.Por Adriana Villar.
Em 1985, o Brasil iniciava o processo de transição democrática, com o primeiro governo civil após 21 anos de ditadura – ainda que com eleições indiretas – em um movimento que culminaria com a extinção de atos institucionais arbitrários e com a Constituinte de 1988, um avanço no resgate de direitos civis, políticos, sociais e culturais.
No mesmo ano, a escritora canadense Margaret Atwood lançava “O Conto de Aia”, uma distopia sobre autoritarismo, controle dos corpos, apagamento de direitos e manipulação religiosa e política para subjugar pessoas, especialmente mulheres. Tudo em nome de um Deus moldado à imagem e semelhança de uma elite masculina com poderes ilimitados sobre a vida e sobre a morte.
Quarenta anos se passaram. O último episódio da série adaptada do livro, no ar desde 2017, está anunciado para esta quarta-feira, 4 de junho de 2025. Espantosas coincidências despertam reflexões inquietantes, como se os tempos atuais tivessem servido de inspiração para a autora.
Inevitável associar ficção e realidade e não pensar na história recente do Brasil (e também na ascensão da extrema direita no mundo). Atwood expõe uma teocracia totalitária instaurada após um golpe de Estado. E que é fruto de retrocessos democráticos, violações de direitos e ameaças às liberdades.
Na ficção de Atwood, a República de Gilead ocupa boa parte dos Estados Unidos, conquistado após uma intensiva campanha em prol do aumento da taxa de natalidade e do resgate de “valores” em um mundo que dizem corrompido. Poderíamos dizer, como o atual presidente, Donald Trump, tornar o país “grande de novo”.
Enquanto os articuladores todo-poderosos desse novo país vivem em suas mansões, controlando a sociedade com mãos de ferro (e impiedosas), pessoas com deficiência são descartadas sumariamente logo de cara. Filhos são separados das mães e entregues às famílias dominantes. Mulheres férteis se tornam aias, daí o título.
Consideradas “impuras” no mundo pré-Gilead, elas são obrigadas a servir os comandantes e suas esposas para ter os filhos que são incapazes de gerar, e sofrem todo tipo de violência se não seguem à risca sua posição submissa. Ser impura, neste caso, pode significar, por exemplo, ser uma “traidora de gênero” (como são chamadas as homossexuais), uma mulher que opta pela não maternidade ou, como a aia que narra o conto, ter se casado com um homem que se divorcia para viver esse novo relacionamento.
Nem voz nem direitos nem identidade
As aias não têm voz nem direitos. E nem nome. Suas novas denominações descrevem bem suas posições. Offred é como a protagonista é chamada – “of Fred”, “do Fred”, seu comandante. Não passam de propriedades, objetificadas. Nunca podem sair às ruas sozinhas. Quando estão ovulando, são obrigadas a participar de uma “cerimônia”, uma embalagem criada pelo sistema que usa da pior forma as escrituras, como se vivêssemos no Antigo Testamento (Jacó, Raquel, Bila), para justificar estupros.
São coagidas psicologicamente, mutiladas, amordaçadas, presas a ferros e sofrem toda a sorte de torturas. Se insistem em não seguir à risca seu papel, acabam penduradas com uma corda no pescoço ou mortas em cerimônias de “livramento” e “purificação”, são enviadas às colônias, locais insalubres onde trabalham até a morte, ou às casas de Jezebel, prostíbulos que escancaram a hipocrisia desses homens e onde são submetidas a mais abusos sexuais.
Os olhos estão por toda parte
O sistema de castas tem ainda as Marthas, da mesma forma subjugadas e subservientes, e que devem se encarregar dos trabalhos domésticos. Escravas a serviço das elites. E também as tias, igualmente implacáveis e que têm a tarefa de treinar as aias para que se comportem conforme o figurino (nesse ponto vem à mente uma certa ex-ministra). Cada casta veste uma cor: a das aias é vermelha.
Às esposas é reservado o papel de… esposas. Quando crianças vestem rosa, frequentam escolas de prendas domésticas e, adolescentes, aprendem como serem virtuosas e servirem seus maridos – a serem belas, recatadas e do lar. São proibidas de ler ou escrever (a pena é ter um dedo cortado e a punição vai aumentando em caso de reincidência), de terem opiniões ou participarem das decisões políticas. Assim, transferem o poder que não têm sobre aias e Marthas, alimentando esse ciclo. Também oprimidas, se tornam opressoras.
