Ícone do site Wordpress Site

O Dia das Mães pandêmicas

.Por Alessandra Caneppele*.

O filme de ficção científica I’am mother** conta-nos a história de uma menina criada confinada em uma espécie de estação espacial asséptica encrustada em nosso planeta, pois o mundo externo teria se tornado inabitável. A menina cresce na companhia apenas de uma mãe robô, que a gera a partir de embriões congelados, depois a cria e a educa. O filme encena uma situação muito análoga àquela pandêmica que vivemos hoje: crianças isoladas, crescendo fechadas em suas casas, sem contato social, porque o mundo lá fora teria se tornado perigosamente inóspito – e que seriam educadas através apenas de dispositivos tecnológicos acessados individualmente, fora de contextos coletivos e socializantes.

Para muitos dos pensadores da atualidade a pandemia nos obrigaria a abandonar todas as nossas ilusões de que poderemos voltar às formas de vida do passado ainda tão presentes em nossas memórias, pois, como no filme, o planeta definitivamente já não seria mais um bom lugar para morarmos. A ficção científica do filme, então, não seria mais uma adivinhação do futuro ou apresentação metafórica sobre nós, mas já cópia da realidade do presente pandêmico no qual a espécie humana, isolando-se de seu habitat pregresso (concebido como conjunto das formas sociais e biológicas de vida), começaria a viver em um não-lugar?

Mas outros elementos ficcionais do filme não nos permitem analogias tão diretas com nossa realidade atual: somos ainda gerados, gestados, amamentados e criados por um carnudo corpo materno – e não, como no filme, produzidos em máquinas e criados por um robô. Mas será que a ficção materna do filme está muito longe de nós?

No drama da menina o filme encena a infelicidade de um ser humano criado em isolamento. Aparentemente, uma fatalidade real levara a essa situação – mas, qual? O mundo externo estaria perigosamente contaminado? A humanidade externa não existiria mais? O planeta seria habitado por humanos perigosos ou contaminados pelo perigo? Ou o isolamento seria, no limite, apenas fruto da opressiva vontade da mãe robô? Sem optar por uma dessas causas, o filme apenas indica que a reconstrução da humanidade precisará corajosamente passar por cima de todas essas possíveis razões mais ou menos reais para o isolamento do humano, pois nenhum desses motivos poderia ser tão real ao ponto de justificar o abandono do desejo de reconstrução de uma humanidade compartilhada na alteridade do mundo e dos outros: a reinserção no mundo se confunde, então, com o momento de reconhecimento de que a construção e a desmontagem dos perigos que nos assombram é feita por nossas próprias mãos.

Porém, como entrave principal a esse ato pelo qual se escolhe partir ao encontro no mundo de sua própria humanidade, o filme coloca justamente uma figura materna que, jogando a favor da proteção extrema da cria, luta contra qualquer intenção de encaminhá-la para o mundo externo, o qual é racionalmente codificado por ela como apenas ameaça. Essa nova mãe, dotada agora de uma razão maquinal, pode exercer plenamente desmedidos esforços de isolamento, pois um robô – por definição máquina programada para funcionamento autônomo – é a matriz perfeita para a replicação de seres nos quais qualquer forma de alteridade não seria apenas desnecessária, mas já totalmente desaconselhável. Vemos como a versão da máquina racional materna refaz de um modo refinado aquela velha maternidade que guardava só para si a cria e, ao mesmo tempo, em seu avesso, retirava-se do compromisso com a construção do bom mundo externo para seus filhos, o qual racionalmente passa a ser definido apenas como totalmente estrangeiro aos interesses da criação autônoma.

Assim, a razão da mãe robótica apenas leva ao extremo um velho projeto de abandono da construção coletiva do bom lugar humano para os filhos no mundo. E se a maternidade apenas condensa em si as normas simbólicas de criação e cuidado dos filhos de uma coletividade, tal abandono certamente não deve ser atribuído a uma escolha privada de uma mulher, mas precisa ser compreendido como opção conjunta de toda uma sociedade na qual a razão da humanidade pode aquela definida por um mero funcionamento de máquina. Nessa duplicidade de exclusões que se retroalimentam, uma mãe cada vez mais se distancia do mundo – enquanto o mundo, cada vez mais, se faz estrangeiro à mãe. Escondidos hoje em nossas casas, ocupados apenas em proteger ao máximo nossas crias, vemos cruamente exposta essa dupla condição de nossa atualidade pela qual maternidade e sociedade excluem e se excluem constituindo, dentro e fora de casa, duplos espaços inóspitos.

(imagem wikipedia)

Nesse Dia das Mães Pandêmicas, lembro-me, então, da Madona dei Palafrenieri de Caravaggio. Nesse quadro vemos uma mãe sustentando, suspensos, os passos que conduzem o filho pelo mundo mesmo – e especialmente – quando esse se mostra perigoso. Sem ocultar o risco dessa passagem, a mãe leva seu filho ao mundo. A coragem cuidadosa dessa maternidade caravagesca que, respeitando perigos, transforma-os em caminhos, poderia desenhar em nós agora os contornos de uma humanidade afeita à convivência solidária entre os diferentes que habitam nosso planeta? Nesse retrato extremo do pacto de confiança firmado entre maternidade e mundo, pelo qual o cuidado materno suaviza o perigo enquanto esse adentra o materno, vemos se desenhar um lugar para o humano que não é o do esconderijo da caça, mas tampouco o da trincheira do caçador. Que os passos da madona de Caravaggio inspirem os nossos – pois a lógica trágica e louca desse materno, que escolhe o passo suave sobre a instabilidade de uma alteridade, convida a outras formas de encaminhar nossa humanidade pelo planeta. **

E no interior de tal contexto global, uma nação que vota movida pela fantasiosa ameaça de uma mamadeira de piroca e que governa pela desqualificação da consistência da ameaça pandêmica evidencia a urgência de questionarmos os descaminhos de nossa maternidade nacional – a qual, entre os entregues ao perigo de um estado assassino nas periferias e aqueles escondidos atrás dos muros dos condomínios, ainda não encontra sobre nossas terras sequer sinais de uma cidade justa para a coletividade de seus filhos.

* Para não dar muito spoiler, não discutimos aqui a sequência final do filme e apenas sugerimos que os futuros espectadores a assistam pensando na discussão de nosso livro Mães enlouquecem: Medeia, Frankenstein e a Revolução: a mãe, como o robô do filme, não é apenas enlouquecedora, mas também aquela que, enlouquecida por esse mundo, age tragicamente para que dela mesma outras formas, mais sãs, de maternidade e de mundo possam nascer. Ainda no interior dessas reflexões do livro será possível desdobrar também os sentidos da terceira figura que aparece no quadro de Caravaggio.

– para saber sobre o livro, acesse https://www.instagram.com/maes.enlouquecem/?hl=pt-br

**Filme de 2019 de Grant Sputore, a partir de roteiro de Michael Lloyd Green, disponível no Netflix.

Sair da versão mobile