Sentir a fome

.Por Rogério Bezerra da Silva.

Cada pessoa sabe, ao seu modo, o que é fome. Cada uma, de acordo com suas vivências, consegue atribuir um significado à fome. Imagino (pura imaginação mesmo) que uma pessoa de classe média ou alta, ao ser indagada sobre o que é sentir fome, de pronto ela pensa naquela sensação de vazio no estômago quando vai se aproximando a hora das refeições.

Vanessa Mendonça junto à horta da Ocupação Queixadas (foto arquivo pessoal)

E para aquelas mais de 6 milhões de famílias (segundo dados da Fundação João Pinheiro) que vivem em situação precária de moradia, o que é sentir fome? Chamo você, leitor e leitora, a não apenas ler, como também a sentir a resposta a essa pergunta: “É se sentir impotente. É perder a vontade de viver, e é muito dolorido!”. Essa resposta não é proveniente da minha imaginação. Ela me foi dada por Vanessa Mendonça, moradora e liderança da Ocupação dos Queixadas, localizada em Cajamar (SP), quando lhe fiz essa pergunta.

E quem é a Vanessa, que fala com tanta propriedade sobre o sentimento de fome? Ela mesma vai se apresentar a vocês: “Bom, comecei a militar com 11 para 12 anos de idade, em um projeto chamado Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Conheci esse projeto através de um professor de geografia, que militava nele e também dava aulas de teatro em uma igreja que meus pais frequentavam. Em seguida, já com uns 15 anos, comecei a fazer oficinas de teatro e também a militar no MST. Aos 19 anos ganhei uma bolsa de estudo e me formei em técnica em artes cênicas no Teatro-escola Brincante. Trabalhava em ONGs e, ao mesmo tempo, dava oficinas em três assentamentos do MST na região aonde moro, que é Cajamar (SP). Desde 2019 milito no Luta Popular e sou moradora da Ocupação dos Queixadas, na mesma cidade. Inclusive sou neta de queixada. Meu avô paterno fez parte da greve que durou 7 anos e meio, na década de 60, na fábrica de cimento Portland Perus”.

Até então, você, leitor e leitora, atribuía à fome um sentimento de dor e de morte? E tem esse significado para quem vive em situação precária porque ele e ela, morador e moradora de ocupações, não podem preencher o “vazio no estômago”, comum a quem tem fome. Para quem vive em condições precárias de moradia, o “vazio no estômago” é permanente, pois só lhe é permitido fazer “duas refeições ao dia: o almoço e a janta”, como dito pela Vanessa.

O verbo “permitir”, usado na frase anterior, é intencional, pois, como dito pela Vanessa, “em um país onde não existe de fato projetos habitacionais e as terras que deveriam ser do trabalhador estão nas mãos dos grandes bancos e latifundiários”, sequer é concedido a essas famílias o direito de se alimentarem diariamente.

De acordo com dados do “2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil” (realizado pela Rede PENSSAN), publicado em 8 de junho de 2022, 33 milhões de brasileiros e brasileiras não têm o que comer diariamente. A pesquisa também mostra que cerca de 60% da população brasileira convive com a insegurança alimentar (que ocorre quando uma pessoa não possui acesso físico, econômico e social a alimentos de forma a satisfazer as suas necessidades) em algum grau.

Como seria para você, leitor e leitora, em sua rotina diária, conviver, ao mesmo tempo, com a fome, morar em condições precárias e ser tratado ou tratada como criminoso ou criminosa? Pois, saiba, que é assim o dia-a-dia das pessoas que vivem em ocupações urbanas. Não só como dito, mas, sobretudo, como vivido pela Vanessa, os governos, normalmente, “tratam as pessoas que vivem nas ocupações como criminosas”.

Se, por um lado, os governos tratam moradores de ocupações como criminosos, por outro, dá proteção a quem de fato comete crimes, haja vista que “protegem sempre os grileiros”, como dito pela Vanessa. Sim, não se espante, leitor e leitora, também existe grilagem de terras urbanas. E, distinto do que muitos imaginam, de que esse tipo de crime ocorre somente nos biomas protegidos brasileiros, a grilagem pode estar sendo praticada bem ai, ao seu lado, leitor e leitora.

Veja, por exemplo, matéria do portal de notícias G1 Campinas, de 28 de setembro de 2017, que diz que “famílias enganadas por falsos corretores serão desalojadas de área pública em Campinas. A área pública tem 35 mil metros quadrados onde seria uma praça e conta com cerca de 20 casas que já foram construídas. As pessoas compraram pensando que estavam adquirindo terrenos legalizados, mas estavam comprando área pública”. Campinas (SP), município com mais de 1 milhão de habitantes, possui atualmente, segundo dados da Companhia Municipal de Habitação (Cohab), um déficit de 41 mil moradias, o que é visto como uma oportunidade de negócios pelos grileiros urbanos.

Mas, a ação governamental mais recente para favorecer os grileiros foi a aprovação do “PL da Grilagem”, pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que, segundo o Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), “instituiu a legalização da grilagem de terras, já que prevê que até 1 milhão de hectares de terras públicas devolutas do estado de São Paulo possam ser repassadas para fazendeiros e empresas do agronegócio” (publicado no Brasil de Fato, de 29 de Junho de 2022).

Diante disso é, no mínimo, curioso que muitas pessoas (creio que sobretudo para aquelas que acham que a fome é somente uma sensação de vazio no estômago) continuem considerando que criminosas são aquelas famílias que ocupam terras (urbanas e rurais) e não aqueles que grilam essas terras e mesmo aqueles que legalizam a grilagem.

Como dito por Josué de Castro, em “Geografia da Fome”, publicado no longínquo ano de 1946, mas que tem sido cada vez mais atual, “a fome no Brasil, que perdura, apesar dos enormes progressos alcançados em vários setores de nossas atividades, é consequência” do “’fique rico’, tão agudamente estigmatizado por Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro ‘Raízes do Brasil’. É a impaciência nacional do lucro turvando a consciência dos empreendedores e levando-os a matar sempre todas as suas ‘galinhas de ovos de ouro’. Todas as possibilidades de riqueza que a terra trazia em seu bojo”.

Porém, é na “Luta Popular”, como dito pela Vanessa, onde estão concentradas as forças para que as pessoas deixem de sentir fome, em que há união pelo direito à moradia digna e para o combate à criminalização da pobreza. E essa unidade popular, na ocupação Queixadas, vem sendo o fundamento para diminuir o sentimento de fome das famílias que nela habitam.

Na ocupação, a união dos moradores, durante a pandemia, levou à implantação de “um projeto de geração de alimentos através de hortas coletivas nos territórios e isso foi fundamental para garantir o mínimo de alimentos, com legumes e verduras, que as famílias necessitam. E, mais: além de produzirmos alimentos, eles também não contém agrotóxicos”, como Vanessa faz questão de destacar.

Não tenho dados consolidados sobre a produção de alimentos em hortas de ocupações urbanas, mas, uma rápida pesquisa no Google, me permite constatar que essa prática vem crescendo. Além dos Queixadas, há também destaque à horta da Ocupação 9 de Julho (na cidade de São Paulo), da Justo (em São Leopoldo, RS), da Ocupação Esperança (em Belo Horizonte), da Ocupação Nova Esperança (em Campo Magro, PR), dentre tantas outras iniciativas de movimentos que lutam, diariamente, por direitos e justiça social.

Vou, por fim, leitor e leitora, destacar um trecho da apresentação da Vanessa: “Conheci esse projeto através de um professor de geografia”. Vejam vocês a importância dos geógrafos e geógrafas para a luta dos movimentos sociais no território brasileiro.

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