Escola sem partido e o assédio moral de professores
.Por Sandro Ari Andrade de Miranda
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Apresentação do Tema
Lembro que na minha vida como estudante do ensino fundamental observei alunos pregando o criacionismo e atacando professores contra as teorias de Darwin e Lamarck sem nenhuma fundamentação, sequer de natureza empírica. Novamente este fenômeno ressurge por meio de projetos como o “escola sem partido”.
Quais as consequências deste processo: o primeiro já evidenciamos em vários momentos durante o pleito eleitoral que foi a repressão contra profissionais e instituições de ensino; o segundo deve ser um empobrecimento do processo formativo, pois muitos professores vão passar a sofrer constrangimentos e violência pela ação de grupos fundamentalistas; o terceiro será o esvaziamento intencional das matérias de cunho científico, especialmente as ciências sociais, como já podemos observar na Reforma do Ensino Médio imposta de cima para baixo pelo Governo Temer.
Os modelos autoritários sempre priorizam a restrição ao ensino de disciplinas como filosofia, sociologia, história e geografia, além das artes e demais humanidades. O objetivo, como afirmam os profetas das tragédias é fortalecer o ensino de matemática e língua portuguesa, assim como de matérias doutrinárias, como as nefandas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil – OSPB, impostas pela ditadura militar no Brasil, como consequência dos acordos educacionais firmados em 1968 com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional – USAID.
Qualquer pesquisa um pouco mais séria vai perceber os países com melhores resultados em termos de educação no planeta seguiram caminho absolutamente contrário, com o aumento de escolas com educação de tempo integral, o fortalecimento das humanidades, a introdução de temas como gênero (União Europeia), educação sexual (Espanha, Alemanha e vários estados do EUA) e homofobia (Escócia). Na Finlândia, no Canadá e no Japão, por exemplo, os alunos são incentivados a participar dos processos deliberativos e a discutir temas de interesse coletivo desde o início do processo educacional, o que valoriza também a sua formação como cidadãos e cidadãs.
Em sentido contrário, no Brasil o Presidente Eleito, Jair Bolsonaro (PSL/RJ) e uma Deputada de Santa Catarina, também do PSL, orientam os alunos a gravarem as aulas de professores, ameaçá-los e a formar um “comando de caça aos comunistas e esquerdistas”. Paulo Freire, defensor da democratização do ensino, da erradicação do analfabetismo e da educação libertadora, o mais renomado e citado intelectual brasileiro no mundo acadêmico interrnacional, virou alvo de constantes ataques pelo xiitismo direitista.
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A Visão do Mundo Jurídico Sobre o Assunto
Mas o que diz o Direito sobre isto? Primeiro, a Constituição Federal é bem clara:
“art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Logo, a fragmentação do ensino, com o afastamento das ciências sociais pelo MEC é uma medida amplamente questionável sob o ponto de vista constitucional. Afinal, como exercer plenamente a cidadania se o aluno sequer poderá conhecer a sua própria história? Mas vamos mais adiante, pois o artigo 206 é expresso quanto à plena liberdade de ensinar:
“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
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VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
………………………………………………………………………………………..” (grifamos)
Desta forma, restringir o debate científico e de temas de ampla relevância social, como gênero, homofobia e direitos humanos, como pretender os defensores do “escola sem partido”, é medida totalmente inconstitucional. Cabe aos docentes, dentro do seu âmbito de liberdade de ensino e respeitado o programa pedagógico da instituição de ensino, definir o método e o conteúdo de ensino.
