aprender sobre nós mesmos e entender o mundo e as pessoas com o objetivo de ter uma vida plena.
Rob: Acho que, como qualquer pessoa que escreve, eu escrevo pensando nos leitores, mas, primeiro, em mim. É muito difícil escrever algo que não seja uma história que você não quer contar. E as histórias que eu quero contar normalmente são coisas que estou pensando a respeito da minha vida, ou do mundo como um todo, então escrevo para tentar chegar a alguma conclusão sobre aquele assunto. Para o leitor pode significar algo completamente diferente – mais uma vez, depende da bagagem de cada um – ou até ter um significado parecido com o que eu pensei ao escrever. Mas não importa. O que importa é que, da mesma forma que espero que o leitor aprenda algo sobre si mesmo enquanto lê o que escrevo, eu, do lado de cá do computador, tenho certeza que aprendo muito sobre mim enquanto escrevo. Isso vale para crônicas, contos e vale também para Terapia. Então, acho que sim, eu me expresso melhor pela minha arte. E jamais conseguiria fazer isso se eu não fosse apaixonado por isso.
Mas isso é diferente do que acontece com o Garoto de Terapia. Ele ainda não sabe se expressar pela própria arte, e é por isso que temos tantas referências de outras músicas. Porque ele se expressa pela arte dos outros. E esse, na verdade, sempre foi um dos temas principais de Terapia. E um dos mais sutis, já que poucos leitores perceberam que, até hoje, nunca vimos uma canção do garoto. Nós nunca vimos a “arte dele”.
Marina: No meu caso, a identificação é total. Sempre tive muitas paixões e vontade de estudar muitas coisas diferentes. A Psicologia foi minha terceira faculdade, e ainda pretendo fazer outras, mas por enquanto mantenho o foco na Psicologia porque, pelo menos por enquanto, é a carreira que quero construir (risos). A arte sempre foi, assim como para muitas outras pessoas, uma válvula de escape poderosa. Ouvir música, cozinhar, ir a shows, cinema, exposições e escrever sobre as tensões do cotidiano, sobre corações partidos, sobre acontecimentos felizes, entre tantos outros assuntos, faz parte da minha vida. Entretanto, mais de 90% destes textos ficam guardados no meu computador e nos meus diários, assim como o blues do garoto acontece entre as quatro paredes do quarto dele.