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Getúlio Vargas: crônica de uma queda

(foto reprodução – psb)

Vargas: crônica de uma queda

.Por Roberto Amaral.

Na manhã de 24 de agosto, Carlos Lacerda e outros graduados próceres da oposição ainda festejavam com brindes de champanhe, na residência do advogado José Nabuco (figura proeminente nas altas rodas cariocas), o pedido de licença a que se rendera o presidente Getúlio Vargas, acuado pela solidão política e humana, e as exigências das forças armadas (que reclamavam sua renúncia), quando uma edição extraordinária do Repórter Esso anunciou o suicídio.

Para surpresa de toda a gente, o antigo ditador encontrara a saída no intricado labirinto em que se vira preso. Acusado de corrupto e coiteiro de marginais (sua inexplicada guarda pessoal), só, traído pelos que deveriam defendê-lo – fosse o guarda-costas Gregório Fortunato, fosse o general Zenóbio da Costa, seu ministro da Guerra que já traficava a permanência (inalcançada) no futuro governo – tomara o destino em suas mãos. Ao sair de cena se assegurava do papel de principal referência da política brasileira pelos anos que se seguiriam. Deixa, como “testamento” um projeto que ainda hoje guarda dramática atualidade. Não é mero acaso que esses 70 anos atraiam a atenção de um apontado como “sem memória”.

Toda derrota, como toda vitória, contém seu outro lado. A oposição perdera o gozo que já prelibava, “vendo” o presidente de volta ao desterro de São Borja, refazendo, sem mais tempo para retorno, os caminhos de 1945, quando os mesmos militares que o haviam feito ditador em 1937 (à frente de todos Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra) o apearam da presidência.

Na contagem dos pontos, todavia, seus inimigos, espalhados por todo lado, no parlamento, na imprensa, nos quartéis, na vida acadêmica e nas ruas, igualmente se poderiam proclamar vitoriosos, pois, no vazio deixado pela saída dramática, instalara-se no Palácio do Catete, ainda quando se velava o morto, o governo de seus adversários, presidido pelo vice Café Filho, marioneta dos militares e da UDN, e aliado na maquinação golpista desde o primeiro momento. Terminaria seus dias como ministro aposentado do Tribunal de Contas do Estado da Guanabara, nomeado por Carlos Lacerda. Não seria, porém, nosso único vice-presidente perjuro.

O 24 de agosto de 1954, fonte de novas veredas na crise da República, começa a ser bordada antes mesmo da posse de Getúlio Vargas como presidente constitucional, e antes mesmo de sua eleição, em 1950. É conhecido o artigo de Carlos Lacerda na sua Tribuna da Imprensa, em que professa: “O Sr. Vargas não deve ser candidato; se for, não deve ser eleito; se eleito, não deve tomar posse; se tomar posse, não deve governar” (04/09/1950).

Vargas, como sabido, foi candidato, vencendo a resistência da família, que o via “um pouco desatualizado, um pouco desencantado” (Artes da política – Diálogo com Amaral Peixoto, Aspásia Camargo et alli, 1986), metáforas de um genro devedor para designar o temido encontro da solidão com a velhice. Getúlio vence o Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da caserna, da direita e das correntes identificadas com o liberalismo, dos democratas dos mais diversos matizes e mesmo de dissidentes comunistas, que haviam participado da resistência ao “Estado Novo” – nome fantasia tomado do salazarismo, com o qual se identifica a ditadura civil-militar liderada por Vargas entre 1937 e 1945, como um dos desdobramentos da chamada “revolução” de 1930, na verdade uma cisão no mando oligárquico, que decretara o fim da República Velha.

Era inaceitável pela direita e pelos liberais, e agora por círculos militares crescentes, admitir que o ditador, derrubado em 1945, voltasse ao poder, que tanto o embriagava, desta feita “pelas mãos do povo”, isto é, mediante o processo eleitoral, base da democracia representativa. Sob os ventos democráticos soprados pela vitória dos aliados na Segunda Guerra, a consagração de Vargas implicava releitura histórica da ditadura e de seu principal astro. Era inaceitável sua absolvição. O 24 de agosto não foi um ponto de partida (não previa desdobramentos), e os fatos que se sucedem adquirem uma dinâmica que não estava nos cálculos dos conspiradores.
O velho ditador, porém, governa de forma irrepreensivelmente democrática, mas não se desfaz do programa que marcara o Estado Novo. A intervenção do Estado no domínio econômico, o privilégio à produção industrial e a defesa dos recursos naturais. Aos quinze anos da “ditadura esclarecida”, também marcados por perseguições aos adversários e censura, devemos a fundação do moderno Estado brasileiro.

