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O Senado é conduzido por uma espécie de Arthur Lira de smoking, herdeiro da pior política mineira

Rodrigo Pacheco (foto fabio pozzebom – ag brasil)

A centro-esquerda e o dever de agir

Roberto Amaral

É preciso contemplar os desafios do quadro político resgatando algo dos pressupostos que dominavam o pensamento e a estratégia da esquerda brasileira antes do fim do “socialismo real” e da infiltração do ideário neoliberal, que contaminou setores consideráveis do movimento progressista, conquistado pelo imediatismo: a ilusória expectativa de conquista do poder mediante a renúncia ao projeto socialista.

O campo de ação dos dias de hoje nada guarda de lembrança daqueles que deram o tempero do pleito de 1989 – o qual, mesmo elegendo o delfim da ditadura, consagrou, com as campanhas de Lula e Brizola, a emergência eleitoral da esquerda, pela primeira vez na república disputando a presidência. As circunstâncias conhecidas levaram ao Planalto o que sabemos, mas, de outra parte, e por isso mesmo, mantiveram de pé as organizações populares, animadas, logo a seguir, pela campanha pró-impeachment, um segundo momento de politização das massas, na sequência das Diretas Já como uma forma de prorrogação da campanha de 1989, cujas bandeiras foram mantidas de pé. O intermezzo de Itamar Franco, fracassado na sua tentativa pessoal de deter a onda conservadora, desembocou nos oito anos do neoliberalismo paulista, que, nada obstante seu projeto, terminou por abrir espaço ao petismo, uma promessa real de social-demoracia jamais reconhecida pela classe dominante.

Em 2003, porém, vinha ao governo, não mais o PT de 1989, filho das assembleias proletárias da Vila Euclides, mas uma nova força popular, dirigida de maneira pragmática, mais aberta ao diálogo e, por sem dúvida, às concessões aos donos do poder, aos setores mais arcaicos das forças armadas, às oligarquias estabelecidas no Congresso, ao poder agrário, à Faria Lima e ao Departamento de Estado dos EUA. O ponto de partida era este: quem não conquista a hegemonia precisa conciliar para poder governar. Nesse meio termo, uma surpresa foi o bom entendimento pessoal entre Lula e Bush Filho.

Antes das eleições tivéramos a carta-compromisso de 2002, conhecida como ‘Carta aos Brasileiros’, mediante a qual o PT procurava tranquilizar o sempre desconfiado “mercado”, onisciente e onipotente. Seríamos prudentemente reformistas em um capitalismo dito moderno, caminhando serenamente em busca da autonomia nacional possível. Lula foi eleito e reeleito, e por duas vezes elegeu Dilma Rousseff. A história é conhecida, embora ainda carente de interpretação satisfatória. As mudanças subterrâneas que se processavam na base social-política foram ignoradas, até que as primeiras cismas sociais se manifestaram em 2013. A esquerda, com as raras exceções de vozes solitárias (como a de Gilberto Carvalho), não as viu.

No governo, a esquerda institucional e as forças populares e progressistas que a acompanham, se haviam convencido, de que as conquistas políticas são definitivas. Desprezaram a dinâmica própria do processo social, e renunciaram à militância. Desprezaram a organização e principalmente o proselitismo político das massas; ignoraram a crise do trabalho (ainda hoje não têm o que dizer para o seu agravamento, à vista) e, na sua carona, se viram de pernas quebradas com a anomia que se abateu sobre o sindicalismo brasileiro, crise que a nenhum observador do processo social pode haver surpreendido.

As consequências vieram a galope: não tivemos forças para sustentar o mandato legitimo de Dilma Rousseff; não pudemos fazer frente à crise do “mensalão” e, na sequência, à farsa da Lava Jato. Faltaram-nos as forças necessárias para defender Lula, que, como se sabe terminou preso, por quase dois anos, sem o registro da comoção social que nos era justo esperar.

Não foram poucas as derrotas. Não conseguimos deter a desconstrução empreendida pelo mandato do vice-presidente perjuro. Assistimos, aceitando que nada poderíamos fazer, à ascensão da extrema-direita e à montagem política, com inteligência militar, de uma candidatura protofascista que se propunha a resgatar os “valores” da ditadura de 1º de abril de 1964 nos seus aspectos mais sórdidos, pois os militares que então emergiam eram o churume entre os herdeiros dos porões da ditadura.

