Por Marcelo Hilsdorf Marotta
No episódio que marcou a opinião pública na última semana, há um aparente paradoxo que eu gostaria de apresentar a vocês, pois dessa observação poderemos tirar algumas lições gerais sobre esse caso e outros semelhantes que podem nos ajudar na luta contra o racismo. Me parece que ficou claro para a grandíssima maioria das pessoas, isto é, que houve um verdadeiro consenso na opinião pública de que o gesto do torcedor do Villareal que lançou a banana para o jogador do Barcelona, Daniel Alves, seja de fato um gesto de racismo. Quanto a isso, me parece que todos concordam. Por outro lado, não há na mesma opinião pública nenhum consenso sobre o significado e o valor dos demais gestos que se seguiram a esse primeiro. Uma parte da opinião pública concorda que a resposta do Daniel Alves foi positiva, outra, que o seu gesto só reforçou o racismo inicial. Indo além na sequência de gestos, uma parte da opinião pública demonstrou forte desagravo ao suposto apoio de Neymar ao gesto de seu colega, enquanto outros aprovaram a campanha iniciada por ele, agora sabemos, tendo por trás um gesto publicitário ulterior. Por fim, entrou em cena o Luciano Huck explicitando o gesto publicitário e mercadológico ao por à venda as camisetas com o slogan criado pelos publicitários, sobre o qual houve um grupo de pessoas que aprovou o gesto e outro grupo de pessoas que desaprovou. Não me interessa nesse momento atribuir valor a cada um desses gestos, para ver quem é que está certo ou errado nessa polêmica. O que me interessa agora é constatar um fato simples por trás dessa micro-história que parece muito significativo do estado de coisas que vivemos em torno dessa questão crucial dentro das nossas relações pessoas e interpessoais como é o racismo: se todos conseguem identificar claramente o gesto de racismo, por que a resposta para o mesmo gesto não é igualmente clara, consensual e compreensível para todos? A resposta é simples, por mais que os dois lados da polêmica insistam em negar a evidência: nós, todos nós, ainda não sabemos como responder ao racismo da forma adequada. Por alguma razão misteriosa, as respostas que temos não nos satisfazem o suficiente, de forma completa e definitiva, inclusive entre aqueles que são de fato contra o racismo. Dito isso, cabe agora voltar a tomar uma posição mais clara, depois dessa introdução mais ou menos geral.
Ao contrário do que dizem certos publicitários, celebridades cínicas e a revista Veja, o racismo está mais vivo do que nunca em nosso país. O ponto crucial dessa questão é que a razão pela qual o racismo continua infelizmente vivo e atuante como nunca se deve menos a esse cinismo e a hipocrisia dos oportunistas de sempre do que à confusão e a falta de precisão analítica na observação da natureza dos fatos cotidianos, que de banais não tem nada, por parte daqueles cuja indignação é sincera e verdadeira. Como diz o pensador Paulo Freire, “seria uma atitude muito ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de forma crítica.” Por isso, é obrigação dos sinceramente indignados apurar seu próprio senso crítico e não esperar que isso seja um dado definitivo sobre o qual não há nada mais a se dizer. Refinar a própria capacidade de observação e os pressupostos da crítica são exercícios constantes e necessários para cada um de nós que está realmente interessado em por um fim a esse tipo de manipulação suja das consciências quando dizem que o racismo chegou ao fim.
