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.Por Ricardo Pereira.

RELIC (2020), de Natalie Erika James

Embora possessões demoníacas e espíritos do mal possam ser suficientemente assustadores não há nada mais temível como o desamparo que alguém sente quando um ente querido esquece seu rosto, seu nome, todo o seu ser. RELIC é um filme de terror onde o elemento de desequilíbrio não é uma maldição antiga ou um demônio no quarto, mas a demência. Resultado de uma experiência íntima, Natalie Erika James traz à tona uma pérola assustadora com o peso dramático de uma família dilacerada por uma doença maligna e insidiosa.

Numa região da Austrália rural, Kay (Emily Mortimer) e sua filha Sam (Bella Heathcote) procuram a idosa Edna (Robyn Nevin), mãe de Kay e avó de Sam, que desapareceu sem deixar vestígios. Dias depois reaparece como se nada tivesse ocorrido, estamos diante de um dos sintomas do Mal de Alzheimer. Diante da nova condição de Edna, Kay e Sam decidem estender sua visita para descobrir que há algo mais na casa que pode estar a assombrando.

Onde RELIC se destaca mesmo é em primeiro nos apresentar um drama familiar para depois incorporar os elementos de um filme de terror. Os sustos não tardam a aparecer (e são bons sustos), mas o filme já nos angustia com a inconveniência bastante realista de cuidar de um idoso que se comporta como uma criança. Há um constrangimento e uma perda de poder que vêm com essa mudança na hierarquia familiar.

A jovem diretora Natalie Erika James, em seu primeiro filme, expõe na tela seu próprio drama, sua avó também sofreu com o Alzheimer antes de vir a falecer e foi a neta quem dela cuidou em seus últimos dias, sentiu na pele o sofrimento de suas personagens: a luta entre a avó como ela se lembrava e o que ela estava se tornando com o avançar da doença. O luto pela perda de alguém enquanto ele ainda está vivo soa pior que a morte.

Nos seus noventa minutos compactos e atmosféricos, James processa sua tese e traumas misturando elementos do terror australiano com outros emprestados do japonês. Seis anos depois de Jennifer Kent recuperar com “O Babadook” (2014) os melhores momentos do terror australiano que tem o distante “Picnic na Montanha Misteriosa” (1975), de Peter Weir, como maior referência, com suas insinuações mais que revelações, RELIC dá um novo passo mesmo que isso signifique trazer influências de outra filmografia prestigiada no gênero, a japonesa.

O abandono, um tema importante no terror japonês (abrangendo filmes como “Onibaba” (1964), a sucessos mais recentes como “O Grito” e “Água Negra”, ambos de 2002) é o ponto de partida da trama. Primeiro, em pequenas doses – “Eu nunca conseguia dobrar os dedos direitos”, diz Kay à filha enquanto toca desajeitadamente o velho piano da mãe, “por isso acho que ela desistiu de mim a certa altura”. Está claro de que não se trata de um comentário sobre aprender música, mas sobre o afastamento entre mãe e filha, aliás, processo que parece em curso também entre Kay e Sam. Mas a autocomiseração torna-se culpa com a nova condição de Edna.

Por ser um filme de terror apoiado mais no drama que em efeitos especiais é necessário que seu trio principal entregue um desempenho acima da média do gênero e se não são brilhantes, estão bastante convincentes do desespero que exprimem na tela. Emily Mortimer e Bella Heathcote como mãe e filha conseguem um interessante contraponto como duas gerações com reações diferentes diante do fardo de cuidar da matriarca. Diferenças que expressam o próprio distanciamento entre elas. Robyn Nevin como Edna também contribui para esse triângulo complicado de amor familiar e ressentimento com uma personagem capaz de gerar compaixão e medo em doses iguais.

Claro que algumas convenções do gênero estão presentes, James optou por um filme de terror para expressar o drama que essa família está passando, entendendo e com razão que isso faria toda a angústia mais latente. Assim se o realismo da situação resiste até o último minuto do filme ele não está imune ao fantástico, quando transforma o histórico de abandono daquela família numa assombração que também produz monstros – em mais um aceno ao terror japonês. Com isso a comovente história de horror gótico dá lugar ao terror de sobrevivência quando as paredes da casa começam a se fechar em torno das personagens e corredores viram labirintos. É quando RELIC experimenta seu momento de “Resident Evil”, a meu ver, sem grande prejuízo.

Embora a lembrança mais forte seja, na maior parte do tempo, “Hereditário” (2018), de Ari Aster, outro horror numa casa assombrada pelo ressentimento, há uma diferença no ponto de partida de todo o terror que presenciamos naquele e neste filme. Em “Hereditário” é o Mal quem produz o drama familiar, em RELIC é o drama familiar quem produz o Mal. Uma premissa até mais assustadora. Embora não se esteja comparando aqui o resultado final destes dois filmes.

Assim chega-se ao final de RELIC com uma impressão diferente da inicial, que trata-se, sim, de um filme de terror mais do que tudo e o mérito é de sua jovem diretora pela opção incomum que fez ao retratar uma doença que atinge milhares de famílias. Se ele não registra a mesma escala de gritos que a maioria dos filmes do gênero, ele não deixa por conta disso de ser até mais desesperador de acompanhar, ainda mais quando observamos que os filmes que abusam dos sustos, gritos e ruídos terminam sendo divertidos porque o medo está nas mãos mais no engenheiro de som, como algo estimulado e não como algo presente durante todo o decorrer da projeção.

O grande objetivo de RELIC não é alterar nossos batimentos cardíacos, mas nos deixar abalados com verdades cruéis sobre amor, morte, perda e o vazio entre eles. RELIC não é pesado porque a pessoa que se ama partiu, mas porque ela ainda está lá. Em algum lugar.