Somos ondas do mesmo mar e um povo lindo surge das ladeiras
.Por Francisco Foot Hardman.
De Pequim
Estamos ou não estamos no mesmo barco? Somente estúpidos, exterminadores do presente e espíritos do mal podem apontar para sentido diverso ao que a ciência, o bom senso e a responsabilidade aconselham a todos os mortais. Preciso citar nome? Infelizmente, não. Já que, por todos os continentes, por todos os países, há agora um nome no altar da fama do mau-caratismo incurável, em seus esgares mortíferos e seu desejo de destruição sem-fim, a que os psicanalistas chamaram, a partir de Freud, pulsão de morte, Thánatos. Vergonha!
O Brasil superou as Filipinas em matéria de exibição de um amante da violência pela violência: nosso reles devoto de Trump não passa da caricatura mais barata de Duterte. Não, não é hora para psicanálise de base, é hora de remover, urgentissimamente, o cancro instalado no poder central da República. De alto poder corrosivo e contaminante de toda a Nação. Não há como evitar o assunto. Ele é manchete por todo o mundo. Vergonha!
Mas a solidariedade internacional e comunitária por todo o planeta também dá mostras de que a globalização cega e o fundamentalismo neoliberal não conseguiram derrotar a amizade entre os povos e o amor humano fraterno. Entre tantos retornos que recebo por esta série de escritos, os de amigos chineses estão entre os mais tocantes.
Assim, por exemplo, do jovem doutor em história do Brasil Gao Ran, que defendeu recentemente tese brilhante na Universidade de Pequim sobre a presença da Teologia da Libertação na resistência à ditadura militar e na luta pela construção de uma democracia social no Brasil, anota que minha referência a triciclos o fez ter saudades da infância em sua pequena cidade natal, Baodi, onde todo o transporte de passageiros se fazia nesse veículo, a gasolina, antes da entrada dos táxis sobre quatro rodas.
E isso rebate nas andanças que eu próprio fiz em triciclos para condução de pessoas, em cidades que ainda perduram imersas em tempos antigos: em Dali, imponente entre suas cadeias montanhosas e um lago gigante; em Qufu, cidade natal de Confúcio; e em Suzhou, belíssima entre seus seculares canais e jardins insuperáveis. Mas essas recordações também me enchem de saudades, como se fizessem parte de um passado muito remoto. Transposta já a barreira do segundo mês consecutivo de confinamento, a percepção da passagem do tempo se confunde. E os espaços, aqueles mais belos e distantes, tornam-se pinturas tão nítidas quanto evanescentes no fluxo da memória.
Quero mencionar também a bem-humorada postagem que meu prezado colega e chefe do Departamento de Espanhol-Português da Universidade de Pequim, Fan Ye, tradutor reconhecido na China de Gabriel García-Márquez e Roberto Bolaño, fez, há duas semanas, enviando-me uma charge do herói nacional Chefe de Polícia Gato Preto, onde encara sem medo ninguém menos do que Batman.
Mas para enfrentar Coronavírus e outro Malfeitor que se instalaram no Brasil, nem Chefe de Polícia Gato Preto daria conta. Melhor seguir confiando nas redes de solidariedade internacional, com base em conhecimento científico e compartilhado. Recebo nesta noite, aqui, ou nesta manhã, aí, de uma ex-aluna de pós-graduação do IEL, nossa querida Ma Lin, também tradutora de respeito da literatura brasileira ao chinês, hoje pós-doutoranda na Universidade de Pequim, um Handbook sobre prevenção e tratamento do Covid-19 (LINK), feito por autoridades médicas que enfrentaram o combate da epidemia quando de seu pior cenário na província de Hubei, e editado aqui em tempo recorde, em inglês. Acabo de enviá-lo para colegas da área médica e para o Reitor da Unicamp. Se julgarem de utilidade pública, creio que poderá ser disponibilizado a toda a comunidade.
Mas algo sonhei que me diz que será enviada boa ajuda da China ao Brasil para o bom combate. A solicitação direta de ajuda feita pelos nove governadores do Nordeste, encaminhada à Embaixada da China, seguida por vários governadores da região Norte, certamente terá sua resposta. E, na melhor tradição dos rituais de presentes na cultura chinesa, essa carga de auxílio humanitário (máscaras e equipamentos) poderia vir a ser acompanhada de alguns versos, quem sabe de algum poeta brasileiro, entre tantas vozes possíveis, a reiterar que o caminho da vida humana e não humana, no planeta, é absolutamente uma só. Estamos no mesmo barco. E os sinais de catástrofes não são poucos.
Como lá na Itália, em Milão, há cerca de pouco mais de uma semana, chegaram 400 mil máscaras e 17 toneladas de equipamento hospitalar. Doação da companhia Xaomi, estrela ascendente na indústria tecnológica e de eletrônicos, com sede em Pequim. Na faixa que desenrolaram no aeroporto Malpensa, o verso de Sêneca, poeta e filósofo do estoicismo, em italiano: “Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim”. Não há, nesta hora, como duvidar sentido da frase.
Nesta semana, trabalho com meus alunos aqui em Pequim, sempre no ensino à distância, entre outros textos, o “Manifesto da Antropofagia Periférica”, lançado em 2007 pelo poeta Sérgio Vaz, na esteira do coletivo que ele criou, a Cooperativa dos Artistas da Periferia (Cooperifa).
Em sua abertura se lê: “A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado”. No final, o brado, em caixa alta: “É TUDO NOSSO!” E, no meio, o caminho: “A Periferia unida, no centro de todas as coisas”. Estamos ou não estamos? (publicado originalmente no Jornal da Unicamp)