Para dar um exemplo simples e significativo, é justamente pela razão acima que o pensamento de Marx continua tão atual até hoje: por que, ao observar o fenômeno do Capital, ele não se contentou em produzir o que seriam os equivalentes dos memes em sua época, como o panfleto do Manifesto do Partido Comunista pode ser talvez caracterizado, escrito juntamente com Engels para ser distribuído entre os proletários que tinham pouca ou quase nenhuma educação formal. Nesse panfleto, as coisas ditas tinham a mesma precisão, rigor e profundidade que os nossos memes e os bordões marcados por hashtags de hoje. Assim, uma primeira mistificação que precisa ser vencida é a de que a ação prática – por oposição ao pensamento teórico – precisa partir de premissas mais brutas para ser exequível. Marx foi à fundo em sua busca por entender com rigor, paciência e acuidade onde estava exatamente a natureza do problema da desigualdade, da miséria, da exploração do trabalhador e da opressão, pois sem atingir diretamente as causas reais desses problemas, qualquer tipo de revolta e de indignação seria apenas perfumaria, que logo se dissipa no ar. Mas Marx foi mais eficaz em chegar à natureza do problema do Capital do que na proposição de uma solução eficaz para ele. Por isso, diante da constatação de que a grande maioria das pessoas simplesmente não foi capaz de observar com acuidade o que exatamente aconteceu nessa polêmica que envolve o racismo, seres humanos, macacos e bananas, faço questão de desenvolver um pouco mais além as minhas reflexões iniciadas nas minhas outras duas colunas aqui no Carta Campinas, intituladas O Gesto Antropofágico de Daniel Alves e A Eficácia Simbólica dos Gestos. Minha intenção, ao dar continuidade a essa discussão, quando muitos já demonstram não ter maturidade para tratar um problema seríssimo como esse com a devida atenção, e já estão impacientes para mudar o assunto da conversa, tratando essa polêmica como “muito coisa do ano passado”, é a de mostrar, ao contrário, que sem nos debruçarmos o quanto pudermos nesse trabalho penoso de eliminar a falsa idéia de que esse é um problema simples e elementar de ser resolvido, e não um tema complexo e espinhoso, cheio de pormenores escorregadios e falsas soluções, que está profundamente enraizado dentro de nossas mentes por forças histórico-culturais que moldam nossas formas de pensar, sentir e agir, não estaremos prontos para superá-lo. Nessa batalha contra o racismo, precisamos compreender mais profundamente que forças são essas que estão em jogo para que sejamos capazes de erradicar de forma mais efetiva o problema, evitando trocar um equivoco por outro.
Aqui convém fazer um alerta preliminar importante contra uma certa indigência essencialista do pensamento: não há no campo do possível coisa que não se preste a funcionar como arma da crítica, desde que a crítica seja bem feita. A pertinência da crítica não está nos instrumentos que ela escolhe, mas naquilo que ela diz. Para um bom crítico, senhor ou senhora de sua arte, qualquer coisa pode ser usada para desconstruir a realidade. Esse apego aos instrumentos canônicos da crítica é que é conservador e elitista. Não tem nada mais avesso à inclusão e à valoração da diferença do que confundir o discurso com as palavras usadas pelo discurso. Do discurso faz parte, além das palavras – ou os gestos -, o contexto no qual são expressas, que inclui a consideração de quem diz, para quem diz, como, quando e onde exatamente diz. A observação cuidadosa de um mesmo gesto revela que ele pode expressar sentidos bem diferentes uns dos outros, quando expressos em contextos diferentes, por sujeitos diferentes. Além disso, um mesmo gesto pode possuir mais de um sentido, pela mesma razão que as obras de arte podem possuir mais de uma interpretação. Tratar as coisas – os significantes materiais, os gestos na sua expressão formal e as palavras na sua materialidade – como se elas possuíssem intrinsecamente um sentido, além de absolutamente ultrapassado por quase 100 anos de críticas desde pelo menos os escritos de Ferdinand de Saussure, é acreditar que as coisas possuam uma essência imutável, o que significa subscrever exatamente aquela que é a concepção maior do homem branco, classista, racista e opressor, que julga possuir uma natureza superior a tudo aquilo que o rodeia, sem perceber que essa posição é na verdade uma construção histórico-cultural datável e circunscrita, isto é, as coisas nem sempre foram assim, não são assim em toda parte, nem precisam ser assim por todo o sempre. Por isso, para o campo da crítica, não existem substâncias proscritas: tudo, absolutamente tudo, pode ser usado como instrumento. A ênfase, aqui, está naquilo que se diz, e não no “com o que se diz”. Toda tentativa de restringir as armas da crítica, particularmente quando essa crítica se dirige a um conjunto de forças que não tem absolutamente nada de adequado ou de bom tom, a um conjunto finito de possibilidades “adequadas e de bom tom” é imediatamente auto-consumida de dentro para fora pela pela própria lógica da exclusão colonialista e do “cagaregrismo” oportunista das elites: se tem uma coisa que os movimentos históricos de resistência aprenderam, sejam eles contra o racismo, contra o nazi-fascismo, contra a homofobia, contra o machismo, etc, é que não há nada melhor para a causa da Justiça do que quebrar algumas regras canônicas. Por isso, comer bananas é um instrumento potencialmente tão legítimo da crítica contra o racismo como qualquer outra coisa, já que, como estou tentando mostrar, é o discurso que importa, não o instrumento utilizado pelo discurso. Entender a diferença entre uma coisa e outra nos ajudará a refinar nossa capacidade de observação dos acontecimentos.
