cangote

Mês passado senti uma forte dor na coluna. Engraçado como alguns sintomas são capazes de reavivar memórias esquecidas. Sou o mais novo de três irmãos e tenho oito sobrinhos homens e duas filhas. Pode ser que eles não se lembrem, mas carreguei nas costas cada um dos dez.

Desde o meu primeiro carregamento de criança no cangote, parece até coisa do Obama me vigiando, sempre aparecia, do nada, algum adulto com ar grave e sombrio dizendo “não brinca com isso!”, “isso é um passo para uma hérnia de disco!”, “não queira sentir a dor de uma hérnia de disco, rapaz!”, mas eu era jovem e não dei importância às sábias palavras desses agentes da CIA disfarçados.

Continuei colocando crianças no cangote e aprendendo com elas. O sobrinho mais velho, hoje com uns 27 anos, foi naturalmente deixando o lugar na minha “cacunda” (como dizia meu avô) para o seguinte, de forma que sempre tive um marmanjinho (ou mais) pra carregar.

Depois veio minha filha, hoje com quase 16, que eu carregava escada acima, fazia trilha no mato, atravessava rios, entrava em cavernas, tudo com aquela mochilinha cheia de sentimentos e curiosidades agarrada às minhas costas. Ela olhava o mundo daquele inusitado ângulo e perguntava sem limites. Eu respondia, arfando, limitado no conhecimento e na capacidade respiratória.

Claro que nem tudo são rosas no fascinante mundo do cangote, havia sempre quem babasse em meus cabelos ou puxasse incessantemente os pelinhos da nuca e do pé da costeleta, mas não guardo rancor (muito)…

Quando minha mais velha fez 10 anos, nasceu a pequenininha. A soberania sobre o cangote naturalmente mudava de mãos outra vez. E assim foi até o mês passado.

Antes de continuar, devo alertar ao leitor que espera algo mais relevante desse texto, que ele só fala sobre cangote mesmo, de modo que, querendo interromper a leitura a qualquer momento, é um direito legítimo.

Num angustiante flashback, listei as advertências mais comuns que ouvi, no decorrer do tempo, dos sapientes adultos que fizeram parte de minha trajetória de vida, acerca dos desmandos cometidos por mim contra minha coluna.

Um dia a coluna pede as contas! (minha mãe)

Já não é muito peso nessa idade? (meu pai)

Chega que o tio cansou! (irmão)

Olha a cervical do tio, crianças!!! (cunhada)

Depois não reclama quando virar um vegetal! (meu melhor amigo)

Vocês perguntaram se pode? (minha irmã, quando os três pulavam das costas do sofá nas costas do tio)

Pula que o tio aguenta! (meu cunhado, na situação acima)

Até que veio aquela dorzinha do mês passado e eu pensei “malditos rogadores de praga!”.

Era verdade afinal. O tempo batia à minha porta e mostrava o alto custo a ser pago pelo uso da coluna sem ter lido o manual de instruções. A dor cresceu e eu precisei fazer exames mais acurados, no Google, porque sou daquelas pessoas que pouco frequenta médicos.

Não considero que evitar os médicos seja alguma vantagem ou sinal de bravura, pelo contrário, considero uma estupidez e uma falha ridícula à qual me dou ao direito. Tem gente da minha idade que pede a volta da ditadura, tem gente da minha idade que manda bater em professor, tem gente da minha idade que dança Macarena e joga queimada nos encontros de família, então peço que respeitem meu jeito ridículo de ser, tentando entender os sinais do meu corpo antes e quiçá melhor do que outra pessoa.

Não precisei de um Raio X para saber que minha coluna padecia ou de hérnia de disco ou de bico de papagaio… e podiam ser das duas coisas juntas me atacando!

Eu não poderia mais carregar minha filhinha pequena no cangote. O mau uso da coluna vertebral me trouxera, precocemente, aos 44 anos, uma lesão séria que poderia se agravar ainda mais, implicando em possibilidade cirúrgica, em paralisia e até em tetraplegia, caso a cervical fosse acometida.

Lembrar-me de seus olhinhos brilhando e saber que eu não poderia mais proporcionar aquela reação tão linda e pura faria com que eu tivesse que rever uma série de posturas (inclusive posturais) para encontrar alegrias substitutas.

Recordei fatos dos quais eu nem sabia que ainda era capaz. Lembrei-me de como era estar num cangote. De que o mundo visto lá de cima era muuuuuito diferente. Era um orgulho ser elevado até aquele altão e colocado nos ombros de pessoas grandes que eu achava que não tinham tanto tempo pra mim.

