Fraudes nas cotas raciais: quais os caminhos e saídas?
.Por Juliana Jodas.i
Entendendo as chamadas “cotas” no Brasil
As políticas de Ações Afirmativas, que aqui no Brasil ficou popularmente conhecida como “cotas”, é uma medida de reparação histórica e de acesso de oportunidades para povos que foram historicamente subalternizados, cujas vagas são destinadas principalmente à candidatos negros, estudantes oriundos de escolas públicas, indígenas e pessoas com deficiência.
Isso significa o reconhecimento de desigualdades de acesso à bens fundamentais (como a educação superior) devido às condições sociais e históricas, e também, o reconhecimento dos efeitos perversos do racismo no Brasil. Sua importância também se relaciona com a ampliação da pluralidade étnico-racial de espaços que historicamente apenas um segmento da população acessava, como as universidades, concursos públicos, as grandes mídias, a política institucional, dentre outros.
No Brasil, esse debate é trazido na esfera pública pelo movimento negro, desde a década de 1980, e as primeiras universidades a implementar a política ocorreram nos anos de 2001, nas estaduais do Rio de Janeiro, e com o tempo elas foram se ampliando, de forma muito diversa e para um grupo de beneficiários bastante plural. As conhecidas “cotas” é uma modalidade dessa política ampla de Ações Afirmativas, que se dá através da reserva de um percentual do total de vagas para determinado grupo social para acesso a vagas de cargos públicos ou de cursos nas universidades, por exemplo.
Há outras formas de discriminação positiva, através de vagas suplementares, sistema de bonificação, processos seletivos diferenciados, dentre outros. As cotas raciais foram as mais conhecidas porque essas políticas surgiram a partir da reivindicação do movimento negro, mas hoje temos uma diversidade de grupos beneficiários, como por exemplo a UFABC aprovou em 2019 a reserva de vagas para pessoas trans1. Portanto, sua aplicação se dá a partir do entendimento da dificuldade de acesso de grupos sociais devido a condições de desigualdades estruturais e históricas.
Desde as primeiras políticas de cotas, implementadas em 2001, o número de estudantes negros ampliou gradativamente nas universidades públicas, espaço que historicamente era ocupado pela elite branca do país. E, esse aumento da população preta e pobre ocorreu nas universidades privadas também, seja a partir do programa Prouni2, quanto do alargamento do debate e entendimento do acesso às universidades enquanto um direito. A ampliação de representatividade de grupos não hegemônicos nas universidades ocasiona em incentivo para jovens periféricos, que antes não viam o ensino superior enquanto possibilidade, e passam a reivindicar e ocupar esse espaço a partir de novas referências.
Fraudes: como funciona as inscrições nos vestibulares?
As fraudes não são exclusivas das cotas raciais: elas acontecem na execução e oferta de diversas políticas públicas, como ocorreu recentemente na distribuição do auxílio emergencial3 do governo federal, por exemplo. Há uma tentativa de se desqualificar a importância da política de ações afirmativas devido as fraudes.
Há duas formas de identificação étnico-racial: a autodeclaração e a heteroidentificação. A autodeclaração é o método que pressupõe que a identidade racial se relaciona com a subjetividade de cada pessoa, e apenas ela pode atribuir a sua identidade. O processo de identificação racial pode ocorrer em diferentes contextos e momentos da vida do sujeito. Esta forma de identificação é a que utilizamos do ponto de vista normativo no Brasil: pelo IBGE, pelo Estatuto da Igualdade Racial, pela Convenção da OIT e também pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a constitucionalidade das cotas raciais a partir da autodeclaração. Portanto, as inscrições nas universidades partem da autodeclaração dos indivíduos.
No Brasil temos um contexto histórico bastante particular advindo do fenômeno da miscigenação (uma política do Estado brasileiro baseada em pressupostos racistas que visavam branquear a população) com a vinda de migrantes europeus no período pós-abolição. A figura do mestiço, portanto, surge a partir da década de 1930 enquanto figura emblemática da identidade nacional, sob o discurso popular que “não há como definir quem é negro no Brasil” ou “somos todos mestiços”. Porém, como informa o antropólogo Kabengele Munanga, o fenômeno da mestiçagem, enquanto categoria intermediária, não conseguiu resolver os efeitos da hierarquização racial e suas desigualdades, mantendo uma estrutura racista ocultada sob o discurso da identidade nacional brasileira mestiça.
