A Rede Globo e a Globoplay anunciaram na sexta-feira 06, uma série ficcional baseada na vida de Marielle Franco, cujo assassinato em 2018 continua sem respostas, apesar de os acusados do assassinato estarem presos e terem relações com a família do presidente Bolsonaro, inclusive um deles morar no mesmo condomínio.

(foto perfil marielle facebook)

O projeto anunciado é encabeçado por três pessoas brancas. A roteirista Antonia Pellegrino (“Sexo e as Negas”, “Bruna Surfistinhas” e “Tim Maia”), George Moura (“Onde Nascem os Fortes”, “Amores Roubados” e “O Canto da Sereia”) e José Padilha.

José Padilha é o representante máximo do pensamento miliciano no cinema. Em Tropa de Elite, um filme neofascista do terceiro mundo, ele justifica os assassinatos sem julgamento da polícia e consegue colocar a culpa do tráfico de drogas no usuário, enquanto o senador com helicóptero com 500 quilos de cocaína não tem importância, assim como a própria corporação. Nas eleições, apoiou o bolsonarismo-miliciano. Em outra série, O Mecanismo, falsificou a história ao colocar falas desonestas em personagens democratas. É esse sujeito que foi escalado para dirigir a série de Marielle Franco.


Ao justificar a convocação do diretor branco e de direita José Meireles para filmar a vida de Marielle Franco e passar na Globo — inicialmente no streaming da Globoplay –, a roteirista Antonia Pellegrino se justificou a Mauricio Stycer:

Se tivesse um Spike Lee, uma Ava DuVernay…”, suspira, citando dois cineastas americanos bem conhecidos. “Mas asseguro que vai ter muitos profissionais negros envolvidos na série”.

Para o professor Silvio Almeida, no entanto, a busca por um inexistente Spike Lee brasileiro é expressão de racismo estrutural.

No twitter, ele escreveu:

Atenção: racismo estrutural é um conceito cuja aplicação resulta em responsabilidade e não pode ser usado como desculpa para ser irresponsável. Segue o fio sobre racismo, Spike Lee e comparações esdrúxulas.

Pensar o racismo como estrutural é tirá-lo do campo da culpa (e da desculpa) e tratá-lo na dimensão da responsabilidade política. É uma forma de “desnaturalizar” o racismo, compreendendo-o como parte da história e dos conflitos políticos

Ao tomar consciência da dimensão estrutural do racismo, a responsabilidade dos indivíduos e das instituições aumenta e não diminui. Agora, cada um vai ter que pensar qual o seu papel na reprodução de uma sociedade racista.

Perguntas para brancos e não-brancos: “em uma sociedade constituída pelo signo da raça, qual o meu lugar? De que modo eu naturalizo essa sociedade?” E a mais importante: “como posso agir para desnaturalizar o racismo?”.

Uma vez em contato com a ideia de que o racismo é estrutural, não há saída: é preciso assumir uma postura ética e políticamente responsável quanto ao lugar que ocupamos em um mundo racializado.

A força do conceito de “racismo estrutural” está também em revelar as artimanhas e sutilezas do racismo. Para ser “normal” o racismo tem que apagar a história e as relações de poder que o conformam.

Falar de Spike Lee como se sua trajetória não estivesse conectada a uma longa tradição do cinema negro americano, e este à luta antirracista e ao Movimento pelos Direitos Civis, é uma artimanha que reforça o processo de ocultação da história e da política por trás do racismo.

A estratégia de referir-se a “negros únicos” é também um modo de naturalização do racismo na medida em que passa a impressão de que, em regra, brancos estão “mais bem preparados” e os “negros talentosos” são exceção.

Este é um dos modos pelo qual se normaliza a crueldade do racismo. Exige-se que negros estejam imediatamente prontos, ao passo que brancos, em regra, têm a oportunidade de errar e aprender com os próprios erros, como qualquer SER CONSIDERADO HUMANO.

A tragédia do racismo, especialmente nos chamados países “periféricos”, faz com que a mentalidade colonizada dos brancos destes locais se considerem tão excepcionais a ponto de se sentirem no direito de exigir dos negros o que eles, brancos, não podem entregar.

Se AINDA não há entre nós negros um Spike Lee, Jordan Peele ou Ava DuVernay, acreditem: entre vocês não há um Coppolla, Robert Towne, Stanley Kubrick, Orson Wells ou Agnès Varda.

É o racismo que os coloca nesta fantasia que só o antirracismo (e o anticolonialismo) pode tirar. (VioMundo/Carta Campinas)