O que está em jogo aqui não é tanto algo sobre o outro, o que ele fez ou deixou de fazer, mas é sobre cada um de nós mesmos e a forma especifica como reagimos àquilo que nos incomoda. Sobre o outro que realizou o gesto criminoso de racismo contra Daniel Alves, a Justiça espanhola já está se encarregando. Além de poder ficar preso por até três anos pelo crime cometido, a própria direção do Villareal, o time adversário à torcida do qual o sujeito pertence, já se encarregou de expulsá-lo por toda vida. Muitos brasileiros vão certamente, com toda razão, lembrar que se o caso tivesse ocorrido aqui no Brasil a sua resolução do ponto de vista penal teria que aguardar uma dúzia de anos, se sequer houvesse alguma consequência sob esse ponto de vista. Contudo, o que quero demonstrar é que essa defasagem de expectativa na Justiça em um contexto e outro não pode ser combatida apenas com brados raivosos do “faça-se justiça!”, nem ao menos com essa expectativa apenas projetada sobre o outro, e não, mais uma vez, sobre nós mesmos. Porque o que faz essa defasagem na prática da Justiça existir aqui no Brasil de forma tão brutal é justamente essa força da alienação que antes faz com que prefiramos aquilo que nos separa do que aquilo que nos une, para ficar mais uma vez na definição perfeita do geógrafo Milton Santos.
Nesse episódio sintomático do nosso nível de consciência cultural, a maior parte das pessoas se embananou completamente por verem no gesto do jogador do Barcelona um gesto de submissão e de aceitação passiva da agressão racista. Certamente que o gesto do Neymar e do Luciano Huck contribuíram retrospectivamente para que essa impressão fosse criada. Mas cada um desses gestos tem uma certa autonomia de intenção, isto é, são distintos um do outro. Cada um deles tem seu próprio contexto e seu campo de significação. Nessa sequência de gestos, um gesto não determina necessariamente os seguintes, nem mesmo deve adulterar o significado dos anteriores. Minha opinião é a de que se quisermos realmente ampliar a nossa consciência sobre como o racismo se dá e, mais importante do que isso, como são as nossas reações a ele, precisamos olhar cada um desses gestos isoladamente, como se fossemos capazes de colocá-los sob o microscópio.
Diferentemente da maioria das formas de protesto que ocorreram nesses últimos dias que eu pude acompanhar, me interessa aqui, antes de mais nada, potencializar um pouco mais o gesto do Daniel Alves do que focar toda minha atenção seja na usurpação do sentido desse gesto promovida pelos publicitários e os novos mercantilistas, seja no ato de racismo em si plenamente condenável do torcedor espanhol, sobre o qual, como eu disse antes, há consenso quase absoluto. Me preocupa mais o nível de incompreensão e desatenção gigantesca do gesto raro, delicado e sensível do Daniel que vejo por parte da grande maioria das pessoas que reagiram ao caso, em vez de reverberá-lo. É esse erro de foco que faz com que a nossa expectativa de Justiça seja tantas vezes frustrada. Precisamos urgentemente reafirmar o valor das soluções positivas e isso só será possível se formos capazes de compreender que para observar claramente a natureza do problema, precisamos nos colocar fora dele, pois se ninguém entendeu, foi exatamente isso o que o Daniel Alves fez. O seu gesto simples, de desapego, libertador, acabou em muitos casos sendo sistematicamente soterrado pelo gigantesco escombro de civilização daqueles que preferiram apostar seu foco na atitude punitiva, repressora, excludente do aparelho de Estado concebido como Prisão, que entrou em franca ascensão nos últimos dias no Brasil. Ao dizer isso, vejam, não estou negando o papel da Justiça ordinária, mas apenas afirmando que essa Justiça ordinária é apenas paliativa se nós não buscarmos compreender o que um evento como esse revela sobre nós mesmos e sobre a forma como reagimos diante das coisas que acontecem conosco.
