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O rei está nu – o que está por trás do novo ‘Templo de Salomão’

Por Marcelo Hilsdorf Marotta

Para o I.S.E.R., em gratidão pelo aprendizado.

Quero nessa coluna oferecer para vocês uma leitura histórica e antropológica desta imagem abaixo, uma fotografia da cerimônia de inauguração do assim chamado “Templo de Salomão” no Brás em São Paulo, ocorrida ontem, dia 31 de julho de 2014. Esse “Templo de Salomão”, como vocês sabem, é obra do Líder e Bispo da Igreja “Protestante” “Evangélica” de denominação neopentecostal e de matriz carismática conhecida como a Igreja Universal do Reino de Deus, passando a ser, com sua inauguração, a sede mundial dessa denominação. Quero deixar claro antes de começar que há inúmeras outras denominações protestantes que não são de matriz carismática e neopentecostal como a Igreja Universal, sobre quem o que segue não se aplica. O que segue procura dar conta de entender o que são essas Igrejas “Protestantes” “Evangélicas” neopentecostais de matriz carismática através do que pode revelar a análise cuidadosa das imagens, levando obviamente em consideração outros tipos de fontes.

Sobre isso, quero dizer que há mais ou menos 10 anos, trabalhei junto com uma equipe multi-disciplinar de pesquisadores espalhados por várias cidades do Brasil para estudar as características do universo das igrejas protestantes. Uma das coisas que aprendi nessa ocasião foi que há muitas denominações diferentes de igrejas protestantes, e a diferença entre elas em muitos casos é como a da água para o vinho. Outra coisa que eu aprendi foi que no geral, a maior parte dessas denominações tem um papel muito importante junto à comunidades muito carentes que vivenciam diariamente incontáveis problemas ligados à violência de todo tipo, ao tráfico de drogas, ao abandono total por parte do poder público, no sentido de oferecer para essas comunidades e seus moradores os fundamentos de um outro viver, que dê a eles a chance de experimentar – e portanto de consolidar dentro de si – um espaço alternativo e as relações daí decorrentes pautadas pela água fresca da decência humana e da esperança, longe da realidade brutal e selvagem em que vivem por conta de forças que não estão ao alcance dessas pobres pessoas controlar. Resumindo, trata-se de uma oportunidade para um novo começo de vida, o que muitos abraçam com gosto, de onde ficam claros os méritos dessas denominações. Mas quando se trata de denominações neopentecostais de matriz carismática como a Igreja Universal, o quadro muda um tanto de figura, pois são inúmeros os relatos e testemunhos disponíveis que mostram casos de completa obliteração na prática de muitos Pastores e fiéis dessa denominação em relação à própria mensagem que supostamente eles procuram transmitir como cristãos: a razão disso ficará mais clara com o que segue. Vamos à imagem.

Oficiantes carregam uma espécie de réplica da Arca da Aliança na Cerimônia de Inauguração do assim chamado “Templo de Salomão” no Brás em São Paulo, dia 31 de agosto de 2014 (foto: Agência Estado).

 

Pois bem, essa imagem me parece conter a síntese do que são essas denominações “protestantes” “evangélicas” neopentecostais de matriz carismática como é particularmente a Igreja Universal do Reino de Deus. A razão do uso das aspas até agora nos termos “protestantes” e “evangélicos” ficará clara com a observação da imagem:

1) O traje cerimonial todo branco, com a faixa dourada na cintura, para os “litores” que carregam a cópia cenográfica e também dourada da Arca da Aliança, esse objeto sagrado não propriamente do Cristianismo, na medida em que a) a Arca não faz parte dos atributos iconográficos e litúrgicos da tradição cristã; e b) para os Cristãos, Moisés não é apenas a pré-figuração do Cristo, mas é substituído por este último não apenas no âmbito da Palavra, da Fé e da Lei, mas no âmbito da própria concepção do Divino, o que significa que aqui o que está em evidência nessa recuperação simbólica bastante significativa – e diversa, até onde eu saiba, do restante das denominações protestantes não neopentecostais de matriz carismática – é a atualização, que a arquitetura que serve como palco (trata-se afinal, do Templo de Salomão!) e que os detalhes do cerimonial revelam, de concepções próprias ao Velho Testamento, ai incluída, especialmente, a noção fundamental do Deus A Que Se Deve Temer, um Deus impessoal e vingativo, por oposição à revolução introduzida com a noção fundamental do Deus cristão do Novo Testamento, que é o Deus Que Ama, pessoal e acolhedor. Tudo isso, obviamente, reintroduzindo no bojo dessa atualização a idéia da importância dos complexos procedimentos rituais, tão típicos do Velho Testamento, especialmente os ligados à lógica da purificação, já que a presença da Arca da Aliança implica na sugestão da presença material e concreta do próprio Deus, por oposição ao ritual eminentemente simbólico da eucaristia no contexto cristão, de onde, como mostrou magistralmente Mary Douglas em Pureza e Perigo, quanto mais próximo dos vestígios da presença concreta de Deus na Terra, mais sagrado é o elemento, seja ele um objeto, animal ou pessoa. E se são necessários tantos cuidados quanto maior for a proximidade com esses vestígios, então pureza significa também perigo.

