.Por Alessandra Caneppele.
Em seus textos Jones Manoel felizmente sempre nos convoca a pensar radicalmente nossa realidade brasileira – e no caso de suas interpretações do filme Bacurau (artigo publicado em 9 de outubro na Revista Ópera e sua participação no podcast Revolushow de 30 de outubro) me convocou a levar às últimas consequências uma questão: o que hoje Jones chama de “sujeitos de esquerda” – esses que ao mesmo tempo se exaltariam com a violência do filme e continuariam a propagar apaticamente uma política da conciliação – estariam sob o efeito de uma inércia afim a um estado normal de luto, passível de ser superado em uma posterior momento de ação, ou seria outro o caso aqui?
O tema do luto perpassa a análise de Jones e é fundamental também no filme sobre o qual ela se apoia: Bacurau começa com uma sequência de caixões desenterrados pelo caminho que leva justamente a uma cena de enterro. Mas se, como explica Jones ao final de seu texto, trata-se de ler a reação ao filme como um sintoma patológico dos “sujeitos de esquerda”, parece ser fundamental então voltar a Freud e retomar a discussão sobre quando o que poderia ser um luto se transforma em um estado patológico que ele definiu como melancolia. (Freud, S. Luto e Melancolia – 1917 [1915])
E se Domingas, a personagem que representaria em Bacurau esse sujeito burguês de esquerda que não se confunde com o povo, expõe nessa mesma cena inicial do filme sua ambiguidade em relação ao objeto do luto, nos aproximamos assim imediatamente da chave interpretativa usada por Freud para diferenciar luto e melancolia – mais um indício, portanto, da importância de olharmos através dessa patologia o que seria nosso suposto luto nacional.
Na distinção entre luto e melancolia, Freud separa o que seria um estado normal derivado da perda de um objeto amado (o qual, após o tempo necessário ao trabalho de elaboração e significação dessa perda, seria superado) do que seria um estado patológico vivenciado também a partir de uma experiência de perda, mas que se prolongaria desmedidamente em uma inação acompanhada de outros sintomas característicos.
Um objeto real, uma pessoa, ou até mesmo um objeto abstrato como pátria ou liberdade, diz Freud, podem provocar um luto; mas quando somos incapazes de compreender o que significa para nós isso que perdemos, o processo normal de superação dessa perda (no qual, pedaço a pedaço, vamos substituindo o perdido pelo novo) se torna impossível e, melancolicamente, permanecemos então como que paralisados e agarrados ao momento mesmo dessa incompreendida perda – como na cena inicial do filme, os caixões permanecem expostos, sem enterro.
Se na melancolia haveria desconhecimento consciente do sujeito em relação ao que de fato foi perdido (se aí se sabe a quem ou o que se perdeu, mas não o que o perdido significava para o seu perdedor), Freud pode supor então que a perda nesses casos seria muito mais de uma natureza ideal do que real.
Aplicando essa hipótese ao nosso caso nacional, poderíamos dizer que não foi meramente a eleição real que foi perdida (ou o governo), mas algo ideal que se perdeu com ela e que não se saberia exatamente o que é – saber que, mantido latente, inconsciente, alimentaria um estado patológico de desconhecimento e concomitante melancolia.
Freud vai levantando outras hipóteses sobre as razões desse desconhecimento e consequente derivação do luto normal em patologia. Por exemplo, em alguns casos “o objeto não está realmente morto, mas se perdeu como objeto de amor” – o que lhe permite aproximar a melancolia de um quadro narcísico, no qual mais do que a perda de um objeto o que está em jogo é a perda de uma certa imagem de si do próprio sujeito que o seu amor ao objeto sustentava.
Assim, se no luto o mundo se torna pobre pela subtração do objeto, já na melancolia é o eu que se rebaixa e empobrece – uma perda externa seria vivida como uma perda interna. Nesse contexto devem ser compreendidas as características perturbações melancólicas do sentimento de si, constantemente acompanhadas de autocríticas severas – e que podem chegar até mesmo a um quadro de delírio de insignificância.
