.Por Gabriel San Martin.

Já em agosto de 1971, o poeta e artista tropicalista Torquato Neto proclamava a “geleia geral” brasileira consagrada, em 1963, por Décio Pignatari. Sob os véus obscuros do reacionarismo antidemocrático exacerbado que acoplou o Brasil na década de 60, Pignatari lembra das raízes retrógradas da classe média nacional – que, em grande parcela, apoiou os militares em sua empreitada.

(Military Line and Civilians, 1968)

Diante de um clímax de modernização industrial acompanhado pelo caráter experimental em que a arte brasileira se encontrava imersa, a “geleia geral” vislumbra a contrariedade e complexidade do Brasil. Afinal, como dizer o oposto sabendo que o auge da modernização nacional ocorreu de modo simultâneo à fortificação das efígies tradicionalistas fixadas em nosso solo?

Não diferente, os EUA passavam por uma situação semelhante em sua nomeada “Era de Ouro”. Na primeira metade da década de 1960, com as vitórias consecutivas dos democratas e a instituição da Lei dos Direitos Civis, o país foi marcado por um avanço liberal. Em sentido diverso, os republicanos permaneciam fortes com o apoio das classes médias. As eleições de 1968 são, então, marcadas pela vitória do republicano Richard Nixon; promovendo no país, dali em diante, uma onda conservadora de quase uma década.

(Armenian woman fighting, 1953.)

Imersa nesse contexto, a fotógrafa Vivian Maier, que na época residia em Nova Iorque, mostra-se capaz de observar a situação social da megalópole de modo bastante peculiar e com uma tremenda sensibilidade. Em suas fotografias das décadas de 50 e 60, Maier constrói um retrato político de seu tempo. Preambulada em imagens do cotidiano de Nova Iorque, a fotógrafa expõe o modo como as mazelas dos problemas sociais das grandes cidades dos EUA são públicas. O ouro da “Era de Ouro”, na verdade, não chega a todo cidadão norte-americano: a desigualdade e a miséria são ainda duas constantes. E, diretamente vinculados a esses dois fatores, também o trabalho infantil e a estratificação de raça são outros dois aspectos marcantes que seguem incessantes e que são devidamente retratados pela artista.

Tendo atuado como babá por mais de quatro décadas, chegando a adquirir fama enquanto fotógrafa apenas após a sua morte, Maier tinha um contato recorrente com os subúrbios nova-iorquinos. Enquanto trabalhava nas residências próximas aos centros e regiões nobres da cidade, a fotógrafa viveu a sua vida particular em contato direto com o interior dos subúrbios.

(Boy on Shore, 1965)

A dimensão política da obra de Maier, nesse contexto, manifesta-se de diversas maneiras: seja em suas fotografias de pichações, de trabalhadores em situações precárias, de pessoas em circunstâncias miseráveis ou da opressão policial da época. Nas fotografias Military Line and Civilians (1968) e Armenian woman fighting (1953), por exemplo, a questão da opressão policial é evidente.

Em Military Line and Civilians, são figurados, à esquerda, policiais posicionados alinhadamente em configurações rígidas e autoritárias enquanto, à direita, são expostas mulheres descontraídas com a situação e voltadas a diálogos entre si, viradas de costas aos policias. Com essa ação, a fotógrafa alude ao caráter panóptico do estado norte-americano. Tal como Michel Foucault pensou o espírito panóptico enquanto um reflexo do estado, Maier nota a observação e o sentimento de ameaça promovidos regularmente por este – e seria, no mínimo, inocente não perceber a atualidade disso.

(Untitled, 1954)

Em Armenian woman fighting, por outros caminhos, a violência deixa de ser furtiva, existente somente às costas do povo. Pelo contrário, na imagem, uma idosa armênia é segurada agressivamente por um policial, que a devolve um olhar de repugnância. Se nos centros a violência está sempre de baixo dos panos, nas periferias ela é explícita. Do mesmo modo, se a violência do estado é furtiva nos Estados Unidos, a violência que o estado norte-americano pratica sobre outros países é evidente. Sem distinção de idade e gênero, o caráter panóptico e violento do estado norte-americano é incessante: seja em esfera nacional ou internacional. A violência só não é homogênea porque é executada de modo discrepante entre classes distintas.

(untitled, 1959)

Em relação às problematizações ligadas à miséria, marginalização e desigualdade de raça inerentes à sociedade norte-americana das décadas de 50 e 60, as fotografias Untitled (1959), Boy on Shore (1965) e Untitled (1954) discutem esses temas visceralmente. Em Untitled (1959), é retratado um homem sentado no chão, de aparência suja e desarrumada. O que vemos é um homem pobre, seja ele um trabalhador em situação precária ou um morador de rua. Desse modo, Maier sugere uma explicitação da desigualdade e da pobreza que, mesmo ocultas sob os discursos da “Era de Ouro”, permanecem existindo intensamente.

Em Boy on Shore (1965) e Untitled (1954), a temática da desigualdade racial vira o objeto central de investigação da artista. Em Boy on Shore, um garoto preto observa, de longe, uma região nobre de Nova Iorque. Quase embaçada e separada por um abismo, a artista retrata a posição fundamentalmente periférica em relação a qual essa parcela da população é imposta desde a infância. Nesse sentido, apesar da veiculação e difusão da ascensão de classe como ponto estrutural no sistema do American Way of Life, Maier enfatiza a imposição da situação marginal promovida sobre a população preta, jogada sempre nas periferias.

Na fotografia Untitled (1954), a imagem é configurada em dois planos. No primeiro, uma criança preta engraxa o sapato de uma criança branca, enquanto essa última olha em direção à câmera. Em um segundo, de imagem embaçada, uma criança preta engraxa o sapato de um homem branco já maduro, que olha atentamente ao primeiro plano, quase que enxergando o seu passado. Não é difícil notar a alusão à condição pré-determinada de marginalização da criança preta em relação à branca: ao modo que essa última sempre vai constituir o papel do opressor na relação – e, não diferente, veio sempre constituindo.

Apesar de as suas séries de fotografias das ruas de Nova Iorque serem comumente examinadas em função da capacidade de desenvolvimento de um olhar inocente e íntimo sobre as ruas da megalópole norte-americana, Vivian Maier concebe dimensões profundas e muito pouco exploradas em sua obra. A esfera política pensada pela fotógrafa é intensa, mostrando-se capaz de expor os problemas sociais e toda a “geleia geral” da retórica contraditória em que se baseou a “Era de Ouro” dos Estados Unidos. Entender o âmbito político da obra da artista é fundamental para compreender a fotografia de Vivian Maier em sua complexidade correspondente.