BRICS: a fronteira literária, por Renato Xavier
A literatura dos países BRICS (Brasil, Rússia, India,China e África do SUl) é tão rica quanto desconhecida. Enquanto os operadores de política externa estão preocupados com a realpolitik, somos nós, a sociedade civil, que devemos olhar com atenção e pensar um projeto de intercâmbio literário entre os países – para além das questões político-comerciais.
Cada vez mais, a literatura ocupa o espaço deixado por outras artes. Alguns escritores estão recusando o academicismo cru em favor de uma literatura libertária e, portanto, com maior alcance na sociedade civil. Muitos pensadores ocidentais como, por exemplo, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, entre outros, encontraram nas imagens da literatura o espaço necessário à prática política. Sartre, à sua maneira, defendeu – no auge de 1968 – o espectro “intelectual-escritor” cujo engajamento político visava à mudança do mundo. Camus, por seu turno, asseverou que o melhor caminho para se produzir filosofia seria através da literatura. Em suas palavras: “só se pensa por imagens. Se você quer ser filósofo, escreva romances”. Igualmente com as novelas de Franz Kafka.
Voltando aos países BRICS, a crítica brasileira escolheu seus grandes mestres, entre os quais se destaca o proeminente Machado de Assis. É essencial a leitura dos clássicos de Machado de Assis, poucos discordam disso. Esaú e Jacó é quiçá a sua obra que mais se aproxima dos elementos históricos e políticos de sua época. No entanto, não podemos nos esquecer dos escritores da “periferia literária brasileira”. Do mesmo modo, pode-se falar da importância de Lima Barreto. A sua produção literária, mas também jornalística, é tão ampla quanto fértil para os dias atuais.
Nas escolas brasileiras, faz-se primordial redescobrir o que os Irmãos Karamazov, de Fiodor Dostoievski, queriam nos mostrar. O que está por trás dos irmãos que, a princípio parecem tão diferentes, mas que no fundo constituem um só Ser? Como viver em um mundo sem “valores superiores”: se existe Deus, nada posso, mas, se não existe, tudo posso?
Embora a literatura russa e a brasileira sejam, grosso modo, amplamente conhecidas (a brasileira por questões evidentes), se olharmos para os demais países BRICS, Índia, China e África do Sul, o nosso desconhecimento é sintomático.
Os milenares festivais chineses passam ao largo das nossas escolas. Contos, crônicas e a literatura crítica chinesa foram, ao longo do século XX, esquecidos pelo Ocidente. Não obstante, atualmente editoras brasileiras estão investindo cada vez mais na tradução de obras e no intercâmbio cultural entre os países do Sul Global. Apesar disso, muitos perguntariam: qual a importância da literatura chinesa? A resposta é bastante simples: a mesma importância da literatura anglo-saxônica. Nesse sentido, a pergunta poderia ser inversa: por que lemos George Orwell e não Yu Ha – escritor da linha crítica da Revolução Cultural da China?
Na Índia o nosso desconhecimento literário permanece. As traduções milenares da literatura indiana são um desafio e tanto. As principais obras merecem especial atenção, não somente pela questão da riqueza estética, mas, conforme já levantado neste texto, por sua produção político-filosófica. O período pós-independência indiano é seguido por grande euforia literária. Os grandes escritores pós-1947, talvez sobrepujando as suas próprias obras (no sentido do engajamento político), foram, com especial atenção, O.V. Vijayan, Mahasweta Devi, entre outros. O fio condutor da literatura indiana recente concentra-se no questionamento social, explicado pela ascensão econômica do país depois de 1990. O engajamento político de obras como Fireproof, de Raj Kamal Jha, nos conduz a pensar sobre a precariedade e barbárie que ameaçam a civilização como um todo.
Como não nos lembrarmos de Nadine Gordimer, uma das principais escritoras sul-africana. A autora dedicou parte da sua vida a lutar contra o Apartheid. Sua arma contra o regime de segregação racial era a literatura. Uma das suas principais obras, Um Mundo de Estranhos, traduzido para o português, aborda os primeiros anos do regime do Apartheid e é uma excelente forma de enxergarmos as ambiguidades humanas que tornam o mundo tão estranho.
Nesse sentido, o intercâmbio literário entre os países BRICS – escapando do mainstream das relações sociais norte-sul – pode nos conduzir a novos caminhos – à maneira que o século XXI nos impõe. Novos caminhos implicam em modificar velhas ideias e fórmulas de ensino escolar, ao passo que ajuda na promoção da pluralidade crítica. Isto não é nada menos do que certificar a autonomia dos nossos futuros leitores. O objetivo é menos a imposição de culturas e mais a abertura de novas fronteiras. (Renato Xavier, Outras Palavras)