Por Lilian Oliveira
Faço parte de um coletivo de mulheres psicanalistas que se reuniu a partir de uma urgência intelectual em estudar e problematizar sobre o dispositivo binário de gênero, em sua construção histórico, política, social e cultural, pensar criticamente à luz da psicanálise o que pode ela escutar e dizer sobre os vieses e reveses dessa construção imposta, sobretudo a mulher. Mas, o que é a mulher? Bom, papo longo e talvez sem fim.
A partir do momento que decidimos nos reunir, um embrião passou a ser gestado coletivamente por todas nós. E como todas as gravidezes não são sem transformação, o grupo foi tomando uma forma outra de se des-envolver, para algo muito além do atravessamento intelectual. A medida em os encontros aconteciam no afã de nos dispor a mergulhar nas discussões teóricas, algo a mais estava sendo gerado a ali; um lugar de testemunho, reconhecimento e cuidado.
As discussões teóricas ia se mesclando a momentos de fala e escuta de nossas tensões e tenções, a singularidade e o particular apareciam e eram acolhidos, juntas nos ajudávamos a nos parir cada uma em seu tempo. Fomos ao mesmo tempo parturientes e doulas de nós mesmas. E isso tudo acontecendo num fruir tão natural que havia espaço também para acolher nossas diferenças. Do primeiro nó que nos levou ao desejo de fazer o grupo, e dos nossos nós, fizemos laços. Construímos um lugar para nossa mulheridade – como disse Laura -, o que nos fortaleceu individual e coletivamente.
Foi este o tempo do gestar! Queríamos no ato de nos dispor – despor – a pensar e discutir esse dispositivo binário criado nas bases de um patriarcado machista, misógino e capitalista, no qual não mais queremos ser e estar como essa mulher determinada por ele. Rupi Kaur, mulher, poeta, indiana, tem uma escrita que diz: não fui embora porque deixei de te amar, fui embora porque quanto mais eu ficava, menos eu me amava. Não queremos ir embora desse lugar de mulher, queremos ir embora desse lugar ordenatório de uma lógica binarista e estereotipada do que é ser uma mulher. Que nos imputa as sanções de sofrer e morrer. Morrer apenas por ser mulher ou morrer uma morte lenta tentando performar essa mulher. Eva pecadora que merece sofrer e que para se redimir deve se constituir no papel de Maria, imaculada, recata e do lar. Nos incutiram que de fábrica saímos com: instinto materno com função estendida aos homens e a família toda, com bônus de uma instalação multitarefa e bateria retroalimentável e auto-recarregável, ou seja, nem demanda esforço de manutenção, que garantem a habilidade nata para o cuidado e abnegação. Corre que é cilada!
Quantas de nós nesse momento não estão infelizes no relacionamento – seja de ordem for -, no trabalho, na função de mãe, no papel filha etc.,? Nessa construção inventada e colonizada de nós, aprendemos que somos as pessoas a ter que abrir mão dos desejos – inclusive os sexuais – dos sonhos, dos anseios em prol da família, seja ela a de origem ou a constituída, porque esse é o papel que nos cabia, e fomos por muito tempo ‘fiéis depositárias’ disso. Sim, coloco no passado as palavras: cabia e fomos, mesmo sabendo que ainda há muito o que conquistar, e entre o substantivo e o verbo: esperança e esperançar, sem dúvida fico com o verbo! Por quê?
Porque historicamente fomos colocadas como objetos de assujeitamento dessa estrutura opressora que cala, assedia, violenta e, mata não apenas fisicamente, mas de inúmeras formas tão brutais quanto. Não podemos mais nos calar; precisamos trazer à tona tudo quanto até agora foi considerado ordinário. Não podemos mais enquanto pessoas – independente do sexo biológico -, passar vistas grossas as consequências dessa estrutura que ocorre ainda hoje de forma velada na sutileza brutal do cotidiano. E muito menos ainda, nos acontecimentos da ordem do horror, do escárnio, do extremo; não podemos nos indignar apenas quando uma mulher é vítima de sessenta socos no elevador, ou uma outra ter seu rosto desfigurado no dia do seu aniversário, como aconteceu recentemente com Juliana e Samira, ou quando uma Alícia Valentina, uma menina de 11 anos, morre vítima de agressões ‘motivadas’ por sua recusa de ficar com um menino.
