.Por Marcelo Mattos.
Numa visão mais plana, a Rua Tonelero, quem diria, finda em Juiz de Fora. No dia 05 de agosto de 1954, o chamado Atentado da Rua Tonelero, Copacabana/RJ, feriu o jornalista Carlos Lacerda, ferrenho opositor do presidente Getúlio Vargas e culminou na morte do seu guarda-costas, major-aviador Rubens Vaz. Nesse cenário, deu-se início a uma crise política sem precedentes no governo de Vargas e o levaria ao suicídio em 24 de agosto daquele ano, dezenove dias após a ocorrência. Passados quase 70 anos há incontáveis dúvidas insolventes e versões ainda contestadas referentes à sua causa.
No brilhante livro de Carlos Araújo Lima, “Os Grandes Processo do Júri”, ao reproduzir o Processo Tonelero, relata que Gregório Fortunato, chefe da segurança pessoal de Vargas, apontado como mandante do crime, estando preso na Base Aérea do Galeão, nunca lhe foi permitido avistar-se e falar livremente com seu advogado, Araújo de Lima. Somente no dia 29 de agosto de 1954 o seu defensor pode encontrá-lo, na presença do promotor da Justiça Militar, Nelson Barbosa Sampaio e Cel. João Adil de Oliveira, encarregado da comissão de inquérito policial-militar, recebendo deste a estarrecedora ordem: o de poder falar a Gregório Fortunato somente como amigo e não como advogado.
No recente debate instaurado sobre o importante documentário do jornalista Joaquim de Carvalho “Bolsonaro e Adélio: Uma fakeada no coração do Brasil”, reavivando, após três anos, a possível facada no então candidato à presidência, Jair Bolsonaro, na cidade mineira de Juiz de Fora (a menos de 30 dias do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018), nos chama a atenção que estamos diante de fatos com imensas similaridades políticas e com os mesmos contornos jornalísticos, jurídicos e policiais.
Afinal, por que a chamada grande imprensa, tão zelosa pela veracidade da informação, que tanto se ufana como o “quarto poder”, não tenha saído do seu casulo de subserviência política, da sua inércia empresarial atrelada ao poder institucional, para cumprir, ao menos, os princípios elementares do bom jornalismo, como a imparcialidade e o compromisso fundamental com a verdade dos fatos, pautado na precisa apuração e correta divulgação dos acontecimentos.
Não é de se estranhar que essa grande e majestática mídia conservadora, os chamados jornalões (Folha, Globo, Estadão, etc.) queiram pautar outros veículos da chamada imprensa alternativa e a sociedade a partir dos seus compromissos econômicos (em primeiro lugar) e políticos que demarcam a sua linha editorial e seus interesses corporativos.
Esses mesmo veículos de comunicação foram avalistas e apoiadores num acordão incondicional à Operação Lava Jato e ao ex-juiz Sérgio Moro, o magistrado que a “chefiou” e comandou uma série de violações a direitos e garantias processuais e constitucionais; prisões ilegais de jornalistas, investigados e seus familiares; a instalação de escutas em celas e escritórios de advogados sem autorização judicial; o show midiático em inúmeras buscas e apreensões, entre outros, além do vazamento da delação de Antonio Palocci às vésperas das eleições para interferir e favorecer ao candidato Jair Bolsonaro, que indicaria o então juiz a ministro da Justiça e a uma possível vaga ao STF, como pactuado.
Não é de se estranhar que esse mesmo ex-juiz e recém-empossado ministro da Justiça, juntamente com o candidato eleito à presidência da República realizassem a promoção de inúmeros agentes públicos (policiais e membros do judiciário) relacionados à suposta facada?
Senão vejamos:
É natural que o delegado Rodrigo Morais Fernandes, responsável pela apuração do caso, tenha sido indicado para ocupar a diretoria de inteligência da PF (Polícia Federal)?
O superintendente da PF em Minas Gerais, Cairo Costa Duarte, que conduziu o inquérito sobre a suposta facada, em abril de 2021 é indicado a Diretoria Executiva da PF?
