.Por Alessandra Caneppele.

O MEC sob o governo bolsonarista começou com Velez, um estrangeiro, passou depois para Weintraub, em quem o nome judeu registrava a internacionalidade, ensaiou seguir depois com Decotelli, um nome italiano em pele negra, até desaguar agora em um autêntico pastor brasileiro: Milton Ribeiro.

(foto marcelo camargo – ag brasil)

O tingimento estrangeiro do MEC nos faz lembrar das histórias das famílias abastadas do Brasil que importavam preceptores para seus filhos. Mas depois da fracassada nomeação de Decotelli, tal apelo ao estrangeiro parece ter cessado, nos reconduzindo com Ribeiro à velha matriz educacional de nossos primórdios coloniais: com o novo pastor-ministro, reencenamos a personagem histórica do nosso primeiro tutor nacional, aquele sacerdote adepto da chibata e ocupado em usar o saber doutrinário da religião para introduzir, através da sexualidade, uma culpa capaz de transformar o próprio conhecimento em tabu. Como o episódio Decotelli participaria desse descascamento do verniz estrangeiro do MEC que nos levou agora à exposição sem rodeios do núcleo duro de nosso projeto educacional?

A pouca atenção que demos ao nome italiano do fracassado ministro– enquanto nos ocupávamos da cor de sua pele – talvez possa nos auxiliar a refletir sobre essa questão. Então, vamos ao nome italiano do ministro – sem esquecer que, certamente não um mero acaso, também um nome italiano hoje nos desgoverna!

Não encontrei nas páginas italianas da internet que se dedicam a elencar os sobrenomes italianos qualquer referência a Decotelli: há alguns Coltelli, poucos Cotelli, raros De Coltelli e nenhuma referência a De Cotelli, muito menos a Decotelli. Nas páginas da internet não encontrei informações biográficas sobre o candidato ao Ministério que contassem sobre seus pais, família, etc., expondo de onde viria o seu sobrenome italiano.

O fato desse sobrenome ser estranho na Itália não é incomum: imigrantes italianos eram em sua grandíssima maioria analfabetos e, ao se registrarem por aqui, muitas vezes acabavam modificando seus sobrenomes; não tendo domínio da língua escrita, o nome era reescrito de diferentes maneiras. No caso Decotelli, podemos supor a perda do “l” do plural coltelli da palavra coltello (faca) e a incorporação da partícula “de”.

A inconsistência e a transformação desses nomes italianos de procedência duvidosa e macarrônica (lembremos que Bolsonaro é também um sobrenome muito estrangeiro em território italiano!) nos contam a história de sujeitos tão miseráveis que sequer possuíam um lugar seguro e próprio em sua originária língua materna.

Os italianos que aqui chegaram não vieram traficados no horror absoluto dos navios negreiros, padecendo a violência extrema da escravidão. Mas também não chegaram aqui como senhores: expulsos pela fome de seu país, na maior parte das vezes analfabetos que sequer sabiam falar o italiano (falavam dialetos), eles chegaram com seus braços e sua barriga, nada mais.

Conheço bem as histórias de pobreza, viagens e fome contadas pelos meus avós imigrantes. Mas, em relação aos negros já não mais escravos, eles chegaram com pelo menos três aparentes vantagens: a liberdade, a cor da pele e uma proximidade com aquela parte do mundo da qual vinham as coisas que seus senhores gostavam de consumir – a moda, os perfumes, a cultura da ópera, etc. E, com a liberdade, usaram as outras duas vantagens para se afastarem dos negros e se aproximarem dos senhores.

Mesmo sendo ilusória sua participação na cultura europeia idolatrada, construíram suas vidas de costas para o Brasil, olhando sempre para o paraíso perdido ao qual esperavam voltar um dia ricos. Calcada sobre a pele branca, uma identidade afastava esse novo explorado do negro e o ligava ao patrão em um projeto estrangeiro à terra que os acolhia. Conheço por dentro o discurso do imigrante italiano que execrava qualquer miscigenação com negros e idolatrava os valores europeus.

Mas, casada com um membro de uma “família tradicional paulista”, conheço de perto também as histórias de discriminação contra os italianos – e muitas vezes também ouvi meus avós falarem de seus ressentimentos em relação à discriminação que sofriam como “italianinhos”, fascistas, etc. Mas, mesmo sendo discriminado, o italiano não deixou de discriminar – a velha história de quem sempre encontra alguém merecedor de execração, para que ele mesmo não seja o último na fila dos execrados!

Voltemos, então, ao episódio Decotelli. Em nossa desatenção ao seu nome italiano, mais uma vez apartamos nossa imigração da pele negra, mantendo uma distância nominal da carne negra que, no horror extremo da escravidão, nos precedeu na exploração formadora do Brasil. Incapazes de ler na pele negra nosso nome e incapazes de enegrecer nosso nome nessa pele, mais uma vez nos negamos a partilhar nosso destino imigrante com aquele ainda mais miserável da escravidão.

Usando nossa cor de pele como fantasia, preferimos continuar a nos identificar àqueles que idealmente um dia teríamos sido, os exploradores, omitindo que, de modos certamente não equânimes, também aqui chegamos expatriados e arrastados pelas mãos violentas dos exploradores do mundo. E para manter ainda hoje tal farsa, retiramos o olhar do nome italiano do candidato a ministro, nos empenhando, no avesso de nosso racismo estrutural, nesse clareamento contínuo do nome encardido que aqui chegou como imigrante.

Se a mentira Decotelli se desmancha rápido quando ligada à pele negra, ela privilegiadamente se mantém na pele branca imigrante, mas às custas de uma contínua dissociação da pele negra – pois, se coladas em um mesmo nome, revelariam a farsa senhoril. Por isso nós não nos atentamos ao nome italiano do ministro negro. E por isso Bolsonaro rapidamente desvencilhou seu nome do ministro negro: os nomeados Bolsonaros, Dórias, Moros e seus seguidores e votantes precisam operar continuamente esse trabalho de expurgo que os forma como uma camada social sempre avessa e de costas para o país, incapaz de se enraizar em um solo que a alimentaria com as cores da exploração e do exílio paradigmaticamente impressas em negro na pele escrava.

A união no episódio Decotelli do nome importado à pele negra escancarou em curto-circuito a farsa desses nossos nomes senhoris com seus tutores estrangeiros. Para que continuar, então, a travestir com os floreios de uma segunda língua a educação, se já ninguém mais acredita na superioridade dos nossos exóticos preceptores?

Melhor empossar, enfim, apenas um novo exemplar de nosso primitivo educador nacional – o qual continuará a implementar, agora em sua roupagem e seu linguajar autenticamente coloniais, aquele sempre mesmo projeto educacional que, desviando os olhos envergonhados dos pupilos da pele nua comum a todos os explorados da terra que, mais ou menos esfarrapados, por aqui encarnaram, prossegue adiando a formação de um povo brasileiro.