Essa particularidade de nossa história refletiu em um caminho bastante dificultoso no debate público sobre o racismo e a própria afirmação da negritude brasileira. Podemos dizer que hoje, devido a uma intensa luta dos movimentos negros, o número de autodeclarados negros, que segundo o IBGE corresponde a soma de pretos e pardos, tem ampliado, juntamente com o debate das cotas raciais e do próprio reconhecimento do racismo estrutural na sociedade brasileira.
É preciso entender essa particularidade das relações raciais no Brasil para explicar a heteroidentificação, que é realizada a partir de terceiros e surge como forma de complementar da autoidentificação. Por isso, cabe ressaltar que ela é pensada não como substituição da autodeclaração, mas a partir do entendimento da raça enquanto construção social, em que determinadas pessoas, que são lidas enquanto negras pela sociedade, acabam tendo suas experiências racializadas e enfrentando situações de racismo.
A premissa básica é que as políticas de ações afirmativas têm como intuito combater injustiças de discriminação sofridas por grupos e indivíduos, e que, portanto, a identificação de seus beneficiários é fundamental para que a política de igualdade de acesso se efetive. Portanto, uma pessoa que se reconhece enquanto descente de pessoas negras, mas que socialmente não é lida como tal, não está exposta aos mesmos preconceitos e racismos; daí a heteroidentificação enquanto recurso para a efetividade da política e a coibição das fraudes em cada localidade.
As comissões de verificação têm sido um instrumento utilizado pelas universidades para resolver o problema das fraudes e coibir essas práticas, conforme explicado sobre o objetivo da heteroidentificação enquanto medida complementar. Pensando à longo prazo, as comissões de verificação devem andar em conjunto com formações e uma educação para as relações étnico-raciais para que as pessoas compreendam o racismo no Brasil, e reconheçam sua branquitude, negritude ou etnia neste processo. Podemos mencionar que a Lei 10.639/03 e a Lei 11.645/08, que incluem história e cultura afro-brasileira e história e cultura indígena nas escolas, é um importante caminho para que jovens que desejam cursar ensino superior tenham um entendimento mais alargado sobre relações raciais no Brasil e a política de ações afirmativas.
As comissões são criadas enquanto formas de conferir as inscrições, em caso de erros de preenchimento, e as entrevistas buscam compreender o processo de identificação e reconhecimento das pessoas inscritas enquanto negras. Em muitas universidades, como a Unicamp, os membros da comissão passam por uma formação das relações étnico-raciais, em que o compromisso da universidade é assegurar que a política esteja de fato contemplando as populações destinatárias e a reparação histórica. Além disso, todo candidato pode solicitar recurso nos casos de não validação.
Há muitos casos de denúncias realizadas por meio de redes sociais, que podemos entender enquanto formas práticas que as pessoas encontram para delatar situações de injustiça. E isso não é exclusivo das fraudes das cotas raciais. Temos diversos casos de denúncias de violência de gênero ou racismo que ocorrem pelas redes. São situações que trazem algumas reflexões, de que é preciso melhorar e tornar mais acessíveis os canais de denúncias formais. As comissões de verificação, neste sentido, é uma ação preventiva para coibição das fraudes, como ocorrido na UNB4, cuja apuração das denúncias resultou em expulsão de estudantes e a cassação de diploma de egressos.
Fraude como preconceito racial?
O racismo no Brasil, e em especial no ensino superior, atravessa diversas instâncias: seja no baixo número de professores(as) e pesquisadores(as) negros(as), em situações cotidianas relatadas pelos estudantes em relação aos colegas de turma ou em situações na própria sala de aula ou na vivência universitária e até mesmo nos currículos, conteúdos e bibliografias majoritariamente eurocêntricas com uma ausência de autores(as) negros(as).
A fraude faz parte da lógica racista que fecha os olhos para as desigualdades estruturais brasileiras a partir do discurso da meritocracia. Muito do que é entendido enquanto mérito faz parte do privilégio branco e de classe, pois não se pode falar em mérito se não estamos concorrendo a partir das mesmas condições. Fraudar as cotas é não entender o sentido das políticas de ações afirmativas, tanto de reparação histórica quanto de ampliação da composição étnico-racial em todos os espaços, sobretudo aqueles em que implicam em relações de poder. E o que é pior, não entende as cotas enquanto política pública e direito para determinados grupos sociais que tiveram um histórico de subalternização que os coloca em situações de desigualdade de oportunidades.
