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Paulo José, o ator da nossa gente

.Por Marcelo Mattos.

“… e Macunaíma subira pro céu, porém ficara o aruaí de séquito
daqueles tempos de dantes em que o herói fora o grande Macunaíma imperador.”
(Macunaíma, de Mario de Andrade)

“Tem mais não” o Uraricoera, as Incabiabas, o Muiraquitã tem não. Tudo tornou-se uma difícil noite sem fim, imensa no desaguar lento de lembranças tantas e uma saudade latejando lá no fundo, bem no dentro da gente. Paulo José nos deixou em pleno mês de agosto, num país esfarelado, atravessado pela dor, perdas tantas e desencontros.

(foto filme -policarpo- div)

Era um ator fabuloso, rapsódio, épico, imaginável, sim, pois a cada atuação cênica empreendia uma aragem, um sopro à sua imagem (quase-aurea) que permanecia vivamente condensada, livre, indelével na lembrança.

Afinal, o teatro é esse lugar de ver e estabelecer o ser humano no mundo, o te-atrium respirando o tempo, o vento, um gesto animado por fazer. No entanto, a imensidão do trabalho de Paulo José que tanto marcou a dramaturgia brasileira no teatro, cinema e a TV, vinha ano a ano se ressentindo das implicações e limitações do Mal de Parkinson, doença que há 20 anos convivia.

Nascido na cidade gaucha de Lavras do Sul (1937), logo aos dez anos de idade teve o seu primeiro contato com o teatro na escola primária, em Bagé. Ao mudar-se com a família para Porto Alegre, em 1954, ainda cursando o científico no colégio Nossa Senhora do Rosário veio a conhecer o teatro universitário da União Nacional dos Estudantes (UNE), integrado por jovens que marcariam a arte cênica brasileira, como Antônio Abujamra, Luiz Carlos Maciel, Lineu Dias e Fernando Peixoto, atuando na montagem de Primeira Folha entre o Vermute e a Sopa, de Arthur Azevedo.

Ingressou na faculdade de Arquitetura da UFRGS, abandonando o curso em 1958, ano em que formou o célebre Teatro de Equipe, local de abrigo afetivo para a intelectualidade porto-alegrense, motivador, inclusive, na proliferação de outros grupos, espaços e com nomes, como Paulo César Pereio, Ítala Nandi, Lilian Lemmertz e Fernando Peixoto.

A influência e efervescência do grupo chama a atenção do consagrado crítico Sábato Magaldi que, em 1959, desembarca na capital gaúcha e, impactado, escreve no suplemento literário de O Estado de São Paulo, que “em Porto Alegre, há uma surpreendente avidez de teatro, por certo sem paralelo em outra cidade brasileira”. Certíssimo: o Teatro de Equipe era uma torrente criativa, irradiando tanto a experimentação cênica quanto o engajamento no debate político, com a apresentação de montagens inesquecíveis de peças como Pedro Mico (de Antonio Callado), O Despacho (de Mario de Almeida) e o clássico Esperando Godot (de Samuel Beckett).

Em 1960 já está em São Paulo, iniciando a sua profissionalização com o ingresso no Teatro de Arena, onde encenaria Testamento de um Cangaceiro, de Chico de Assis, Revolução na América do Sul, ambas direção de Boal, Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht e A Mandrágora, de Nicolau Maquiavel, no qual recebe a então honraria máxima do teatro brasileiro, o Prêmio Moliére, como melhor figurinista, em 1964. No grupo Arena vem a conhecer a atriz Dina Sfat, com que se casou em 1968 e teve três filhas. Sua trajetória segue com encenações elogiadas de Seis Personagens à Procura de um Autor (1977), de Luigi Pirandello, estrelado por Dina Sfat, Murro em Ponta de Faca (1978), de Boal, Transaminases (1980), de Carlos Vereza, e Em Família (1980), do parceiro Domingos de Oliveira.

No Cinema, teve participação marcante e premiadíssima, atuando em cerca de 50 filmes e recebido mais de 20 premiações como melhor ator nos mais importantes festivais do país, além de deixar uma galeria de personagens que pairam na memória cinematográfica brasileira.

Estreia em 1966, interpretando um padre no drama O Padre e a Moça (com Helena Ignez, Mário Lago) direção de Joaquim Pedro de Andrade, com roteiro baseado no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade, ganhador do prêmio Saci como Melhor Ator.

Neste mesmo ano brilha na comédia Todas as Mulheres do Mundo (com Leila Diniz, Flávio Migliaccio, Joana Fomm, Fauzi Arap, Isabel Ribeiro), filme de Domingos de Oliveira, alcançando um raro sucesso de pública e crítica. Premiado no Festival de Brasília (Semana do Cinema Brasileiro 1966): melhor filme, direção, argumento, diálogo, melhor ator, produção e menção honrosa para a atriz Leila Diniz.
Entre dezenas de atuações marcantes, destacam-se o drama Bebel, Garota Propaganda (de 1968, com John Herbert, Rossana Ghessa), direção de Maurice Capovilla; o drama intimista As Amorosas, de Walter Hugo Khouri (1968, com Lilian Lemmertz, Anecy Rocha, Stênio Garcia) e a deliciosa e antropofágica comédia, fantasia Macunaíma.

Não há como não pensar no personagem da grande obra de Mario de Andrade, sem que sejamos, de imediato lançados ao fantástico filme Macunaíma, escrito e dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (1969). Essa adaptação da rapsódia de Mario de Andrade, longe de ser uma digressão exclusiva do cineasta, lança um questionamento sobre o projeto de nação, a imagem do homem brasileiro e as circunstancias de construção da nossa identidade nacional através da incursão no mundo das representações. O filme é uma crítica ao messianismo e toda irracionalidade da ditadura militar, entremeado pelo humor refinado, ironia e latente ruptura conceitual, evidenciada pela música, uso de uma linguagem popular e da chanchada como comunicação imediata. O elenco contava com (Grande Otelo, Jardel Filho, Milton Gonçalves, Dina Sfat, Joana Fomm, Wilza Carla, Zezé Macedo, Hugo Carvana).

Na TV, Paulo José inicia a sua trajetória na dramaturgia das telenovelas em 1969 com Véu de Noiva, primeiro grande sucesso de Janete Clair. Nos dois anos seguintes deu vida aos personagens Samuca e André, em Assim na Terra Como no Céu e O Homem que Deve Morrer. Em 1972 viveu o personagem Shazan, em O Primeiro Amor e no seriado Shazan, Xerife e Cia. e da novela Supermanoela, ao lado de Marília Pera.

Em 2009, após um afastamento de nove anos dos palcos, Paulo José retornou ao teatro atuando e dirigindo a filha Ana Kutner na peça Um Navio no Espaço ou Ana Cristina César, baseado nos poemas e escritos da poetisa carioca. Em 2011, Paulo José voltou a dirigir Ana e Bel Kutner, no espetáculo História de Amor Líquido, com texto adaptado de Zygmunt Bauman.

O grande ator Paulo José saiu de cena na última quarta-feira (11), no Rio de Janeiro, onde estava internado há 20 dias em decorrência de uma pneumonia, deixando um hiato na arte cênica e teatral, um sentimento imenso, misto de dor e ausência. Em entrevista de 2018, na abertura da mostra em sua homenagem no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, talvez tenha nos oferecido a senha da grande arte de representar: “aprendi que o ator é um significante na tela, e não um significado. Quem deve achar significações é o público. É o que eu chamo de transparência: o espectador tem que ver além do ator”.

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