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.Pedro Rui Von.

Um especial de TV que não foi gravado, um show nas ruínas de um teatro romano que nunca aconteceu e quatorze músicas inéditas das quais apenas quatro ficaram prontas. Dois planos abortados e uma meta inalcançada. É dessa sequência de percalços, para citar só alguns, que surgiu o tão reconhecido The Rooftop Concert, última aparição ao vivo dos Beatles, em janeiro de 1969, no telhado dos estúdios Apple, em Londres. Sem pressa alguma de pular os problemas e os fracassos, o documentário Get Back, de Peter Jackson, nos oferece uma imersão às sessões de ensaio dos Beatles no início daquele ano – e que marcariam também o início do fim.

Não é novidade para quem conhece a história da banda que, àquela altura, o quarteto já não era mais unido como no início. Cada um escrevia músicas separadamente, tinha sua própria rotina e sua própria vontade artística – dentro ou fora da banda. John Lennon já havia se apresentado no programa de TV The Rolling Stones Rock and Roll Circus, no final de 1968, ao lado de Eric Clapton, Keith Richards e Mitch Mitchell, batizados de The Dirty Mac. George Harrison manifestava a ideia de lançar um álbum solo, já que suas canções nunca tinham tanto espaço nos discos dos Beatles; e Ringo Starr se preparava para estrelar o filme Um Beatle no Paraíso, ao lado de Peter Sellers. A novidade em Get Back está no olhar humanizado que se coloca sobre a rotina do grupo, ao apresentar quatro rockstars mundialmente conhecidos sob uma perspectiva quase de funcionários de uma empresa que precisam entregar um projeto em duas semanas. Sem desmerecer ou questionar o lugar de ícones que os Beatles já ocupavam na época, a narrativa destaca uma condição pouco lembrada sobre eles: a de seres humanos.

O que o filme traz à luz é que apesar do legado incontestável e da influência que exercem há quase 60 anos na cultura pop, John Lennon e George Harrison foram e Paul McCartney e Ringo Starr são pessoas. Seres humanos. Gente. Igual a você, igual a mim, acredite se quiser. Pessoas com qualidades, mas também com defeitos, vícios e travas. Com altos e baixos na carreira.

Para um artista, particularmente, é libertador olhar para os Beatles e não vê-los como gênios ou mágicos, mas sim reconhecer que mágica é eles terem feito aquela música juntos sendo apenas seres humanos. É eles terem se encontrado naquela época, naquele contexto, e depois, encontrarem o empresário Brian Epstein, o produtor George Martin, a fotógrafa Astrid Kirchherr e o músico Billy Preston, este com o mérito de ter sido a cola que manteve os Beatles unidos por mais alguns meses no final, resgatando ânimo sem o qual certamente não existiria o álbum Abbey Road. É saber que alguma faixa que eu amo e considere perfeita já esteve empacada, faltando letra, com arranjos manjados antes de se tornar algo que tanto admiro. É ver que apesar dos obstáculos, criativos ou afetivos, eles sempre davam o melhor de si quando era preciso.

O próprio show no telhado se mostra tão memorável graças à postura de trabalho em equipe que eles assumem em um momento decisivo. Sua beleza está na cumplicidade e no respeito que eles tinham mesmo sem estarem notavelmente felizes com a banda. Está no entrosamento emocionante de John e Paul, trocando olhares e faíscas, arrancando o melhor do outro no palco, como nenhuma outra dupla de compositores conseguiu fazer ao vivo. Jamais houve outra banda relevante que tivesse dois vocalistas principais igualmente competentes e carismáticos. John e Paul não se complementavam no sentido de um suprir as falhas do outro. Eles simplesmente eram em dobro. A única banda a ter duas pessoas ocupando a função mais importante no palco, embora Paul confesse em uma conversa marcante do filme que sempre se sentiu o segundo chefe.

Fica evidente, portanto, que a magia dos Beatles não está em compor obras-primas com facilidade, até porque não é o que aparece em Get Back. Ao contrário: durante as quase oito horas de filme, somos testemunha de muita lapidação até finalmente começarem a brilhar joias como Let It Be ou Don’t Let Me Down. Impossível não lembrar da famosa proporção “95% de transpiração e 5% de inspiração”, já defendida por Tom Jobim e Igor Stravinski, compositores tidos como gênios, justamente.

A importância do documentário de Peter Jackson é que até então só tínhamos entrado em contato de certa forma com aquilo que deu certo nos Beatles: os álbuns, os hits, o furor da beatlemania, enfim, os momentos mais inspirados e certeiros deles registrados em músicas e vídeos. Tomamos o suco sem ter visto o bagaço. Ao passo que o contraponto de Get Back é a miscelânea de desencontro, falta de inspiração, de foco, discussões, tédio e problemas técnicos dos mais variados, como a péssima acústica dos estúdios Twickenham (afinal era um estúdio de cinema), microfones dando choque e lanchinhos tão modestos quanto os que recebemos nos postos de saúde depois de tirar sangue.

A relevância desse viés está não só em mostrar que até artistas do calibre dos Beatles sofrem perrengues como às vezes estes são etapas fundamentais para algo maior que virá na frente. É da repetição e persistência que nasce a música Get Back, por exemplo, em uma já consagrada cena em que Paul McCartney balbucia melodias acompanhado de power chords no baixo, diante de George e Ringo bocejantes. Um momento claramente entediante (para George e Ringo) e incômodo (para Paul, que está tentando achar algo que ainda não apareceu), mas que foi crucial para o surgimento de um dos maiores hits da história da banda.

Não se trata aqui de romantizar perrengues, mas de dar o devido valor ao ócio, à repetição e ao processo, sempre ofuscados diante da sedutora narrativa da inspiração divina e do gênio absoluto. Afinal, é chato passar horas no instrumento sem conseguir criar algo que soe legal. É chato escrever e reescrever versos num papel pra depois amassá-lo e jogar no lixo. Mas são esses processos os ingredientes das obras geniais, e não uma inspiração fruto de um estalo.

Nesse sentido, o filme faz um favor enorme em não sucumbir à narrativa sedutora do mito dos gênios, tão prejudicial e nociva não só a artistas mas a qualquer pessoa. Já que cada um de nós enxerga como ninguém os próprios defeitos, que nos seguem como sombra. De modo que, toda vez que nos deparamos com uma história amparada pelo conto da genialidade perfeita em que se esconde o processo, nossas imperfeições pesam como pecados, e não como desafios transponíveis.

Pedro Rui Von é compositor, cantor e jornalista.