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Após Golpe de 2016, Reforma Agrária se tornou modelo de concentração de terras

Escorado numa lei que sancionou em 2017, a de número 13.645, uma conversão da Medida Provisória 759, Temer abandonou por completo a distribuição de terras para asssentamentos e direcionou as ações do Incra para a concessão de títulos individuais (provisórios ou definitivos).

Houve antecipação de títulos em assentamentos que nem sequer haviam sido emancipados (ou seja, que já estão em processo de desenvolvimento econômico), impedindo que o domínio dos lotes permanecesse sob o controle das entidades associativas que geriam coletivamente os assentamentos.

A nova lei liberou terras públicas ao mercado, fechou as portas de acesso aos pequenos agricultores, ampliou de 1.500 hectares para 2.500 as áreas passíveis de regularização na Amazônia, inclusive as griladas, permitindo a incorporação mesmo aos que já detinham outros imóveis, acabou com a necessidade de destinação à reforma agrária e, por tabela, extinguiu a exigência de cumprimento da função social e ambiental das terras.

“A prioridade da atual política é produzir mais proprietários e menos assentados a fim de liberar mais terras ao mercado”, sustentam Juliana Malerba, assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), e Girolamo Treccani, professor da Universidade Federal do Pará (UFPa) e especialista em direito agrário.

Autores de uma pesquisa sobre o avanço da titulação em assentamentos ambientalmente diferenciados (nos quais estão inseridas as reservas extrativistas, florestas e áreas de uso coletivo por comunidades tradicionais), eles calculam, com informações levantadas por uma entidade de apoio a pequenos agricultores, a Grain, que um novo mercado de terras pode disponibilizar até 40 milhões de hectares só de terras em assentamentos da reforma agrária através da titulação de proprietários individuais.

Segundo eles, esse objetivo está evidente pela política fundiária em curso: o aumento expressivo com a concessão de milhares de títulos de propriedades, enquanto, por outro lado, nenhuma família de agricultores familiares obteve acesso à terra.

“Em 2017 foram emitidos 123 mil títulos provisórios ou definitivos, um recorde em relação aos governos anteriores, em que a média, entre 2003 e 2016, girou em torno de 20 mil por ano”, diz Juliana, que também é mestre em planejamento urbano e regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Pelos dados tabulados na pesquisa, coletados de 2006 a 2018 no banco de dados do Incra, a política de individualização da propriedade nesses assentamentos atingiu seu pico em 2017, com o registro de 9.357 contratos de titulação assinados. Em 2006 eram apenas 25 títulos. Uma norma baixada no governo Lula, em 2010, permitiu, no entanto, avanço significativo na mesma modalidade de titulação. Nesse ano o número saltou para 2.919 e seguiu nesse ritmo até ganhar força no governo Temer.

Nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2010, a reforma agrária alcançou o recorde histórico de 614.188 novas famílias assentadas – 72.484 a mais que nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso. Também houve um reforço e tanto no fortalecimento da agricultura familiar, que se firmou, desde então, como responsável por cerca de 70% dos alimentos que chegam à mesa do brasileiro.

No governo tucano, o embate entre sem-terra e latifundiários teve como teatro de operações o Pontal do Paranapanema, no noroeste paulista, em torno de terras devolutas ilegalmente tomadas por fazendeiros amparados por milícias armadas, bancadas pela União Democrática Ruralista (UDR).

Foi dos conflitos que marcaram a disputa pela terra na região nos anos 1990 que emergiu o atual secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, que presidiu a UDR até ingressar no grupo que ajudaria a eleger o presidente Jair Bolsonaro.

Nos 12 anos alcançados pela pesquisa em 126 assentamentos diferenciados, 35.094 contratos de titulação individual foram assinados, 98% deles, ou 34.695, na Amazônia, em áreas em que as populações lutam para manter os direitos coletivos e pela criação de assentamentos especiais. Amazonas, com 19.598 títulos outorgados, e Acre, com 4.921, lideram a corrida pela emissão de títulos individuais.

A intensificação da distribuição de títulos de propriedade individual em assentamentos diferenciados ou da reforma agrária foi estimulada pelo governo, que chegou a incentivar as superintendências regionais a criar metas de outorgas. Junto com o mutirão para regularizar, que ficou conhecido como “titulômetro”, outras medidas que dificultam a vida dos pequenos agricultores foram postas em prática.

