A relação de poder e o vitimismo branco

.Por Ricardo Alexandre Corrêa.

Quando você está acostumado a privilégios, a igualdade parece opressão. (Oscar Auliq-Ice)

A luta da população negra ocorre no campo dos direitos sociais garantidos na Constituição Federal de 1988. Mas nesse percurso nos deparamos com mentiras, justificativas falaciosas e distorções acerca da história africana e afro-brasileira, especificamente, a escravidão e suas consequências.

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Na realidade, a população negra tem enfrentado inúmeros obstáculos que dificulta com que tenham qualquer reparação histórica e acesso aos direitos sociais. Nesse complexo de questões vemos pessoas brancas acusando os negros de serem racistas — o tal racismo reverso —, mas isso é um absurdo.

Esta é uma tática que confunde os ignorantes, constrói laços afetuosos entre os opressores e transfere a culpa às verdadeiras vítimas. Ao lançarmos mão de uma visão crítica da realidade percebemos que a maioria da população negra é excluída da possibilidade de ter uma vida menos desumana. De modo inegável, essa condição resulta da engenharia ideológica da branquitude1 que cimenta a estrutura racista e mantêm os negros distantes dos espaços de poder. Por isso, qualquer alegação que ignore as observações trazidas será desonestidade e vitimismo descabido.


Neste texto ofereço argumentos contrários aos discursos dos acusadores, no entanto, para melhor compreensão dessa reflexão, devemos considerar como premissa que a construção da opressão fundamenta-se na relação de poder que cruza distintos marcadores sociais da diferença —­ raça, gênero, classe etc. — e situa-se em diferentes contextos com o seguinte formato: dominantes x dominados. Inexistindo, portanto, opressão quando existe igualdade de forças tanto simbólica, como material.

A história do Brasil é marcada por quase quatro séculos de escravidão da população africana e afro-brasileira, porém, apesar da abolição da escravatura, não houve a ruptura do formato “dominante x dominado”. Os ex-escravizados foram jogados à margem da sociedade sem reparação pelos séculos de violência.

Angela Davis (2019), filósofa e ativista afro-americana, explica “Nós proclamamos a abolição da escravidão pensando que os impactos econômicos, culturais e sociais da escravidão fossem desaparecer automaticamente”2. Com o desenvolvimento da lógica capitalista, a elite, outrora senhores de escravos, continuou intacta e usou o racismo como elemento estruturante das divisões de classe, concentração de renda, superexploração do trabalho, além de estabelecer mecanismos repressivos contra os dominados. Isto é, foram empreendidos processos muito bem articulados para o estabelecimento do racismo estrutural e a permanência do status quo.

Nesse sentido, o racismo é configurado no estabelecimento do fosso entre negros e brancos, onde somente os últimos encontram-se numa posição privilegiada e condenam a sobrevivência dos que estão no degrau inferior de qualquer hierarquização no sistema político-econômico. Silvio Almeida (2019), Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, esclarece:

É preciso ter mecanismos estatais funcionando, mecanismos ideológicos, para reproduzir esse imaginário social sobre o comportamento de pessoas de grupos racializados. É preciso ter mecanismos jurídicos que irão estabelecer o limite do comportamento das pessoas que pertencem a determinados grupos, e é preciso também mecanismos e estruturas econômicas.3

Nessa linha de raciocínio são inevitáveis algumas perguntas: qual a representação dos negros nos espaços de decisão como Legislativo, Executivo e Judiciário? Qual a representação dos negros nas instituições públicas, e privadas, em ocupações como presidência, diretoria, gerência e liderança? Qual o número de empresários negros no Brasil? Em espaços televisivos, revistas e jornais, onde certamente tem importante influência na construção de consensos, qual a representação e o papel desempenhado pelos negros?

De maneira alguma será fantasioso se as respostas colocarem sujeitos brancos como denominadores comuns, e as suas representações ausentes de estigmas e estereótipos. Esta é uma das características centrais do racismo estrutural, e isto nos condiciona ao entendimento de que são as pessoas brancas que permitem a manutenção do privilégio da própria raça, pois, estão concentradas nos espaços de poder e detêm maior grau de importância na sociedade. O Grupo de Trabalho da ONU sobre Afrodescendentes, concluiu em relatório:


Os afro-brasileiros constituem mais da metade da população brasileira, no entanto, são sub-representados e invisíveis na maioria das estruturas de poder, nos meios de comunicação e no setor privado. Esta situação tem origem na discriminação estrutural, que se baseia em mecanismos históricos de exclusão e estereótipos negativos, reforçados pela pobreza, marginalização política, econômica, social e cultural. (ONU, 2013)

Decerto que não descarto a conformação da subjetividade dos negros que molda preconceitos contra aqueles por quem estão sendo oprimidos, mas esse sentimento não muda a estrutura racista e nem elimina os privilégios. Assevero, então, que o racismo de negros contra os brancos é um contrassenso. E não adianta os privilegiados colocarem-se como vítimas, os negros continuarão lutando contra o racismo estrutural até que a cidadania não seja mais mutilada, como radicalmente questionou o geógrafo Milton Santos (1996/1997).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/legislacao/ Constituicoes _Brasileiras/constituicao1988.html/arquivos/ConstituicaoTexto Atualizado_EC%20105.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2020

SANTOS, Milton. Cidadanias mutiladas. In: LERNER, Julio (Ed.). O preconceito. São Paulo: IMESP, 1996/1997, p. 133-144.

SCHUCMAN. L. V. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana . São Paulo: Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia; 2012.

1 Para Lia Schucman “É nesses processos históricos que a branquitude começa a ser construída como um constructo ideológico de poder, em que os brancos tomam sua identidade racial como norma e padrão, e dessa forma outros grupos aparecem, ora como margem, ora como desviantes, ora como inferiores.” (2012, p. 17)

2 “Política eleitoral, sozinha, não vai mudar as conseqüências do capitalismo racista globalizado”, diz Angela Davis

Disponível em: <https://www.geledes.org.br/politica-eleitoral-sozinha-nao-vai-mudar-as-consequencias-do-capitalismo-racista-globalizado-diz-angela-davis/>. Acesso em 17 jan. 2020

3 “Não existe racismo fora de uma relação de poder”. Entrevista com Silvio Almeida

Disponível em: <http://umbrasil.com/videos/nao-existe-racismo-fora-de-uma-relacao-de-poder/>. Acesso em: 18 jan. 2020