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Mentalidade anti-científica foi levada ao MEC por gente que se sente ameaçada pelo pensamento

Universidade, autonomia e sociedade

Por Renata Nagamine e Rafael Lopes Azize

Em 2019, multidões saíram às ruas com palavras de ordem em defesa da pesquisa e da educação públicas. Com os cortes do governo, as universidades e os institutos federais estavam sendo ameaçadas na sua própria existência.

(imagem peter kaul – pl)

Para o governo, os cortes são necessários por uma crise de insolvência do estado. Constrói-se a ideia de que “as contas públicas não fecham”, ideia que justifica qualquer violação de políticas que muitos julgavam ser de Estado, a exemplo da expansão do sistema federal de pesquisa e ensino.

O argumento financeiro não é razoável. A economia feita com os cortes não é importante se comparada com os ganhos sociais que gastos em ensino e pesquisa representam. Melhor seria concentrar esforços em medidas para aumentar a arrecadação, como a reforma do sistema tributário. Ademais, o impacto que tem na economia real uma população treinada no manejo de instrumentos conceituais críticos, em métodos de adaptação imaginativa a problemas novos, no aprofundamento da construção social da ciência, e, sobretudo, uma população com crescente autonomia de pensamento acerca dos destinos de indivíduos, de coletivos, da sociedade e do país visando a cidadania e a efetivação do projeto democrático e republicano – esse impacto na economia real é virtualmente incalculável.

Mas, então, como entender os cortes? Queremos sugerir duas coisas: primeiro, o que está sob ataque são os sentidos mais profundos da autonomia universitária; segundo, a ameaça à autonomia universitária revela uma aparente incompatibilidade entre este governo e a sociedade pluralista, baseada na liberdade e nos demais pilares do estado democrático de direito que queremos continuar a construir.

“Marxismo cultural”

Comecemos pela linguagem dos ataques às universidades. Diz-se que elas são espaços em que impera um “marxismo cultural”, que são povoadas por “esquerdistas”. Samuel Moyn mostrou que esses termos remetem ao mito judeu-bolchevique. A partir do fato de alguns instigadores da revolução serem judeus, difundiu-se a história de que todos os judeus eram comunistas e, por conseguinte, contrários à religião e revolucionários. “Marxismo cultural” apontaria para uma transformação no interior do marxismo que teria sido feita pelos filósofos e sociólogos judeus de esquerda da chamada Escola de Frankfurt. Na prática ele denota uma aliança de feministas, pessoas LGBT, globalistas, ambientalistas, socialistas e intelectuais no intuito de filiar a “política de identidades” e o multiculturalismo ao judeu-bolchevismo, à identificação entre judaísmo e comunismo.

O termo quer evocar, assim, um conjunto de supostas ameaças ao “Ocidente cristão”, e todos aqueles que desejam poder continuar professando uma religião e se opõem à desordem são convocados a defendê-lo. Não devemos ter uma relação a-crítica com a chamada “política de identidades” e podemos concordar que predomina nas universidades uma orientação política do centro à esquerda. Também sabemos que ao longo da história as universidades têm sido um espaço de inovação em sentido amplo, que abrange a experimentação e a contestação de padrões sociais vigentes. Mas, ao contrário do que a ideia de “marxismo cultural” sugere, as universidades não são homogêneas, nem fechadas ao dissenso. Nelas encontramos grupos, ideias e discursos dogmáticos, mas sobretudo a prática continuada do pensamento crítico, que recoloca a dúvida e assegura espaço à liberdade de pensamento. Por fim, as universidades são espaços que têm na autonomia um valor e buscam cultivá-lo, mas não são conspiracionistas contra os poderes instituídos, como a ideia de “marxismo cultural” quer fazer crer.

Universidades são lugares de pensamento plural e crítico (essa a face negativa da sua tarefa), e também de aprofundamento e defesa de princípios universais e consensos (essa a face positiva da sua tarefa), consensos expressos em conceitos como laicidade, direitos humanos e o próprio conceito de “verdade”, o qual tem um sentido operatório fundamental na conversação pública.

Universidades são lugares em que a pluralidade do pensamento se dá para além, ou aquém, do espectro político no qual se articulam os antagonismos da república. É nesse sentido específico que a universidade é sem partido: não porque é a-política, mas porque é e deve ser de todas as cores políticas. Porque é o lugar da crítica à ideologia, ou seja, é o lugar da crítica a quaisquer sistemas de crenças que escondam os seus critérios sob um véu de ignorância, fazendo-se passar pela verdade auto-evidente ou pela mera natureza das coisas.

O problema é global, mas assume diferentes configurações locais. Não há nada remotamente aproximado a uma “ameaça” comunista no Brasil, que para o governo ideológico se trataria de barrar – e isso mostra a artificialidade dos termos em que os ataques são formulados. A ordem que se pretende restaurar é a da restituição de privilégios em uma sociedade profundamente desigual e multiétnica.