Apesar de termos um histórico de experiências positivas e promissoras com as cotas nas universidades, existe uma falta de compreensão e entendimento das políticas de ações afirmativas e do racismo estrutural que faz com que pessoas entendam essas políticas de acesso enquanto “privilégio” e não enquanto “direito”, e as fraudes das cotas é um reflexo desse pensamento.
Lei de Cotas: quais desafios?
A Lei de Cotas aprovada em 2012 foi um reconhecimento e validação de âmbito federal à diversas iniciativas de universidades que estavam implementado políticas de ações afirmativas desde dos anos 2001. Ou seja, temos quase 20 anos de experiências em que as pesquisas e dados apontam que houve uma democratização de acesso das universidades, cuja ampliação da diversidade étnico-racial em sua composição é notória. Além disso, cabe destacar os efeitos epistemológicos das ações afirmativas na universidade: a inserção dessa diversidade acarreta em novas visões de mundo, cosmologias, perguntas e questionamento a partir de outras realidades e vivências, o que implica em novas e criativas produções acadêmicas e em mudanças da matriz de conhecimento hegemônica.
Há diversas iniciativas para o que chamamos de apoio a permanência, que têm sido o maior desafio de negros e indígenas nas universidades. A primeira delas, é o apoio material a partir de bolsas, moradia e alimentação como forma básica de subsistência. A política de ações afirmativas deve estar diretamente vinculada as políticas de assistência estudantil. A segunda, é chamada de permanência acadêmica, ou seja, condições para o êxito acadêmico, seja através de bolsas de pesquisa, grupos de pesquisa e grupos de apoio e tutoria. A terceira é a chamada permanência simbólica, ou seja, criar espaços acolhimento e escuta para demandas específicas de estudantes negros, indígenas, mulheres, LGBTQIs+, imigrantes, dentre outros; canais de denúncia de violência e espaços de diálogo. Citaria uma quarta que é a sua própria auto-organização: os próprios estudantes criam redes, grupos e frentes de apoio e de luta de suas demandas de forma autônoma e bastante criativa. Cabe a universidade oferecer espaços para que esses grupos possam emergir e construir seus próprios discursos e formas de atuação.
Especialmente no que tange a Lei de Cotas 12.711/2012, tratando-se do ingresso de povos indígenas, a lei não contempla o vestibular indígena enquanto processo seletivo específico. As universidades que adotaram o vestibular específico apontam uma maior efetividade no acesso de indígenas, além de reconhecer e validar as experiências das escolas indígenas nas aldeias e contemplar a realidade de estudante oriundos de escolas não urbanas. Este ponto poderia ser ampliado na avaliação das cotas em 2022, da mesma forma que as comissões e as formas de combate às fraudes também não é amparada pela Lei Federal, cabendo as universidades criarem suas próprias formas de coibição dessas práticas.
Por fim, cabe as universidades assumirem o compromisso e a responsabilidade das ações afirmativas em conjunto e isso implica em formações para a comunidade acadêmica, os profissionais técnicos administrativos, os professores e os pesquisadores em relações étnico-raciais para que não reproduzam situações de desigualdade e racismo e ampliem seus repertórios para as diferenças que irão emergir.
Notas
1 A Universidade Federal do ABC (UFABC) foi uma das universidades pioneiras a adotar reserva de vagas para pessoas transgêneras, junto com a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2018.
2 Programa Universidade para Todos (Prouni) é uma política do governo federal aprovada em 2005 que concede bolsas de estudos integral e parcial para cursos de graduação em universidades privadas.
3 O auxílio emergencial é um benefício financeiro destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção emergencial durante à crise causada pela pandemia do Coronavírus – Covid 19.
4 UNB apurou denúncia recebida em 2017, cujas investigações foram realizadas junto com o Ministério Público. O relatório final das investigações resultou na expulsão de estudantes e na cassação de diplomas. Ver mais em: https://noticias.unb.br/76-institucional/4297-unb-expulsa-estudantes-que-fraudaram-sistema-de-cotas, último acesso em 15/07/2020.
i Juliana Jodas é doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, cuja área de pesquisa é em educação das relações étnico-raciais e políticas de ações afirmativas, especialmente para povos indígenas. Atua como Educadora Social e faz parte do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI/Unicamp).