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A crise no Cazaquistão e a falsificação de realidades

Um debate sobre a geoestratégia no limite da Ásia

.Por Bruno Beaklini. (@estanalise)

A crise no Cazaquistão, datada na primeira quinzena deste ano, nos alerta para a necessidade do debate conceitual franco e preciso, sem cair em armadilhas de tipo “jogo de torcidas” ou “falsificação das realidades” para enquadrar o discurso válido. Neste texto, aportamos um grão de areia através de uma mirada do Oeste da Ásia, pensando de forma franca por e pelo Eixo da Resistência e compreendendo a ilegitimidade dos países ocidentais na região.

(foto Boztay_Akimkhan – pbl)

O início é conceitual. Os países da massa continental asiática operam cada vez como territórios econômicos autônomos em relação ao Ocidente, especificamente os Estados Unidos. Liderados pela China como superpotência continental e global, passando pelo Irã e sua capacidade de resistir a mais de 40 anos de sanções – incluindo o desligamento do Sistema Swift – e culminando nos territórios de maioria islâmica, árabe ou não, confrontando ameaças ocidentais (como a entidade sionista e o apartheid programado), mas também disputando entre si. No limite do jogo vemos a disputa entre as “Europas”, no tabuleiro da luta eurasiática.

Outro debate necessário é o da política doméstica. Infelizmente, nem todo governo anti-imperialista ou defensor da soberania de seu povo e território é virtuoso. Algo semelhante se dá ao revés, pois justas lutas por autodeterminação podem estar de fato contaminadas por suas relações e apoios externos. São temas distintos. Direitos sociais fundamentais e causas de soberania popular são sempre defensáveis para suas populações. Desde que partam da premissa de não se aliarem a projeções de poder imperiais do ocidente.

O “grande jogo”, versão século XXI

O começo é simples. Sempre vai haver uma duplicidade de interpretação quando tivermos uma projeção de poder anglo-saxã contrapondo a presença do Kremlin na massa continental asiática. O Grande Jogo, iniciado ainda no final do século XVIII, contrapunha as projeções de britânicos e russo-bizantinos. Na corrida rumo ao Índico e Mar da Arábia, os dois impérios ocidentais davam como favas contadas a incapacidade- total ou parcial- de povos, sistemas políticos e sociedades concretas do Sul da Ásia e o “Grande Oriente Médio” (conceito da métrica londrina que reproduzimos de forma quase imediata) de buscarem suas próprias saídas. A derrota do Império Mogul e a avançada de Nicolau II no Cáspio, assim como a progressão ferroviária do Império Czarista, provaram o que a Marinha de Sua Majestade pilhava e roubava em todos os lugares da Terra.

Não há como debater a disputa atual sem levar em conta essa dimensão histórico-estrutural. Países como o Irã, ainda chamada de Pérsia, e o próprio Afeganistão, evitaram os invasores britânicos e ocidentais, mas na Ásia Central indo até a Costa Pacífico, Moscou e São Petesburgo colocavam à prova a decadência chinesa. Tanto é que a grande entrada do Império do Sol Nascente no século XX foi a Guerra Russo-Japonesa e a derrota avassaladora do czar. A formação da Rússia moderna passa pelo período soviético, a derrota na Guerra Fria e tenebrosa ascensão das oligarquias nos espaços pós-soviéticos. Em parte, tais oligarcas formaram um bloqueio do sistema político e se confundiram com o próprio aparelho de Estado. Noutras formaram máfias ou, como diz o conceito do capitalismo do século XXI, “nexo político-criminal”.

Definitivamente são estes os conceitos-chave que defensores da projeção de poder da OTAN através da Ucrânia fazem questão de “esquecer”. Algo semelhante ocorre na defesa virtuosa acrítica do exercício de poder através de Vladimir Putin e seu gabinete. Na Rússia pós-soviética, nos anos de “governo” Yeltsin, a área core da antiga potência foi sendo dilacerada, até chegar no anel mais próximo dos centros de poder. A retomada do controle dos recursos essenciais, como as empresas Gazprom, Rosneft, LUKoil e Bashneft, foi uma necessidade aplicada como Razão de Estado. Todos os meios necessários foram empregados de modo a controlar oligarcas desleais ao aparelho de segurança e promover grupos amigos do aparelho de segurança.

No limite das definições, os caminhos da soberania da Federação Russa passam pelo controle da população de credo islâmico (como os acordos com as elites dirigentes na Chechênia), na projeção de poder pós-soviético (exemplificado pela intervenção via acordo diplomático da CSTO) e na defesa de sua linha defensiva.

Está totalmente fora de cogitação para Putin e os demais tomadores de decisão russos, admitir um arsenal nuclear da OTAN na Ucrânia e qualquer ameaça de cerco ao oblast e enclave naval de Kaliningrado, no Mar Báltico. Situação semelhante está na Bielorrússia e sua rivalidade com a Polônia. Em termos de política doméstica, o governo Aleksandr Grigorievitch Lukashenko é indefensável. Mas, existe de fato oposição em Belarus que não se comprometa com as redes de terceiro setor alimentadas pela inteligência de países ocidentais?

E porque os “analistas” internacionais não lembram do óbvio? Expondo as origens oligarcas e mafiosas de Ihor Kolomoisky, “padrinho” do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Ou o passo seguinte, demonstrando o governo do ex-comediante como vertical e aplicando Lawfare de modo semelhante ao de Putin na sua luta contra as facções de oligarcas apoiadoras dos acordos que dilaceraram a economia russa na década de ’90? Trata-se de não explicar nada e gerar elementos de discurso operando de forma propagandista.

Os passos conceituais conclusivos

Neste artigo defendemos uma posição analítica. As relações do Mundo Islâmico, Sul, Oeste e Leste da Ásia com a Rússia não são tranquilas e menos ainda harmônicas, mas podem ser complementares quando o inimigo comum – EUA, OTAN e aliados ocidentais – se manifesta. Afirmar essa obviedade está anos luz distante do mecanismo de propaganda fornecida por “analistas” a favor do ocidente, mas também reprodutores de obviedades “torcendo” por Beijing e Moscou.

É praticamente impossível fazer análise do Sistema Internacional sem separar os níveis conceituais ou apenas reproduzindo o cinismo dos realistas e geopolíticos. Não há como pensar o Eixo da Resistência projetando convicções doutrinárias disfarçadas de “teoria”.

O conceito de geoestratégia do título evidentemente ultrapassa a massa continental – daí seria geopolítica – e dialoga com a interdependência complexa gerada pela China e sua economia mundo baseada nos tomadores de decisão em Beijing. Reconhecer essa evidência é o primeiro passo. O segundo é admitir que há vontade própria nas regiões da Ásia – como é o caso emblemático do Irã – e a tendência é a integralização dos territórios econômicos, com economia parcial e soberania total ou relativa. O terceiro é saber que em termos de acordo securitário, a Rússia não está blefando e vai defender tanto o seu espaço pós-soviético (como na Ucrânia e Belarus) como o eurasiático (através da CSTO). O quarto é entender que os países da OTAN são vistos como invasores, usurpando soberania e gerando o caos nos territórios do Continente, tal e qual o Ocidente faz desde o século XVIII e só não vai seguir fazendo se for impedido. (Do Estratégia e Análise)

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