Ícone do site CartaCampinas

Desde a redemocratização de 1946 não se conhecia campanha eleitoral tão brutal quanto a de 2018

A posse de Lula e o futuro ameaçado

Por Roberto Amaral

No momento em que escrevo dizem as folhas que o desfile do presidente Lula pela Esplanada em carro aberto, a caminho do Palácio do Planalto para a solenidade da posse – nesse 1º de janeiro de 2023 que tanto demora a chegar – está ameaçado, como igualmente ameaçado está o  discurso ao povo, após a recepção da faixa (que até este momento não se sabe de quem receberá), no parlatório do palácio concebido por Niemeyer – uma tradição inaugurada em 1961 e só interrompida durante os longos e trágicos 21 anos da ditadura militar instalada em 1º de abril de 1964, arcaísmo político-ideológico ao qual ainda se filiam, majoritariamente,  os fardados brasileiros. 

(foto ricardo stuckert)


A eventual frustração deveremos a questões de segurança, jamais cogitadas em quaisquer transmissões de cargo na história republicana, pois o clima de festa e confraternização democrática foi, desta feita,  substituído pelo temor à violência de grupos de extrema-direita financiados pelo poder econômico mais atrasado e estimulados pelo discurso do presidente ainda incumbente, e, segundo consta, neste momento curtindo precatado exílio, acantonado em uma das muitas propriedades de Donald Trump.
 
Assessores do presidente Lula já não temem um atentado contra a democracia representativa – insistentemente reivindicado pelo capitão-presidente,  mas uma Dallas brasiliense, e ninguém razoavelmente sensato confia nos serviços de segurança civis e militares postos à disposição da extrema-direita brasileira, como é o clamoroso caso do Gabinete de Segurança Institucional. Os receios, de especialistas e já agora da militância petista e da sociedade, lamentavelmente, não são de todo desarrazoados, e dizem muito  do  país a que fomos reduzidos após quatro anos da insídia bolsonarista. Falam dos dias de hoje e nos previnem sobre os dias de amanhã, que poderão ser ainda mais graves, se não soubermos conhecer as lições que a história insistentemente nos fornece.

Desde a redemocratização de 1946 não se conhecia campanha eleitoral tão brutal quanto a de 2018, anunciadora (para quem quisesse ver) de um  governo absolutamente delinquente, como este que chega ao fim, deixando um passivo moral, ético e político agravado pela corrupção do papel constitucional prescrito para os quartéis. Passivo cujo enfrentamento não pode ser negligenciado, sob pena do suicídio da república. 
O registro histórico não conhece  pleito presidencial levado a cabo  em termos tão polarizados e ao mesmo tempo tão despolitizado quanto o recém-encerrado, travado do primeiro ao último dia, mais precisamente até aqui (pois ele se prolonga como se ao invés de dois tivéssemos três turnos) sob permanentes ameaças golpistas, acenos de ruptura da ordem constitucional, sob a renitente  tentativa de desqualificar  o sistema  eleitoral com o claro objetivo de deslegitimar o pronunciamento da soberania popular. Comportamento delinquente no qual se esmerou o ministro da defesa que está dando no pé. Tampouco se vivenciou, antes, nas vésperas da posse do presidente, clima social  tão carregado de tensão, medo e angústia. Assombrado pela súcia governante, o processo eleitoral foi marcado por dúvidas quanto à sua realização e receios de que o veredito popular não fosse respeitado. A consolidação da via democrático-republicana se apresentava ameaçada  por uma extrema-direita com perigosas relações com a caserna – que desde 1889 procura, com êxito até aqui, constituir-se em autarquia política diante do estado e da sociedade, a qual pretende  curatelar, para ditar os rumos da nação, subordinados aos seus ditames. 

A campanha eleitoral de 1950 (como a anterior, de Dutra, em 1945, a primeira após a queda do Estado Novo) e a posse de Vargas (derrotando o brigadeiro Eduardo Gomes, o candidato da direita) se deu sem contestações. A história de sua deposição pela intentona militar de 1954 escreve outro capítulo. Eleito Juscelino Kubitscheck, tendo João Goulart como vice, em 1955, os militares que haviam deposto Vargas em 1954 ensaiam um golpe de Estado (episódio registrado como o “11 de novembro”), mas são derrotados em pouco mais de 24 horas  por uma ala legalista do exército, e a posse do eleito se dá tranquila e alegre, a última no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Tranquilas foram igualmente  as muitas posses que se seguiram ao fim da ditadura de 1964. Nada que lembre o cenário de hoje. 

No coroamento de quatro anos de pregação golpista, o bolsonarismo, derrotado nas urnas, organiza, país afora, hordas de desordeiros que, acampados nas portas de quartéis, interditando estradas ou promovendo vandalismo, como os da noite de 12 de dezembro em Brasília, convulsionam o país, apelam pela rejeição da vontade eleitoral e a implantação de uma nova ditadura militar, preferentemente sob a chefia do capitão. Às maquinações intramuros sucedem-se  ameaças de insurreição em plena luz do dia, protegidas pelo silêncio dos serviços de segurança e  o estímulo dos ainda governantes, inclusive de chefias militares.
 
Qual o papel dos órgãos de  segurança das forças armadas, da Abin, da polícia federal, das polícias militares e civis da União e  dos estados na defesa da república?
 
