Da RBA – Demorou quatro anos, mas o cantor, compositor e escritor Chico Buarque recebeu o Prêmio Camões. Em Lisboa, na véspera dos 49 anos da Revolução dos Cravos. E das mãos dos presidentes do Brasil, Luiz Inácio da Silva, e de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. Na plateia, entre outros, a ministra brasileira de Cultura, Margareth Menezes, o escritor moçambicano Mia Couto (premiado em 2013) e as cantoras Carminho e Fafá de Belém.
Apesar de a premiação – unânime – ter sido anunciada em 2019, a entrega só ocorreu agora, nesta segunda-feira (24), porque o ex-presidente Jair Bolsonaro recusou-se a assiná-lo. O Camões é oferecido pelos governos brasileiro e português. Hoje, Chico agradeceu pelo fato de o ex-presidente ter tido a “rara fineza de não sujar” seu prêmio. “Quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade. Porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás”, afirmou o autor de Que tal um samba?, canção que deu nome à turnê iniciada em 2022.
Raízes do Brasil
Emocionado, Chico lembrou no início da fala de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, “de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa”. Disse ter antepassados negros e indígenas: “Como a grande maioria do povo brasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco”. Sérgio Buarque morreu exatamente em um 24 de abril, de 1982.
Apesar do prêmio literário, pelo conjunto da obra – canções, romances, contos, musicais e peças –, Chico disse que gosta de ser reconhecido como cantor popular. Ele lembrou de sua primeira ida a Portugal, em 1966, quando ao lado de João Cabral de Melo Neto esteve em Coimbra, Lisboa e Porto. “Ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de Arquitetura.” Naquele ano, Chico musicou versos de Morte e Vida Severina, apresentado com sucesso na Europa pelo grupo do Teatro da Universidade Católica (Tuca) de São Paulo.
Ataque à cultura
Já o presidente português citou versos da música Meu Caro Amigo (composta em parceria com Francis Hime e dirigido a Augusto Boal) para pedir desculpas a Chico pela demora na entrega do prêmio. E afirmou que o cancioneiro do homenageado é “parte integrante do nosso patrimônio comum”. Lembrou de outras músicas, como Construção, Geni e o zepelim e O que será, além de livros e peças.
“Hoje, para mim, é uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos”, disse Lula. Para ele, o ataque à cultura, “em todas as suas formas”, fez parte do projeto político da extrema direita. “Finalmente, a democracia venceu no Brasil”, acrescentou. Lula disse que o prêmio representava o triunfo do “talento contra a censura, do engenho contra a força bruta”.
Canções, livros e peças
O primeiro livro de ficção de Chico, a “novela pecuária” Fazenda Modelo, foi lançado em 1974. Três anos mais tarde, ele publicou o livro infantil Chapeuzinho Amarelo. O primeiro romance, Estorvo, é de 1991. Depois vieram Benjamin (1995), Budapeste (2003) e Leite derramado (2009). Os romances mais recentes são O irmão alemão (2014) e Essa gente (2019). Em 2021, foi lançado o livro de contos Anos de Chumbo. Para o teatro, o artista escreveu Roda Viva (1968), Calabar (1972), Gota D’Água (1974, com Paulo Pontes) e Ópera do Malandro (1978).
Criado em 1988, o Prêmio Camões teve outros brasileiros homenageados, como Silviano Santiago, vencedor no ano passado. Além dele, Raduan Nassar (2016), Dalton Trevisan (2012), Ferreira Gullar (2010), Lygia Fagundes Telles (2005), Rubem Fonseca (2003), Autran Dourado (2000), Antonio Candido (1998), Jorge Amado (1994), Rachel de Queiroz (1993) e João Cabral (1990). (Da RBA)
Discurso de Chico Buarque – Prêmio Camões 2019
Cerimônia de entrega – dia 24 de abril de 2023, Palácio Nacional de Queluz, às 16h
Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.
Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua.
Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro.
No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.
O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.
Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI.
Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais.
Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde – sou leitor e admirador.
Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.
Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade.
Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte.
Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
Muito obrigado