Uma ‘comunidade terapêutica’ comandada por evangélicos e investigada por irregularidades pelo Ministério Público Federal (MPF) também deve ser acusada de violência contra menores. Reportagem de Clarrissa Levy, da Agência Pública, mostra que uma visita a convite do grupo de trabalho do MPF encontrou 38 meninos que estariam sendo submetidos a uma rotina de religiosidade, ameaças e violência física. Veja trecho da reportagem:
No alto da serra da Mantiqueira, nas bordas do pequeno município de Itamonte, o centro de recuperação para usuários de drogas promete curar todos os vícios com a palavra de Deus. Recebendo verbas públicas há mais de 15 anos, a Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim aplica um programa de tratamento importado dos Estados Unidos que se baseia em estudos bíblicos e isolamento social.
A inspeção na Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim foi deliberada pelo Ministério Público Federal (MPF) como parte de um inquérito civil aberto, ainda em 2017, para apurar denúncias de irregularidades praticadas dentro da entidade. No início de outubro de 2020, a reportagem acompanhou a visita a convite do grupo de trabalho e encontrou 38 meninos que estariam sendo submetidos a uma rotina de religiosidade, ameaças e violência física.
Ao todo, participaram da visita cinco psicólogas, uma assistente social, um historiador e um perito do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura. Na manhã quente da sexta-feira 2 de outubro, a equipe encontrou, além de Mateus, outros meninos com o corpo marcado por sinais de agressões sofridas, conforme relato dos adolescentes, na comunidade terapêutica. Luís Felipe*, de 16 anos, tinha nas costas uma ferida que custava a cicatrizar: quando estava formando casquinha, o machucado teria sido reaberto por uma pancada de cabo de vassoura. Adolescentes que testemunharam a cena, dias antes, contaram que o cabo de madeira quebrou nas costas do menino, tamanha a força do golpe que o atingiu.
Além do corte nas costas, Luís Felipe tinha uma marca roxa esverdeada do tamanho de um sabonete em uma das panturrilhas, outro hematoma na nuca e sinais de inchaço ao redor da boca. Os machucados recentes seriam marcas das punições que o adolescente recebeu dos monitores por descumprir uma regra do tratamento da Desafio Jovem Maanaim, onde estava internado graças a um convênio da entidade com o governo federal.
Há pouco mais de 25 dias na entidade, o adolescente tentou mostrar as marcas de agressão para sua mãe durante uma chamada de vídeo monitorada pela coordenadora do centro de recuperação. “Eu e meu filho sabemos falar sem usar palavras. Na última ligação ele estava tentando me mostrar as marcas como se não fosse nada, para ninguém perceber”, conta a mãe do adolescente. Luís Felipe entende que se denunciar os maus- tratos apanhará mais.
E sua família preocupa-se com o fato de que, enquanto estiver na comunidade terapêutica, sua vida está nas mãos dos pastores que controlam a instituição. Por isso, nesta reportagem, os nomes dos adolescentes e familiares de internos da comunidade terapêutica foram alterados. “Eu tenho muito medo que essa denúncia se reverta em mais castigos. O Luís Felipe me disse que está com medo de morrer lá”, contou a mãe.O medo de imaginar o filho morto na comunidade terapêutica não é infundado.
Dois meses antes, um adolescente foi assassinado dentro da mesma entidade, onde estava internado havia sete meses tentando se recuperar do uso prejudicial de drogas. Em agosto, três adolescentes trabalhavam, sem supervisão, limpando o chiqueiro até que, durante uma discussão, um interno atingiu a cabeça de Lucas Pedreira Rosa com uma enxada, levando-o a óbito. Contamos a história de Lucas aqui.