E o que me assusta é que até o que deveria ser visto como extremo, pode estar se tornando ares de banal. Me lembro em janeiro deste ano, um jornal abrindo com a chamada: Primeiro feminicídio do ano. Ouvi como: Contagem aberta! O que custou um tremendo mal-estar. Sou mulher, e já passei por muitas violências, inclusive de agressão física. Tenho sobrinhas, amigas, irmã, mãe e temo por todas elas e por todas as mulheres pois tenho a dimensão dos perigos e dificuldade que nos enfrentamos, por ser mulher. Seja lá o que queira dizer, mulher. Nem Freud explicou essa! Ok, precisei de uma dose de ‘humor’ agora para respirar e continuar.
Quantas de nós já morreram e ainda precisarão morrer? Quantas de nós já foram e ainda serão estupradas? Quantas de nós já fomos e ainda seremos silenciadas, injustiçadas, descredibilizadas, desprotegidas na própria família e pela Lei? Até quando seremos culpabilizadas tendo que ouvir comentários do tipo: Não separa porque gosta de apanhar; para fazer um monte de filho não reclamou; ah, mas olha como estava vestida, estava pedindo; mas também, é uma louca, histérica, ninguém aguenta; será mesmo que ela tá falando a verdade? O que será ela fez para ele reagir assim?
Escrevendo isso agora me recordei de uma série que assisti este fim de semana que se chama: Unbelievable, traduzida como Inacreditável, está disponível numa plataforma bem conhecida de streaming. Sem dar spoiler, a trama central é sobre um abusador em série; mas para além, trata de conteúdos como: traumas, violências, políticas, pacto de proteção masculina, descredibilidade feminina, maternidade, sororidade, enfim, dá para analisar a série por vários prismas. A série só é ficção porque está na tela, mas, como a arte imita a vida, tudo ali infelizmente, é da ordem do real. Confesso, a série me atravessou! Senti raiva, nojo, ódio, angústia, vibrei com as detetives, chorei com as vítimas, me emocionei com o que se dá nas entrelinhas. Mas isso é assunto para outra escrita. Fica como dica para assistirem. Me referi a série para terminar esse escrito, propondo um movimento que vejo como saída – ou entrada – a união feminina. Podemos sim fazer uma r-evolução, mas ela precisa ser desejada por nós. Não somos e nem devemos ser rivais como nos induziram pensar. Já se perguntaram quem lucra com essa rivalidade? Pois é. Já leram os trabalhos de Valeska Zanello?
Ser ‘mulher’ deveria nos unir no atravessamento das dores, angústias e medos que sentimos não é de hoje. Devemos continuar a luta das que nos antecederam, de todas as que morreram e sofreram as consequências por suas insurgências e que nos permitiram ter conquistado o que temos hoje. É urgente em nossa geração nos unir para o desmonte desse dispositivo que imperou até hoje. Me veio a mente agora Marielle, ela que carregava Franco no nome. No dicionário, franco: não dissimulado, livre de qualquer embaraço, que não se sujeita a outros. Que possamos ser livre dos embaraços e não sujeitas a esse lugar impostor que nos ofereceram como nosso.
Estar em grupo de mulheres dialogando sobre o que é ser uma mulher, costurando teoria e experiências particular e singulares, é disruptivo; uma experiência tocante e transformadora que por si só, é.
Clarice Lispector em seu livro Paixão Segundo G.H. escreve: “perder-se pode ser um achar-se perigoso”, tomo a liberdade de reescrever como:
Perder-se pode ser um achar-se poderoso!
Tenha coragem de perde-se desse estereótipo fake. Convido você a criar uma fanfic, não no sentido de ficção, mas no sentido de criar uma outra narrativa de realidade que subverta esse arremedo de histórinha que nos disseram.
Nota: A você Alícia Valentina, a todas as mulheres mortas, e a todos familiares que sofrem com suas ausências impostas pela violência de gênero.
@os.nos.de.nos.psicanalise
@outro_dizer
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