Em 2017, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), através do qual os assentados poderiam vender seus produtos no mercado institucional, sofreu um corte de 66% em seu orçamento, redução agravada no ano passado, quando os recursos caíram de R$ 330 milhões para a modesta cifra de R$ 750 mil, um verdadeiro baque para a agricultura familiar. Os investimentos em infraestrutura nos assentamentos também foram reduzidos, no ano passado, em mais de 60%.

O desmantelamento da posse coletiva nos assentamentos, a proibição de outorga de título a entidades jurídicas, como as associações ou suas respectivas federações, e a individualização da propriedade tornam o pequeno agricultor uma presa fácil dos grandes do agronegócio.

Na condição de proprietários, eles perdem o acesso a créditos a juros baixos, como os do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), e a outras políticas públicas indispensáveis à produção e serão obrigados a recorrer aos bancos privados, colocando o título de propriedade como garantia de financiamento, o que poderá resultar na perda da terra num eventual endividamento.

“A titulação antecipada individual coloca os pequenos sob a mira dos grandes produtores. A dinâmica de compartilhamento da terra e dos espaços de uso coletivo está sendo alterada, gerando evidentes riscos de reconcentração fundiária”, diz Juliana. Em Santarém, no baixo Amazonas, no oeste do Pará, a nova política fundiária já mostra sua face perversa.

“Grandes produtores de soja estão financiando a titulação dos pequenos para depois comprar as terras”, denuncia Ladilson Amaral, secretário de Políticas Agrárias e Meio Ambiente do Sindicato Rural de Santarém, entidade responsável por mais de 70 projetos agroextrativistas e de desenvolvimento sustentável no município, quase todos parados em função do caos fundiário.

Com dificuldades para conseguir a titulação coletiva por causa da nova lei, a federação dos agricultores encontrou um jeito criativo para se contrapor à política governamental e ao poderio do agronegócio. “Como os grandes assediam os assentamentos para comprar terras tituladas ou em processo de titulação, estamos indo de casa em casa para convencer os agricultores a não aceitarem as propostas”, conta Amaral.

Além de denúncias ao próprio Incra e a entidades internacionais, o sindicato, a federação dos pequenos agricultores e movimentos sociais desencadearam nas áreas rurais uma campanha intitulada “Não Abra Mão de Sua Terra”. Ainda assim, segundo Amaral, desde que se expandiu na região, a soja tem sido responsável pelo desaparecimento de pelo menos 20 comunidades rurais no município de Santarém, cada uma delas com cerca de 50 famílias.

“Estamos perdendo uma comunidade por ano. Pressionadas pelos produtores ou com medo do agrotóxico jogado em lavouras próximas, o agricultor vende a terra e vai inchar as cidades. Tem lugares que só ficou como vestígio uma igrejinha. O resto a soja tomou conta”, afirma o sindicalista.

O aumento da titulação individualizada, em detrimento do uso coletivo, em assentamentos da reforma agrária ou diferenciados, segundo Juliana, põe em risco todas as estruturas coletivas de uso da terra, como as terras indígenas, quilombolas, ribeirinhos ou unidades extrativistas e reservas de preservação, atualmente exploradas de forma sustentável pelas comunidades tradicionais.

“A questão de fundo é a desagregação das terras coletivas para, individualizando as propriedades, liberá-las ao mercado em benefício do agronegócio e da mineração. Além da reconcentração, haverá êxodo, risco à segurança alimentar e aumento dos conflitos. Essas terras são inalienáveis”, diz Juliana. Ela lembra que no ano passado, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), 65 trabalhadores rurais foram assassinados, metade deles em massacres como os de Colniza (MT), Pau d’Arco (PA), Lençóis (BA) e Vilhena (RO).

A retirada das associações como mediadoras, segundo ela, fará aumentar os conflitos entre os próprios moradores, sem contar as expulsões e despejos, práticas recorrentes na região, com ou sem ordem judicial. “A tendência é que os conflitos se agravem; haverá mais briga no campo”, alerta o sindicalista Ladilson Amaral.

(Ver texto integral na Agência Pública)

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