Guerra cultural

Os ataques do governo ao sistema público de pesquisa e ensino, tal como ao jornalismo independente, são uma guerra cultural. A metáfora da guerra não tem aqui caráter bélico. Quer chamar a atenção para o fato de se tratar de um ataque sistemático, que tem uma dimensão estratégica e objetivos realmente destrutivos.

Sua dimensão estratégica compreende o enquadramento, a ameaça e os inimigos, mas também uma oferta de soluções simples para problemas complexos, que as universidades, ao contrário, enfrentam justamente em sua complexidade. Com isso, o governo facilita a parcelas da sociedade alguma compreensão (distorcida) de problemas que elas não acompanhavam, ou de problemas que são difíceis a não especialistas entender. Essas “explicações” são veiculadas em redes que são, em certo sentido, de inclusão de pessoas excluídas dos espaços do conhecimento, ainda que se trate de uma inclusão falaciosa.

Se não nos dermos conta disso e não reagirmos, essa política de terra arrasada destruirá o que levamos décadas para erigir (com resultados extraordinários para tão pouco tempo, se nos compararmos com as multicentenárias universidades dos países centrais ).

Na defesa das universidades, esquerda e direita democráticas precisam urgentemente se unir contra o obscurantismo, mas também contra o suicídio econômico, em uma economia global cada vez mais dependente do conhecimento e da inovação.

Uma série de consensos ligados à construção da cidadania que nós julgávamos adquiridos ou em construção parecem não o ser mais. Parte dessa erosão está ligada a discursos obscurantistas, baseados em pensamento mágico, fidelidade à autoridade e antagonismo irracional à dissidência. Essa mentalidade anti-científica foi levada ao MEC por gente que se sente ameaçada pelo pensamento, o qual está na base do espaço de diálogo livre que é a universidade. Aliás, não só ao MEC.

O Ministro da Cidadania, Osman Terra, engavetou este ano um estudo sobre uso de drogas feito pela Fiocruz que havia sido encomendado pelo próprio governo. O estudo não confirmou a hipótese de trabalho do ministro de que haveria uma epidemia de uso de drogas no país. 

Em entrevista ao jornal O Globo em 28 de maio de 2019 ele usou um argumento falacioso, atacando a Fiocruz, que teria um “viés ideológico” pró-liberação de drogas: “Eu não confio nas pesquisas da Fiocruz. Se tu falares [sic] para as mães desses meninos drogados pelo Brasil que a Fiocruz diz que não tem uma epidemia de drogas, elas vão dar risada. É óbvio para a população que tem uma epidemia de drogas nas ruas. Eu andei nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a ver com as drogas, eu não entendo mais nada. Temos que nos basear em evidências”, disse. Ora, basear-se em evidências, como as tratam pesquisadores academicamente treinados, é o que o ministro não faz. Funcionaria mais ou menos assim: evidências científicas não são evidências, se não concordam comigo.

Ataque à autonomia

Uma expansão das universidades e institutos federais torna cada vez mais difícil que figuras desse tipo venham a centralizar decisões sobre os destinos do país. Cremos que este é o sentido mais profundo do ataque à autonomia das instituições públicas de ensino e pesquisa: barrar a construção de uma sociedade cada vez mais pluralista.

Mas há também, para concluir, um outro sentido para o ataque à autonomia universitária, e que diz respeito ao interesse de que o país se restrinja a um papel menor na divisão internacional do trabalho, incapaz de gerar tecnologia de ponta e experimentos sociais de incremento de convergência (democracia) com garantias individuais (liberalismo histórico). O sentido do ataque à autonomia das universidades é, assim, o de um ataque aos aspectos mais valiosos da modernidade.

Nesse sentido, talvez possamos dizer que o ataque à autonomia das universidades seja também um ataque ao sentido profundo do projeto republicano. Numa república democrática liberal, políticas públicas são desenvolvidas a partir de pesquisas feitas com critérios e baseadas em dados empíricos, livres de constrangimentos ideológicos (religiosos ou outros).

Numa república, princípios absolutos que garantem o pluralismo das interações de indivíduos e grupos não são relativizáveis por grupos específicos. Trata-se de princípios expressos em conceitos como o de direitos humanos e da laicidade do estado, que instauram uma paridade ao menos formal entre os interlocutores e os protegem contra práticas violentas ou mesmo pretensões de aniquilação, assegurando a abertura e a continuidade da conversação acerca de interesses percebidos como sendo comuns. (Do Le Monde Diplomatique)

Renata Nagamine (PPGRI- UFBA) e Rafael Lopes Azize, do Departamento de Filosofia (PPGF UFBA).

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