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Manoel de Barros, um passarinho

Por Cida Sepulveda

O poeta e eu nos ligamos pela poesia. Quando publiquei meu primeiro livro de poemas Sangue de romã, enviei um exemplar a ele com a certeza de que não receberia qualquer resposta.

Porque, em geral, é isso que acontece: editores não se interessam por novos autores, escritores consagrados ignoram os iniciantes. Mas, com Manoel foi diferente. Ele me mandou a sua típica cartinha, elogiando muito a minha poesia, o que me deixou incrédula.

Roberto Romano, o filósofo que fez a apresentação do meu livro, já o elogiara muito. Mesmo assim, eu não acreditava o suficiente na qualidade da minha arte.
Manoel se tornou para mim o que chamo de “pai póetico”. Além de grande amigo, de interlocutor, por vários anos. Agora que o poeta não pode mais me escrever, devido a complicações de saúde, eu me preencho me recordando de nossas conversas por telefone, pensando em seu caráter, em sua humildade de artista que teve a “sorte” de se tornar um nome e vender livros, e relendo-o.

Dentre os presentes que me deu, há uma relíquia: Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda), 3ª edição, 1996, com Introdução de Berta Waldman, professora de teoria literária da UNICAMP, aposentada. Quando disse a ele que a Berta tinha sido minha professora, me perguntou: você gosta dela? Respondi: gosto sim. É, ela foi muito simpática comigo, ele disse. Neste livro há uma parte valiosa – Conversas por escrito (Entrevistas: 1970 – 1989), que eu adoro ler e reler. É onde encontro o poeta-filósofo. Transcrevo uma das perguntas e respectiva resposta, da entrevista a José Otávio Guizzo, Revista Grifo, Campo Grande, MS, que muito me toca, me acende a lanterna da transfiguração do processo criativo que se confunde com a transfiguração do ser.

“Basicamente você pertence à Geração de 45. Quantas fases atravessou sua poesia?”

“Acho que não pertenço à Geração 45 senão cronologicamente. Não sofri aquelas reações de retesar os versos frouxos ou endireitar sintaxes tortas. A mim não me beliscava a volta do soneto. Achava e acho ainda que não é hora de reconstrução. Sou mais a palavra arrombada a ponto de escombro. Sou mais a palavra a ponto de entulho ou traste. Li em Chestov que a partir de Dostoievski os escritores começam a luta por destruir a realidade. Agora a nossa realidade se desmorona. Despencam-se deuses, valores, paredes…Estamos entre ruínas. A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos que voam por dentro dessas ruínas. Dos restos humanos fazendo discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres que correm por dentro de nós e das casas. Aos poetas do futuro caberá a reconstrução – se houver reconstrução. Porém, a nós, a nós, sem dúvida – resta falar dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas – e está cego. Cego e torto e nutrido de cinzas. Portanto, não tenho nada em comum com a Geração 45. E, se alguma alteração tem sofrido a minha poesia, é a de tornar-se em cada livro, mais fragmentária. Mais obtida por escombros. Sendo assim, cada vez mais, o aproveitamento de materiais e passarinhos de uma demolição.”

Passarinho de uma demolição. Voa, poeta, voa!

Carta Campinas

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