A procuradora da República Zani Cajueiro, do Ministério Público Federal em Juiz de Fora, que acompanhou o Caso Adélio é promovida em agosto de 2020 ao cargo de Procuradora Regional da República? É natural que o juiz Bruno Souza Sabino, da 3ª Vara da Subseção Judiciária de Juiz de Fora, tenha autorizado a ilegal quebra do sigilo bancário, busca e apreensão de livros caixa, recibos, comprovantes de pagamento e telefone do advogado de defesa de Adélio Bispo? O que dizer do segurança da campanha presidencial, o policial federal Danilo Campetti, nomeado em abril de 2020 como assessor especial da Sec. Assuntos Fundiários, do Ministério da Agricultura; do agente João Paulo Dondelli, o segurança que deteve Adélio Bispo no momento da fatídica facada, nomeado em julho de 2021 ao segundo cargo mais importante da representação diplomática em Portugal, com salário de US$ 12 mil dólares, mais US$ 4 mil dólares de auxilio moradia? É natural que outros policiais envolvidos diretamente na segurança do então candidato recebessem promoções e nomeações; que outros membros da força-tarefa do Ministério Público de Curitiba fossem nomeados para altos cargos no atual governo federal?
No Processo nº 4600-15.2018.4.01.3801, dessa mesma 3ª Vara Federal de Juiz de Fora, resumidamente é descrito que “o réu, em meio à multidão, em determinado momento, retirou a faca de bolso interno da jaqueta que vestia e, por duas vezes, tomado impulso para desferir golpes que apenas cortaram o ar, expondo a perigo os presentes. Minutos depois, às 15h43min, o réu posicionou-se à frente da vítima e logrou esfaqueá-la no abdômen, mantendo a faca oculta por invólucro…”.
Passados três anos, a indolência da mídia hegemônica não se dispôs minimamente a ler os autos ou, ao menos, questionar que por duas vezes Adélio Bispo tomou impulsos no meio da multidão e entre dezenas de vigilantes agentes de seguranças, cortando o ar com uma faca em riste, a desferir golpes, “expondo a perigo os presentes” na tentativa de alcançar o abdômen do candidato, sem que ninguém o detivesse, absolutamente ninguém, nenhum dos policiais à paisana que o cercavam e acompanhavam há horas.
São incontáveis os motivo que levaram a grande imprensa à omissão e parcialidade, se tornando uma correia de ligação, siamesa nos desmandos do ex-juiz e ministro da Justiça Sérgio Moro, do golpe institucional contra a presidente Dilma Rousseff, das provas ilícitas e ação arbitrária que levaram a prisão do ex-presidente Lula, interferindo decisivamente na eleição do atual presidente e respaldando integralmente as políticas econômicas de destruição do patrimônio nacional, o aniquilamento dos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários de brasileiros, o desmatamento florestal, invasão de terras indígenas e o extermínio de suas nações.
Como ocorreu em 1954, em 2018 a grande mídia volta a assumir o tão almejado protagonismo dos destinos da política, o condão policialesco a promover a barbárie judicialesca e conduzir uma ruptura institucional através da criminalização política contra os partidos, sindicatos de classe e direitos, entregando o país à própria sorte e aos desmandos e à corrupção de um governo de ocupação militar.
Nada a estranhar que a imobilidade desta grande mídia não se dê ao trabalho ou esforço profissional de ousar questionar os fatos controversos, afinal, para estes setores da mídia hegemônica é mais cômodo resignar-se, assentir, aquiescer, por exemplo, as resoluções dos inquéritos militares sobre os atentados do Riocentro ou Tonelero ou na adutora do Guandu. Simples assim: é melhor não ver a enxergar.
Ao se prender apenas ao neologismo, da suposição ou potencialidade da falsidade de fatos que se relacionam ao abdômen ou ao ar cortado por uma lâmina (fake?), sem nada investigar, pesquisar por inércia própria ou comodismo ideológico, torna a atividade jornalística descompromissada, volúvel e inútil.
É tão difícil ou trabalhoso examinar e perscrutar a cerca das inúmeras supostas ligações da família Bolsonaro com a milícia carioca, com policiais e militares envolvidos em diversos crimes que vão da corrupção ativa, peculato das “rachadinhas”, condecorações a criminosos e torturadores, tráfico de influência, armas e drogas e uma vasta extensão de delitos transpostos, conduzidos para as hostes e ações do atual desgoverno, culminando com o morticínio de quase 600 mil vítimas pela Covid-19.
Pois é, passados quase 70 anos, a Tonelero fica logo ali, para aquém da divisa de Juiz de Fora, para além dos muros da Vivendas da Barra…