Freud, com uma certa dose de sarcasmo, elogia essa vertente autocrítica que acompanharia a patologia melancólica:
“Quando em uma autocrítica extrema se pinta como insignificante, egoísta, insincero, um homem dependente que só se esforçou em ocultar as debilidades de sua condição, quiçá pensemos com nossos botões que finalmente ele se aproxima do conhecimento de si mesmo e só nos intrigue a razão pela qual um teria que adoecer para alcançar tal verdade”
Mantendo ao fundo em suspenso a questão sobre o que poderia ser a verdade de uma mea culpa de nossos “sujeitos de esquerda” depois da derrota eleitoral, continuemos a seguir as indicações de Freud sobre a estrutura da melancolia e seus sintomas.
Como nada em Freud é simples, ele vai continuar afirmando que nem sempre a autocrítica melancólica coincide com o que nós avaliaríamos como uma crítica pertinente ao sujeito – e, portanto, a verdade desse delírio deve ser procurada em outro lugar. Ele continua dizendo que esse autoflagelo do melancólico só é possível porque há uma cisão interna no sujeito que permite que ele martirize a si mesmo como um outro (seu superego, cindido do eu, pode martirizar seu próprio eu).
Daí a conhecida afirmação freudiana de que na melancolia “a sombra do objeto caiu sobre o eu que, na sequência, pode ser julgado por uma instância particular como um objeto, como o objeto abandonado. Dessa maneira, a perda do objeto transformou-se em uma perda do eu e o conflito entre o eu e a pessoa amada em uma bipartição entre o eu crítico e o eu alterado por identificação”.
Isso ocorreria quando a escolha do objeto é feita segundo um modelo de investimento afetivo narcísico – ou seja: esse objeto não foi amado apenas como tal, mas também como se ele fosse uma parte do próprio eu. A perda do objeto é então vivida como perda de um pedaço do eu e poderia funcionar como uma ferida interna exigente de cuidados – e, ao mesmo tempo, a partir da relação ambígua do sujeito perante esse objeto que falha ao deixar de existir como ditava o seu ideal, instaura no eu um processo interno de punições.
Freud encontra aí uma segunda característica da melancolia: “A perda do objeto de amor é uma ocasião privilegiada para que campeie e saia à luz a ambivalência dos vínculos de amor”. Um luto pode facilmente se transformar em melancolia primeiramente quando uma identificação narcísica entre sujeito e objeto faz com que a perda de algo externo se transforme em uma ferida narcísica, em um dano causado à própria autoimagem ideal do sujeito.
Contudo, a escolha pelo afeto narcísico carrega consigo uma posição ambígua frente ao outro e sua exterioridade – o qual, em sua própria qualidade de alteridade, não poderá ser sempre e apenas fonte de satisfação, mas necessariamente imporá privações e limitações ao narcisismo egóico. A perda de um objeto amado em uma constituição narcísica escancara a ambiguidade do eu frente a um outro que o satisfaz e também o priva de si mesmo! – e, por isso mesmo, será visceralmente tanto amado quanto odiado.
Na melancolia choramos a perda de um objeto de amor como se fosse a perda de uma parte amada de nós mesmos; mas igualmente o odiamos, na medida em que ele se mostrou capaz de nos privar desse pedaço dele que acreditávamos que pertencia idealmente a nós mesmos. Podemos assim reinterpretar a autocrítica do melancólico, reconhecendo aí uma velada queixa dirigida ao outro – e seu autoflagelo, como uma maneira de reafirmar sua superioridade perante seus supostos algozes externos.
Sabendo disso, voltemos a Bacurau e à análise de Jones.
O filme representa na cena inicial do velório uma ambiguidade da personagem Domingas perante um objeto popular perdido – a curandeira morta com a qual ela, médica, manteria relações de identificação complexas. Já antes da batalha final, da qual Domingas não participa, permanecendo do lado de fora da cidade, uma outra ambiguidade aparece, agora perante o vilão, que é acolhido em um controverso cerimonial de boas-vindas.
Essa personagem que pouco ri, pouco age e bebe mais do que deveria atravessa o filme melancolicamente ambígua. Ora, vendo no começo do filme Domingas visivelmente descompensada questionando se o povo irá chorá-la com amor semelhante ao dedicado à curandeira, impossível não reconhecer a queixa do “sujeito de esquerda” que se desespera, questionando-se: será o “Meu Povo” (in)capaz de reconhecer a “O meu valor de esquerda”?