O fundamental aqui é que toda essa atualização que, na verdade, é um verdadeiro andar para trás do ponto de vista teológico cristão, ou seja, trata-se de uma clara renúncia aos postulados fundamentais da Boa Nova trazida por Jesus e um recuo para uma realidade teológica anterior ao próprio Advento, como se Cristo nunca tivesse pisado nessa Terra, e como se, para um Cristão, sua primeira vinda não substituísse definitivamente todo o legado teológico anterior contido no Velho Testamento, enfim, toda essa atualização desse legado do Velho Testamento realizado pelo Edir Macedo aqui e agora, em 2014 em São Paulo através desse cerimonial dentro de uma obra como esse “Templo de Salomão”, nada mais é do que a) a evidência definitiva, de fato e de direito, de que as Igrejas Neopentecostais de Matriz Carismática simplesmente perderam totalmente de vista a Mensagem de Jesus, coisa que qualquer criança minimamente instruída pelos Evangelhos já saberia reconhecer se observasse a prática concreta que marca incontáveis vezes não só os fieis dessas denominações, mas os pastores, com seus discursos e ações marcadas unicamente pelo ódio, sendo o “amor” ai reivindicado apenas o equivalente do comportamento delinquente de gangues selvagens que disputam umas com as outras pela força bruta o domínio e o poder sobre o território comum, protegendo com isso o líder da gangue.

2) A imagem revela discretamente ainda um pequeno detalhe não menos significativo, que em termos práticos ocupa o extremo oposto do campo do ritual, mas que em termos simbólicos se equivale a ele, na medida em que o trabalho, no mundo capitalista, é considerado uma religião, sobre o qual é vetado o questionamento e a dúvida: trata-se da gravata vermelha e o colarinho branco, que marcam as únicas, talvez, presenças do elemento da Ética Protestante, isto é, da importância do trabalho ou da Obra para a Salvação do Fiel, que obviamente é apenas o correspondente material microcosmo do macrocosmo que é a construção desse Templo de Salomão, a maior edificação religiosa do país (ultrapassando em quatro vezes as dimensões da Basílica de Aparecida) que é obra de um dos 10 homens mais ricos do país, esse senhor Edir Macedo, que ficou bilionário ao assumir para si o dinheiro dos fieis que ele explora mediante a usura e, obviamente por isso, só pode recorrer a esse passo para trás na história do Cristianismo porque, do contrário, seria obrigado a enfrentar, mais cedo ou mais tarde, um novo Martinho Lutero protestando na porta do seu novo Templo, que consegue a proeza de não ser protestante nem de fachada.

Quanto a essa síntese ímpar, certamente única no mundo, revelada pela imagem e jogada no tabuleiro de xadrez da História das Religiões, talvez seja apropriado dizer que se trata de um movimento novo e arriscado do ponto de vista tático, que no entanto tem o mérito duplo de deixar claríssimo para quem se dispor a compreender a natureza eminentemente falsa dessa quadratura ideológica cristã que já era há tempos muito evidente para muitas pessoas esclarecidas e atentas, ao mesmo tempo em que passa a ocupar com esse movimento um nicho mais coerente consigo mesmo nesse tabuleiro do panteão das formas religiosas no planeta, revelando ser uma inflexão significativa, em termos teológicos e em nada reduzida à mera novidade material do edifício inaugurado,  que desnuda definitivamente aquilo que a Igreja Universal do Reino de Deus já era em geral na sua prática cotidiana.

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