Meu pai, bancário, trabalhava muito, recordo que fazia a sesta após as refeições e logo voltava para o banco e eu adorava quando ele tinha um tempo e eu podia contar com seu cangote. Sentia-me importante!

Minha mãe, professora engajada na educação e na valorização da categoria, muitas vezes também me carregou no cangote e me fez mais importante.

Meu avô era professor, jornalista e intelectual, muito bem humorado, carregava-me, como aos outros netos, mas eu, como caçula, gozei desse privilégio por mais tempo (mordam-se de inveja, irmãos e primos).

Meu outro avô teve netos mais jovens do que eu e pude ver meu ciclo de cangote dar lugar a outros e mais outros. Até tataranetos o velhinho colocou na garupa. Era um agricultor que trabalhava muito e muito pesado e além de gente miúda, carregou muito saco de batata naquelas costas magras e fortes, também sempre bem humorado e com ensinamentos da vida e da natureza.

Lembro que cada cangote tinha um gostinho único, um carinho especial, um jeito de subir e de descer sempre diferente do outro.

Meu irmão, acho que uns 8 anos mais velho que eu, também me carregou. O jeitinho especial de descer do seu cangote marcou profundamente meu couro cabeludo com uma cicatriz de bater o coco num daqueles capachos metálicos que parecem grelhas de limpar os pés e que não se vê mais hoje em dia. Ah, inesquecível foi a cara preocupação de meu irmão com todo aquele sangue. Da minha dor, nem tenho lembrança.

Revendo o passado, noto que quem doava aquele espaço, aquele ponto desejado no alto do espinhaço que, às crianças parecia um cume inatingível, quem emprestava o cangote, também se tornava possuidor de um olhar único e sem preço. Eu mesmo me vi com esse olhar até um mês atrás.

Apesar de crescido numa família de baixinhos, o lá em cima era sempre alto e inigualável e propiciar a alguém uma experiência agradável e marcante, por mais que chamem de banal, é único.

Agora que não posso mais carregar crianças nas costas, graças a minha infeliz imprudência repetida por tantos anos, passo a entender e dar valor a um bom passeio de cangote.

Passados 30 dias daquela dor que me alertou, 30 dias sem carregar um peso sequer e alertando a família de que eu precisava de repouso, 30 dias de mau humor, imaginando coisa ruim e sem fazer coisa boa, minha filhinha se esqueceu das recomendações e me pediu pra carregá-la no cangote até o transporte escolar. Ela logo notou a gafe e fez uma carinha de culpa, já temendo a minha bronca. Olhei pra ela e me lembrei de seus olhinhos brilhando lá de cima. Olhei pra minha cara de 30 dias de poucos amigos.

Consultei aquela dorzinha e ela consentiu, calando-se. Rodopiei  a pequena no ar e coloquei no cangote.

Com 44 anos, sei que tem gente mais jovem que eu em cadeiras de rodas, ou acamadas de dor e sem ter feito metade das estripulias que fiz com minha coluna. Sei que tem gente cheia de saúde que jamais pode sentir a experiência de dar esse presente a uma criança.

Vendo a história de meu avô, que carregou sacos de batata até os 50 e crianças até os 100 e foi morrer com 103, notei que não há utilidade mais nobre para uma coluna do que carregar outro ser humano. Nunca se pode usar melhor uma coluna do que quando se coloca acima de sua própria cabeça, aqueles dois faroizinhos brilhando cheios de ternura para a vida.

Notei que minha coluna nunca foi tão mal utilizada quanto nesses 30 dias em que deixei de utilizá-la.

Minha coluna me disse que é flexível justamente para que eu possa carregar crianças em cima dela por mais tempo. Ela disse que dar carinho e cangote não é o mesmo que pedir para ter uma hérnia de disco ou uma dor eterna e lancinante.

E tem mais, coluna foi feita pra se usar até não poder mais, porque um dia, todas as colunas cedem a algum peso e é melhor ceder ao peso de uma criança no cangote, por um momento de grandeza, de carinho trocado, de olhinhos brilhando para o mundo, do que ceder ao peso da angústia, da culpa, do medo, da monotonia, do ódio, da cobrança, da vingança e da inveja.

Então pretendo poupar bastante minha coluna desses últimos pesos, mas não vai ter dorzinha que me impeça de carregar minha filhinha nas costas. E quando ela crescer bastante e já não vir tanta graça no cangote do pai, criancinhas do mundo, preparem-se, pois o maníaco do cangote sempre estará à espreita para trocar um passeio de cavalinho por um brilho nos seus olhos!