A eleição de Bolsonaro escancara a falácia dessa dupla de ideais – mas, por conta da secreta natureza ideal e narcísica desse sujeito e seus objetos, ela se desdobraria em melancólica manutenção ambígua de um vínculo que não se perde nem se enluta? Ao invés de admitir suas perdas internas e externas, admitindo que algo não existe mais e que é preciso se abrir ao novo, o “sujeito de esquerda” preferiria se fechar na tentativa de curar suas feridas, até que seu corpo ideal (o seu próprio e o social!) voltasse a ser o que era antes? Até que o outro novamente se dobrasse a sua vontade superior, voltando a ser o seu ideal? Ele escolhe a autoflagelação, que não traz a verdade da perda e correspondente reconstrução posterior à autocrítica, mas apenas disfarça uma queixa em relação a um mundo que insiste em ser diferente e não reconhecer a superioridade de seus ideais, mantidos ainda, internamente, intactos?
Ao invés de luto, nossos “sujeitos de esquerda”, para não perderem os ideais de si e do outro, escolheriam a melancolia? Entre assombração e vida nova, eles optam pela primeira?
Se sim, o que vemos no cinema como uma catarse do público ao assistir Bacurau seria então apenas a característica transição da melancolia para a mania que ocorre quando um evento externo permite o reencontro momentâneo com as ilusões de si e dos outros – evento que libera, sob a forma de euforia, o gasto energético contido no cuidado da própria ferida narcísica.
Bacurau, uma representação artística, permite ao “sujeito de esquerda”, por um momento, reencontrar seus tão caros ideais de povo e de si mesmo – e, maniacamente, ele se refestela! Por isso a catarse ao ver na tela representado o povo que ele quer chamar de seu e o vilão frente ao qual ele quer se reconhecer como superior, reacomodando assim narcisicamente seu pequeno ideal de ego burguês de esquerda feliz ao lado de seu povo ideal (o qual ele precisa manter vivo para que ele mesmo possa sobreviver em sua própria identificação).
Em Bacurau, por quase duas horas, ele vê fantasticamente reviverem os ideais mantidos congelados em seu estado melancólico – os quais ele, paralisado, cuida em guardar à espera do grande dia da ressurreição. No relance mágico do cinema, a euforia maníaca campeia livremente sobre o melancólico.
Desses “sujeitos de esquerda” melancólicos nenhuma práxis (violenta ou não) pode surgir – pelo contrário, apenas a paralisia, pois a ação voltada para o novo, o futuro, está vetada para os que vivem para desconhecer suas perdas passadas.
Embora a nossa realidade pátria, especialmente com os últimos acontecimentos, seja pródiga em revelar a vacuidade desses sujeitos e objetos internos e externos que não são senão ideais, pela escolha melancólica nossos defuntos sobrevivem ainda intactos, sem enterro, aguardando em berço esplêndido – ou na sala de cinema – o instante mágico do retorno de seus mortos-vivos. Correm ao alívio do cinema para em seguida continuarem melancolicamente paralisados sob a sombra do que ainda não perderam, absortos nos cuidados de seus fantasmas – enquanto, do lado de fora, nossa real barbárie se ocupa ativamente em perpetuar a violência de seu repasto originário.
Nomeada não por acaso Domingas (referência ao dia em que o criador descansa olhando sua própria criação?), ela, elite, sabe ser também aquela causadora do mal-estar coletivo – e, como na cena da distribuição das doações, ela já não pode senão palpitar com seu saber, lavando suas mãos e entregando a decisão/ação ao povo.
No final do citado podcast, Jones ensaia desdobrar uma interpretação do que ele define como esse fenômeno do “sujeito de esquerda” mencionando a psicanálise e seus conceitos de Grande Outro; Sublimação e Fetiche; necessário, portanto, ele indica, descer aos fundamentos do jogo de identificações que nos paralisa enquanto nação – no que a análise do texto freudiano poderia ajudar.
Mas, como Domingas, admitindo um fracasso geracional, apenas uma nova geração, como a de Jones, comprometida com a construção de uma nova nação (e não mais com os remendos dos trapos da nossa velhota) poderá nos dizer o que fazer com isso!