Nesse quadro de fomentada insegurança, o ainda   presidente da república primeiro silencia e em seguida  se evade do cargo com o claro objetivo de  estimular as piores especulações golpistas, e os chamados chefes militares, o ministro da defesa e os comandantes das três forças anunciam o covarde abandono de seus postos, estabelecendo criminoso vazio de poder, em momento de transe político consabidamente  grave.  

Há poucos dias foi frustrado um atentado terrorista que visava a explodir um caminhão tanque estacionado nas proximidades do aeroporto de Brasília.  Nada se deve, porém, a operação dos muitos órgãos de segurança instalados na capital  da república, mas  tão-só ao acaso de um motorista haver descoberto um “objeto estranho” na carroceria de seu  caminhão, e haver tido a iniciativa de chamar a polícia, que descobriu tratar-se de bananas de dinamite. Preso, o terrorista confessou que o intento seu e de seus comparsas era interromper  o fornecimento de energia elétrica da capital, e com isso instaurar o clima de caos necessário para ensejar a intervenção dos miliares, repondo a “ordem” mediante o golpe de Estado. Empresário no estado do Pará, o terrorista levara para Brasília um verdadeiro arsenal de guerra, e se articulava com grupos de criminosos  acampados à frente do quartel-general do exército na capital, que deveria cuidar da proteção dos poderes da república. Quem não age, prevarica; prevaricam o presidente homiziado e prevaricam seus ministros. 

É escandaloso o vínculo político e operacional entre os terroristas e os quartéis, em Brasília  e em  todo o país, denunciador de algo entre a omissão delinquente e a ação direta, de estímulo à insurgência e à desobediência (como o exemplo grotesco do general  comandante da 10ª Região Militar, em Fortaleza).
 
Os tempos de hoje, construídos pela erva daninha  da  conciliação que  anima a impunidade – senhora do crime continuado –,  certamente se projetarão no futuro imediato, e já ameaçam o  terceiro mandato de Lula. O projeto da extrema-direita, hoje, visível a olho nu, é a implantação de um governo paralelo cujo objeto é a inviabilização do governo constitucional-democrático e de seus compromissos programáticos. Em poucas palavras: Lula pode governar, desde que não insista em seu discurso de campanha, porque se  um governo do PT é admissível, um governo petista será intolerável. A extrema-direita – o mercado financeiro e seu braço armado, os militares –,  não se consolou com a amplitude da coalizão política que patrocinou a candidatura e a eleição de Lula, e não nutre o mínimo respeito pela expressão da soberania popular,  em país que busca sua republicanização. Dita ao presidente eleito objetivos e limites na economia e na política, interfere na escolha de novos dirigentes, indica o que deve ser feito e o que haverá de ser evitado, como se, realmente, o processo eleitoral fosse uma  farsa: seja qual for o veredito das urnas (quando as eleições são inevitáveis), a troca de governantes só se justifica quando não há a troca de governo, pois este haverá  de ser, sempre,  o governo da casa-grande e de seus herdeiros, vigiado pelo dito “mercado” e contingenciado pelas forças armadas, o “braço forte” da classe dominante brasileira.  Um processo que caminha na contramão da cidadania, que exclui as grandes massas do mercado de consumo e os trabalhadores do mercado de trabalho, transformados em “peças”, como eram os africanos escravizados e vendidos em praça pública, e assim, dispensados de direitos, senão aqueles mínimos que asseguram sua sobrevivência como força de trabalho, sem a qual não há como o capitalista extrair a mais-valia.

O complexo econômico-militar, repito, exige que o futuro governo petista abandone o petismo sob pena de sua inviabilização, mesmo sem precisar de mais uma vez lançar mão de golpe de estado clássico, como aquele que interrompeu o mandato do presidente João Goulart, que ousara defender a reforma-agrária e pôr em curso um vasto programa de alfabetização de adultos. Os militares dizem ao futuro ministro da defesa que o recebem muito bem e muito bem o tratarão enquanto ele não se meter na vida da corporação; que ele pode escolher seus auxiliares, a começar pelos comandantes das três forças, desde que essa escolha coincida com a escolha da caserna, que se chama “ordem de antiguidade”, em que tudo é considerado, exceto o mérito, exceto a visão de mundo, exceto os compromissos com a Constituição.  
 
Vimos, com as experiências de 2016, e principalmente com o ocorrido em 2018, que o golpe pode operar-se por dentro do sistema e nos termos da institucionalidade. A iminência do “governo paralelo”, porém, não deve ser vista como  um determinismo  ou fatalidade histórica, pois há ainda muito recurso à disposição das forças democráticas. 

A disputa política não se encerrou com a apuração dos votos no segundo turno, e prosseguirá no governo e principalmente na sociedade, o campo privilegiado da batalha democrática.  
A realização do pleito e a posse iminente de Lula, constituem, em si, duas grandes vitórias do povo brasileiro que se consolidarão na medida em que nossos estrategistas compreenderem que a  estabilidade do governo depende tanto da ampliação da base de apoio político quanto do combate à extrema-direita, na sociedade e na caserna. 

Distantes ainda do  projeto alternativo da esquerda brasileira, a tarefa de hoje tem dois polos que ao final se unificam: a defesa do futuro governo Lula, dando-lhe condições de corresponder às expectativas das grandes massas, e o combate sem trégua à extrema-direita, em todos os planos, em todos  os campos. (com a colaboração de Pedro Amaral)
 

Sair da versão mobile