Do OutraSaúde – Por Alessandra Monterastelli
Na semana passada, quando o grupo de Cidades da equipe de transição de Lula propôs rever a privatização das águas e do saneamento no Brasil, começou a gritaria. Em manchete, o Estadão queixou-se: entre as ideias da equipe está a de não vender as empresas estaduais que abastecem a população, nem oferecer dinheiro público aos privatizadores. Nessas condições, prosseguiu o jornal, será difícil executar os planos construídos no governo Bolsonaro e transformar a água em mercadoria…
A mídia brasileira não noticiou, mas no mesmo período, a Autoridade Reguladora dos Serviços de Água [Water Services Regulation Authority (Ofwat)], órgão responsável pelo controle e fiscalização do setor privatizado de água e esgoto no Reino Unido, emitiu um alerta inusual para o alto nível de poluição das águas e a baixa qualidade dos serviços de tratamento e distribuição por parte das empresas responsáveis. Os dados são dramáticos. Para a população, água poluída nas torneiras, inundação de esgoto nas casas e praias inservíveis. Para os acionistas das corporações, lucros abundantes.
As empresas Northumbrian Water, Southern Water, South West Water, Thames Water, Welsh Water e Yorkshire Water foram descritas pelo relatório como atrasadas no método de atendimento aos cidadãos e na administração de seus sistemas. O pronunciamento da Ofwat representa uma mudança de postura, após anos em que as empresas não foram devidamente regulamentadas, analisou o The Guardian.
“As companhias de água e esgoto estão falhando quando se trata de cuidar dos clientes, do meio ambiente e de sua própria resiliência financeira. Essas empresas precisam resolver esse desempenho inaceitável com urgência” declarou David Black, executivo-chefe da Ofwat. “Em 2021 e 2022 houve um aumento do número de incidentes graves de poluição, além do descumprimento das obras de tratamento. Apenas quatro empresas atingiram o nível de desempenho para reduzir o alagamento de esgoto nas residências”, concluiu. O relatório aponta um baixo investimento nas estações de tratamento e o aumento de incidentes relativos à inundação de esgotos.
O problema vem gerando mais preocupação diante da perspectiva de crescimento populacional e agravamento dos efeitos das mudanças climáticas. O país privatizou seu serviço de saneamento em 1989, durante o governo neoliberal de Margaret Thatcher. Na década de 1980, as infraestruturas para gestão e tratamento da água sofreram com problemas de subfinanciamento por parte da administração pública. No final da década, o governo vendeu também os ativos do setor à iniciativa privada na bolsa de valores. O modelo adotado se beneficiou da estrutura institucional regionalizada, centralizada e sem intervenção de poderes locais implementada anteriormente à privatização, conforme uma análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, publicado em janeiro de 2000.
Antes da privatização, frequentemente a água não-tratada era despejada ao mar, enquanto o sistema de saneamento de Londres ainda datava da época vitoriana e carecia de estrutura para impedir enchentes durante períodos de fortes chuvas. Mas como ficou claro, a privatização não resolveu o problema. O despejo de esgoto em praias continua uma realidade: em agosto deste ano, a região da Cornualha, no oeste inglês, teve 14 de suas 80 praias interditadas devido ao esgoto.
Críticos apontam que a privatização vem gerando, nos últimos anos, uma evasão fiscal generalizada, ocultando informações sobre um serviço vital através da confidencialidade comercial – além de um aumento de 42% nas contas de água, descontados os valores da inflação.
Em seu editorial de 22 de junho de 2022, o The Guardian afirmou que “a privatização é o deus que falhou”. O jornal afirmou que a promessa de que a privatização traria “bons serviços, economia para o governo e mais investimentos” nunca se concretizaram. Naquele momento, a Anglian Water, uma das maiores prestadoras privadas dos serviços de água e esgoto, acabara de pagar um dividendo de 92 milhões de libras [R$ 591 milhões] aos seus acionistas, entre os quais estão a Abu Dhabi Investment Authority e o Canada Pension Plan Investment, mesmo causando enormes danos ambientais ao país.
A empresa havia sido multada pela Agência do Meio Ambiente no primeiro semestre deste ano devido ao lançamento de esgotos em rios e lagos; a população atendida pela Anglian tinha recebido um aumento em suas tarifas de 5%, enquanto Peter Simpson, presidente-executivo da empresa, e Steve Buck, diretor financeiro, receberam juntos mais de 2,2 milhões de libras como bônus em 2021.
Uma semana após o pronunciamento da Ofwat, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou a Análise Global e Avaliação de Saneamento e Água Potável (GLAAS) da ONU e defendeu “ações globais e locais urgentes para garantir água, saneamento e higiene geridos de forma sustentável e para todos”, a fim de evitar “impactos devastadores na saúde de milhões de pessoas”.
Enquanto 45% dos países estão a caminho de atingir suas metas de cobertura de água potável definidas nacionalmente, apenas 25% dos países estão a caminho de atingir suas metas nacionais de saneamento, segundo o relatório; menos de um terço dos países relataram ter recursos suficientes para realizar as principais funções de água potável, saneamento e higiene. Por fim, 75% das nações relataram financiamento insuficiente para implementar planos e estratégias no setor.
“Enfrentamos uma crise urgente: o acesso deficiente a água potável, saneamento e higiene ceifam milhões de vidas todos os anos, enquanto a frequência e intensidade crescentes de eventos climáticos extremos continuam a dificultar a prestação de serviços seguros”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, que pediu pelo “aumento drástico” de investimentos em água e saneamento. (Do Outras Palavras)