O regime que se seguiu, na sua abjeção conspícua, teve o mérito de dar fim às ilusões idealistas da centro-esquerda. O Brasil mudara de forma inesperada para nossas expectativas históricas, e ainda agora nos perguntamos o que fazer, sem conhecer a resposta..

No último vagido de nosso fazer político, nos termos conhecidos, impedimos a consagração eleitoral da extrema-direita. O líder derradeiro, todavia, retorna ao Planalto com limitadas condições de governança, a começar por ter de enfrentar o pior Congresso de nossa história, o mais retrógrado, o mais reacionário, o mais anti-nacional, o mais demófobo. O mais negocista, e o de pior qualificação moral e cívica. Essas características seriam já suficientes para cercear um programa minimamente progressista, como de necessidade há de seguir um governo de esquerda. Na Câmara dos Deputados, das suas 513 cadeiras, o governo dispõe de uma bancada (variante segundo as votações), de algo pouco além de uma centena de parlamentares); um coletivo, ademais de politicamente frágil, sem consistência ideológica. Por isso e não só, de apagada atuação parlamentar, em que pesem honrosas exceções individuais.

O que aí está, essa base amorfa e flutuante, é tudo o que o hábil presidente logrou montar, nada obstante os reconhecidos esforços de composição heterodoxa na formação do ministério. Um Senado conduzido por uma espécie de Arthur Lira de smoking (herdeiro da pior política mineira), onde até mandatários dos quais se espera algo de relevante ou digno, agem pelo retrocesso das suadas conquistas sociais. Assim, o jagunço das Alagoas, como antes dele entendeu o notório Eduardo Cunha, seu padrinho político e mestre-escola, poderá decretar o impeachment de Lula com o aplauso da mídia corporativa, aparelho ideológico da classe dominante.

Pela primeira vez, a sério, temos diante de nós uma extrema-direita organizada e articulada internacionalmente, com objetivo claro de tomada do poder, qualquer que seja o meio, como o putsch, que ensaiou em janeiro de 2023, felizmente repetindo o fracasso que marcou o assalto dos integralistas de Plínio Salgado ao Palácio Guanabara (1938).

A direita, a brasileira e qualquer uma, se alimenta na expectativa do golpe: sua base popular se articula na infiltração nas forças militares e policiais associada à mobilização das grandes massas, a indiferença dos liberais e o apoio do empresariado. O processo de construção do que chamamos de bolsonarismo, até aqui, deve ser estudado como peça da maior importância, seja do ponto de vista didático, seja do ponto de vista pedagógico, tão caro para quem considera necessário colher as lições da história.

É preciso que a inteligência na esquerda despreze o consolo de que tudo é fruto ora do acaso, ora do “azar” que persegue nossa história, desconsiderado nosso papel de partidos e instituições políticas na engrenagem da vida social, senhora dos elos que se fecham e que se partem, senhora do progresso, das revoluções e das tragédias.

Não podemos riscar de nossas cogitações o reconhecimento do papel do indivíduo na história, que não é um desenho divino, nem a montagem aleatória de acasos, mas uma construção permanente da ação humana. Portanto, temos tanto a possibilidade quanto o dever de enfrentar a maré montante da extrema-direita. Mas, por óbvio, se podemos e devemos retomar a construção do futuro, aqui e agora, é inafastável que temos algo de responsabilidade pelo passado no qual interviemos. Há um fato objetivo: não tivemos a percepção das mudanças e não nos preparamos para enfrentá-las. Perder, nesses termos, era questão de tempo.

Ademais da renúncia à visão revolucionária do projeto histórico e do proselitismo socialista no contrapelo do avanço do capitalismo – sem ilusões quanto à história presente –, nossos governos não foram capazes de realizar as transformações estruturais que o país pedia, mesmo nos limites do capitalismo e da dependência da hegemonia ocidental. Já caminhando para a terceira década do Terceiro Milênio, permanecemos na periferia do capitalismo; somos uma democracia sem respeito à soberania e à representação, e (ao lado da África do Sul) uma das duas mais ignominiosas concentrações de renda do mundo. Quanto isso deve pesar no suicídio das massas conquistadas pelo cantochão da direita, e de um evangelismo que lhe promete o céu na terra?

A partir deste ponto alguma coisa pode ser explicada, e outras tantas construídas.


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