A essência diferencial do gesto do Daniel Alves pode ser melhor compreendida se considerarmos um conceito precioso do pensamento oriental, particularmente do Zen-Budismo, que é o “wu-wei”. Wu-wei, traduzido literalmente, significa “não-ação”, mas seria melhor traduzi-lo como uma “ação sem esforço”. Por que dizemos que uma ação é uma “não-ação”? Porque ela evita re-agir a uma ação anterior que a teria desencadeado. Em vez de re-agir a essa ação prévia, no caso, a do gesto racista, ela simplesmente age, isto é, ela estabelece um novo começo, uma nova premissa para si mesma, sem carregar consigo o momentum do gesto anterior, daí ser traduzida por “ação sem esforço”. O momentum é um tipo de grandeza que expressa na Física a síntese entre o movimento e a massa de um corpo, que eu uso aqui de forma metafórica para expressar a natureza das relações entre as ações humanas. Por ser desinteressada, desvinculada da resposta reativa típica do Ego, desapegada e estabelecer um novo começo, o jogador do Barcelona zera o momentum que a ação racista anterior teria sobre a sua ação. Ao zerar o momentum da ação anterior, ele deu início a um novo momentum, que desvincula a sua própria ação da ação racista, superando a relação de causa e efeito existente entre os dois gestos. Causa e efeito, para o pensamento oriental, é a essência do que eles chamam de Karma. Ao superar essa relação de determinação entre os gestos, Daniel Alves nada mais fez do que evitar que seu Karma aumentasse, o que seria ruim, pois a Justiça só faz sentido para o pensamento oriental quando o Karma diminui ou pelo menos não aumenta. Por isso, esse é, por assim dizer, o sentido de Justiça espiritual a que me referi no meu primeiro texto, que é diferente da Justiça ordinária. Não há, contudo, uma receita para a boa compreensão do sentido do wu-wei, já que para o pensamento oriental tudo está em eterna mutação, e essa mutação exige que observemos cada gesto, um por um, separadamente, de acordo com seus contextos específicos. Por isso, há situações em que um gesto semelhante ao do jogador tenha sim o significado de submissão e aceitação passiva da agressão, mas aqui não é esse o caso, mesmo que ele não conheça toda essa terminologia. Estar atento para a possibilidade do gesto de superação não é o mesmo que dizer que houve aceitação passiva do racismo, já que a natureza do racismo está nele ser um tipo de agressão, violência contra o outro, que nesse caso específico não seria reduzido caso o jogador tivesse tido um tipo de reação igualmente violenta. A violência alimenta a violência, especialmente quando o wu-wei é possível. Considerar a potência especial dessa forma específica de “resposta” em muitas situações visa a reduzir a escalada sem fim da violência, dando ao racismo uma resposta mais efetiva. Para a lógica do Karma, pouco importa se a sua resposta foi local e circunscrita, pois os efeitos serão gerais e podem surgir quando menos esperamos, daí a necessidade de se romper com a sequência contínua de causa e efeito.
No próximo texto quero mais uma vez dar continuidade a essas reflexões, considerando detalhadamente os gestos do Neymar e do Luciano Hulk, pois julgo que é fundamental irmos mais devagar nessa observância cuidadosa da situação complexa do racismo, especialmente nas formas que escolhemos para reagir a ele. Todos nós estamos envolvidos, e não apenas os racistas, contribuindo para que esse mal se perpetue. Precisamos, portanto, rever nossas formas de reação, para entender porque elas parecem não estar dando certo.