Número de mortes diárias em Manaus por Covid-19 saltou de número abaixo 60 para cerca de 90 em menos de 7 dias.

.Por João Bosco Cyrino/Brasil de Fato.

Em Manaus, a covid-19 não é mais doença, mas o cotidiano — a tragédia humana deixa de ser notícia e vira rotina que tira meses de vida de quem é contaminado enquanto ataca todos à seu redor num ciclo vicioso que, quando parece que acabará, recomeça.

“A impressão que dá é que muita gente além de nós tá se acostumando com a morte” diz o coveiro do cemitério São João Batista, Antônio Costa, localizado em frente ao Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), onde quatro pacientes morreram sufocados por falta de oxigênio na última quinta-feira. Com 493 mortos por covid e recorde de sepultamentos só na última semana, o município passa pela maior calamidade da saúde pública de sua história.

O aumento dos casos de infecção gerou efeito cascata que levou ao colapso de todo o atendimento — tornando uma doença, que menosprezada pelos manauaras havia poucos meses, em drama nacional. Desde o meio de dezembro hospitais e policlínicas limitam o atendimento e as filas de espera chegam a 500 pessoas, enquanto o governo remaneja médicos e enfermeiros para render colegas que adoecem ou estão esgotados. A falta de oxigênio em 14/01 é vista por muitos profissionais como fracasso evitável após meses de falta de preparo do poder público e indiferença dos manauaras às medidas de distanciamento social.

Neste dia, em UPAs de bairro há relatos de funcionários que entregaram cilindros de oxigênio vazios para que populares tentassem enchê-los. Enfermeiros fizeram rodízio para realizar ventilação manual em pacientes dos hospitais HUGV, HPS 28 de Agosto e Delphina Aziz. Na Fundação de Medicina Tropical, um pai sem equipamento de proteção atravessou em desespero os corredores da UTI para levar um cilindro de oxigênio para seu filho de 35 anos.


(A recepção principal do HUGV, atualmente fechada, reflete os muros do cemitério do outro lado da rua / João Bosco Cyrino)

Vítimas de acidentes, pacientes com cirurgias de emergência e bebês prematuros estão entre as vítimas colaterais da implosão da saúde pública da maior cidade da região Amazônica. Agora, enquanto celebridades brasileiras e até o governo da Venezuela se mobilizam para apoiar Manaus, a população quer respostas a duas perguntas críticas: quem deixou esse colapso acontecer e como evitar que se repita?

 Vida encurtada

“Não foram vidas perdidas, mas encurtadas por esse vírus”, afirma categórica a assistente social Beatriz de Souza, “encurtadas por incompetência das lideranças e falta de empatia com o próximo por parte da população”. Desde setembro, quando os casos de covid voltaram a subir, pesquisadores e médicos alertavam para a necessidade de melhores práticas de distanciamento social e aumento dos estoques para os hospitais. Na época o Ministério da Saúde se limitou a repassar R$ 516,6 milhões ao Governo Estadual em vez de propor um plano de logística emergencial para um estado historicamente conhecido pela dificuldade de acesso por vias terrestre e fluvial.

Tal política falhou em menos de três meses quando, em dezembro, o governo do estado  se viu obrigado a decretar o fechamento de atividades não essenciais após o natal. Este decreto foi revogado em 27/12 após protestos da população que contaram com o apoio e elogios dos deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-SP). Foi preciso a situação piorar antes que o Ministério Público (MP) conseguisse na Justiça implantar um lockdown até 18/01.


A lotação dos hospitais pelo aumento nos casos de covid fez o número diário de mortos em Manaus bater novos recordes / Arte: Paloma Guimarães Fonte: Semulsp

Hoje, Manaus está com todos os serviços não essenciais fechados, toque de recolher das 19:00 às 6:00 e as provas do Enem foram adiadas em todo o Estado dado o alto risco de contágio da covid. Acima de tudo, os manauaras vivem neste começo de ano o pavor de enfrentar uma doença que não faz distinção de classe e afeta todos os aspectos da vida em sociedade. Em menos de um mês os sentimentos de antipatia e protesto se transformaram em receio pela covid 19, apoio aos profissionais de saúde e distanciamento social bem como repúdio às autoridades que, por omissão ou corrupção, deixaram a situação chegar ao caos.

Muitos questionam que tal cuidado veio tarde demais e o sentimento de revolta deixa uma cicatriz profunda em um povo que anseia por regressar a um “normal” que não existe mais. A principal lição desse caos amazônico é a sensação de que, caso não se tomem as devidas precauções, a Manaus de hoje é o Brasil de amanhã.

“Perdi meu pai e uma tia bem como dezenas de amigos e conhecidos”, diz a professora do Instituto Federal do Amazonas, Ana Claudia de Souza, “Não ter feito o isolamento na segunda quinzena de dezembro nos levou a situação de hoje enterrarmos colegas jovens e saudáveis, de pais enterrando filhos. Isso não era para ter acontecido”.

Uma narrativa de todos

Fora das estatísticas, uma das piores consequências da tragédia coletiva em Manaus está na banalização do sofrimento individual. Sentimentos de perda, angústia e impotência viraram lugar comum no imaginário local — alguém sempre conhece um morto pela covid. Até este repórter, que aqui narra essas histórias, enfrenta os dramas pessoais causados pela doença.

Desde contaminado e com falta de ar, esperar horas para internar a mãe e o avô na UTI enquanto uma dúzia de parentes e amigos testavam positivo para covid. E, menos de um mês depois, ainda com a mãe a se recuperar das sequelas, sepultar o avô que faleceu aos 78 anos por complicações causadas pela covid-19. Antes mesmo de pegar as cinzas do morto — quando o ciclo de dor finalmente parecia cessar — ser informado que o outro avô também está contaminado pelo vírus e precisa de apoio.

Ou seja, mesmo para os que “vencem” essa doença em Manaus, a covid não é mais uma probabilidade, mas realidade e uma certeza de que essa espiral de contaminação, eventualmente, atingirá um parente ou amigo próximo. A letalidade do vírus não é mais um “se” no vocabulário local, mas uma questão de “quem será o próximo e vão sobreviver ou virar estatística?”.

Como tantos manauaras, meu 2021 não começou entre abraços e votos de felicidade, mas à cabeceira da cama do avô de 91 anos com dificuldades para respirar. Enquanto os fogos marcavam o final de 2020 e o colapso da saúde do Amazonas, os únicos votos de ano novo que importavam eram as promessas vazias ao parente querido de que, esse ano, “vai ficar tudo bem”.