Cedo, na contramão do governo do general Dutra, seu antecessor, de aliança subordinada, emergem as contradições com os EUA. É de iniciativa de Getúlio a criação da Petrobras e o projeto da Eletrobras. É de sua iniciativa o confisco cambial, que amenizava a política de câmbio flexível exigida pelo Banco Mundial e pelo Export-Import Bank of the United States. Em 1954 fixa em 10% o limite máximo anual de remessa de lucros e dividendos das empresas estrangeiras. Esta é sua linha.

Assim, Vargas, que não contava com a burguesia aqui instalada, controladora política e ideológica dos meios de comunicação de massas que sempre o combateram, inclui em sua lista de adversários o poderoso governo dos EUA, já irritado com o antigo aliado incondicional, que s recusara recusou a enviar tropas para a chamada “guerra da Coreia”. O país saíra entesourado da Segunda Guerra, tal era o volume de divisas (principalmente em dólar) que acumulara com as exportações de commodities, com os acordos comerciais firmados com os países aliados, e, por força mesmo do conflito, pela queda das importações. Esse colchão, porém, fôra dilapidado em poucos anos, e o Brasil de 1951 era um país de economia em frangalhos, punitiva dos mais pobres. A espiral inflacionária continuara crescendo e em 1953 chegou a 20,8% com óbvias consequências políticas e sociais. Afastavam-se do getulismo a classe média e os trabalhadores, sua base de sustentação. Em abril daquele ano, uma greve em São Paulo conta com a adesão de 300 mil trabalhadores. Em agosto de 1954 o silêncio da classe operária abre caminho para o trânsito livre da direita golpista.

O início da fase aguda da campanha contra Vargas se dá no dia 5 daquele fatídico agosto, quando uma súcia montada às cegas pelo chefe da guarda pessoal do Presidente, em atentado ao jornalista Carlos Lacerda, mata o major da aeronáutica Rubens Vaz, que se fizera seu guarda-costas. A partir daí a política se transforma em arena de uma guerra letal, unindo contra Vargas forças antípodas como a UDN e o PCB, cuja imprensa acompanha Lacerda e sua Tribuna da Imprensa, O Globo e o Correio da Manhã, no Rio, e o Estadão em São Paulo, e a cadeia de jornais, revistas e rádios de Assis Chateaubriand em todo o país, na denúncia do presidente como mandante do atentado, que, por erro de pontaria, matara o militar quando o alvo era o jornalista.

Na manhã de 24/08, o Diário Carioca, matutino, não teve tempo de refazer-se. Circula com a manchete “Getúlio Vargas intimado a renunciar” e, em editorial de primeira página, qualifica o presidente como réu, e pede sua renúncia. Este é também o tom do jornal de Lacerda e de O Estado de São Paulo, o jornal dos Mesquitas, que desempenhará papel destacado na conspiração contra João Goulart. Na linha dos jornalões, a imprensa comunista: a Imprensa Popular, que já no dia 07/08 anunciava, na primeira página, a existência de “Elementos do Catete entre os suspeitos” do atentado, chega às bancas no dia 24 reproduzindo entrevista de Prestes, apresentado como “o grande líder do povo brasileiro”, na qual o secretário-geral afirma que “os trabalhadores brasileiros há muito conhecem os instintos sanguinários do Sr. Vargas e de seus policiais”. Afirma que os comunistas jamais se esquecerão do Estado Novo e que, com o crescimento da impopularidade de Vargas, “os patriotas começam a compreender que o atual estado de coisas não pode continuar”. Na manchete, o jornal põe de mãos dadas Vargas e Eduardo Gomes como servidores do imperialismo. Para vexame dos comunistas, a Imprensa Popular, com a Tribuna da Imprensa, foi empastelada pelas massas revoltadas no momento em que eram incendiados os caminhões de entrega d’O Globo, que então já era o que é hoje.

Nessa manhã de 24 de agosto, as massas, desorientadas, sem liderança, sem palavra de ordem a seguir, saem às ruas sem saber o que fazer, além de chorar a perda do líder. Uma multidão jamais igualada leva o féretro do Catete ao aeroporto Santos Dumont, para a última viagem de Vargas a São Borja.

O apoio, porém, chegava tarde.

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