Essa sociedade ficcional é composta ainda pelos Guardiões – um exército que está por toda parte e que executa as punições sumariamente – e os Olhos, prontos a denunciar qualquer deslize no cumprimento dessas regras. E o pior, há iguais que denunciam uns aos outros.
E o que isso tem a ver com a gente?
O “Conto de Aia” mostra como sociedades podem, rapidamente, se transformar em regimes opressivos e autoritários, especialmente quando a população normaliza discursos de ódio, a desinformação e o desmonte das instituições. A história recente do Brasil não é Gilead, mas revela como democracias podem ser frágeis se não forem protegidas diariamente.
Um dos aspectos é como demoramos a perceber, negamos e minimizamos sinais – só para citar um exemplo já clássico, é aceitável que alguém diga abertamente que “subversivos” deveriam ser torturados e assassinados, sem julgamento e contra as regras legais estabelecidas pela sociedade? É justificável, em nome da religião, escrever seus próprios mandamentos e incentivar que as pessoas se armem e eliminem a bala seus desafetos? Está na Bíblia, pela qual dizem se guiar: “não matarás”.
Movimentos como o Tradwife (mulheres tradicionais), que prega a dedicação das mulheres exclusivamente ao lar e à família, e dos “legendários”, homens que reivindicam o retorno a uma masculinidade em que ocupam a liderança, são provedores e os verdadeiros donos da casa, se multiplicam, arregimentando muitos corações e mentes, baseados em uma religiosidade distorcida.
Silenciamento, controle e desinformação
Recentemente, dois episódios chamaram a atenção para esse paralelo. Um deles as críticas à primeira-dama Janja, que “ousou” se manifestar em encontro do presidente chinês Xi Jinping com a delegação brasileira. Seu comportamento foi alvo de oposição virulenta, inclusive de mulheres. Afinal, ela é apenas a esposa e não deveria se meter nesses assuntos. O outro envolveu a ministra Marina Silva, atacada e silenciada em uma audiência na Comissão de Infraestrutura do Senado, em uma cena de machismo explícito. Impossível não lembrar de Gilead, onde mulheres não têm vez nem voz.
Nos últimos anos, o Brasil assiste a um aumento no debate e defesa sobre controle dos direitos reprodutivos, com tentativas de restringir o acesso ao aborto legal e que beneficia estupradores. Também de discursos que reforçam padrões conservadores sobre o papel da mulher na sociedade. Assim também com as questões de gênero e sexualidade, sob justificativas religiosas e morais
Sobretudo entre 2018 e 2022, assistimos à construção de narrativas enviesadas, uma enxurrada de fake news, ataques à imprensa, tentativas de desacreditar instituições democráticas e a ciência, além de censuras culturais e tentativas de controle sobre escolas e produções artísticas. Em Gilead, não há qualquer forma de arte, revistas ou jornais. Vimos ainda por aqui o uso crescente da religião para defender projetos conservadores, espalhando discursos que reforçam preconceitos, negam direitos e buscam interferir diretamente na política e nas leis.
Gilead emerge a partir da destruição das instituições democráticas, sob pretexto de combater o caos social e proteger a moral. No Brasil recente, discursos autoritários foram normalizados, com ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso, ao jornalismo responsável e à própria lógica democrática — culminando na tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, quando extremistas invadiram as sedes dos Três Poderes.
Epílogo e futuros possíveis
Para quem não acompanhou a série “O Conto de Aia”, um contexto importante: em dado momento, uma parcela dessa população de oprimidos consegue fugir e encontra abrigo no vizinho Canadá. Toda a podridão do regime vem à tona e, ainda assim, há um séquito de seguidores que continuam a defender Gilead como o paraíso na terra. Só saberemos hoje como essa história terminará.
A do Brasil ainda está em construção e deixamos a conclusão aos leitores. Mas fica o recado: não dá para dizer que ninguém avisou. E a pergunta: que futuro queremos?
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