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Tal entendimento é referendado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme Decisão do Ministro Luís Roberto Barroso sobre o tema:
“[…] A liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente proferir um pensamento crítico. Para que a educação seja um instrumento de emancipação, é preciso ampliar o universo informacional e cultural do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de conteúdos políticos ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante um ser “vulnerável”. O excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza. […] Vale notar, ademais, que a norma impugnada expressa uma desconfiança com relação ao professor. Os professores têm um papel fundamental para o avanço da educação e são essenciais para a promoção dos valores tutelados pela Constituição. Não se pode esperar que uma educação adequada floresça em um ambiente acadêmico hostil, em que o docente se sente ameaçado e em risco por toda e qualquer opinião emitida em sala de aula. […] A liberdade acadêmica tem o propósito de proteger o avanço científico, por meio da proteção à liberdade de pesquisa, de publicação e de propagação de conteúdo dentro e fora da sala de aula. É assegurada, ainda, com o fim de permitir ao professor confrontar o aluno com diferentes concepções, provocar o debate, desenvolver seu juízo crítico. Tem relação com a expertise do professor, ainda que não se restrinja a ela, porque as fronteiras de cada disciplina são elas próprias bastante indefinidas. Tem o propósito de assegurar uma educação abrangente. […] A norma é, assim, evidentemente inadequada para alcançar a suposta finalidade a que se destina: a promoção de educação sem “doutrinação” de qualquer ordem. É tão vaga e genérica que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia. Trata-se, assim, de norma que viola o princípio constitucional da proporcionalidade (art. 5º, LIV e art. 1º), na vertente adequação, por não constituir instrumento apto à obtenção do fim que alega perseguir. […]” (ADI 5537 MC, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 21/03/2017, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-056 DIVULG 22/03/2017 PUBLIC 23/03/2017) (grrifamos)
O Brasil também é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, “Protocolo de São Salvador”, promulgado pelo Decreto 3.321, de 30 de dezembro de 1999, ainda na gestão do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB/SP), que reafirma o mesmo entendimento:
“[…] “13. 2. Os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em prol da manutenção da paz. […]” (grifamos)
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Mesmo caminho seguiu o Ministério Público Federal, por meio da sua Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, de onde extraímos, com referência à Lei “Escola Sem Partido” aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas”, a seguinte posição da Nota Técnica nº 04, de 15 de setembro de 2016:
“[…] 10. que o propósito da Lei impugnada de cercear a discussão, no ambiente escolar, de certos assuntos que possam vir a ser considerados como “opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas” contraria os princípios conformadores da educação brasileira, dentre os quais, as liberdades constitucionais de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; e a gestão democrática do ensino público;
11. que o meio empregado pela Lei impugnada (consistente na proibição genérica e vaga do que a Lei denomina “doutrinação política e ideológica”, “opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas” e “convicções morais”) não apenas é inconstitucional, em razão do sacrifício desproporcional causado ao próprio núcleo do direito fundamental à expressão docente, como também revela-se excessivo, uma vez que não há no processo legislativo dados que permitam concluir que o atual regramento dos eventuais abusos é insuficiente para a proteção do bem jurídico constitucional invocado, qual seja, a liberdade de consciência dos alunos;
12. que o meio utilizado pela Lei impugnada, qual seja, a limitação à liberdade de ensino, não é adequado para o fim a que a norma se propõe, uma vez que a proteção constitucional à livre consciência é incompatível com quaisquer formas de censura estatal prévia, em desrespeito aos princípios estabelecidos nos arts. 205 e 206 da Constituição; […]”
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Aliás, para garantir a plena liberdade das convicções religiosas dos alunos, o STF já se manifestou que a participação de aluno em disciplinas de ensino religioso, em qualquer nível, é meramente facultativa, o que não contrária a liberdade acadêmica das demais áreas e respeita a sua liberdade de escolha (vide ADI 4439, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-123 DIVULG 20-06-2018 PUBLIC 21-06-2018).
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A Ameaça de Assédio Moral aos Professores e Professoras
Se a liberdade de ensinar e a pluralismo de ideias e concepções deve ser a regra, a adoção de quaisquer medidas em sentido contrário é um ato ilícito. Isto inclui casos como o do professor que teve a sua aula sobre comunicação com a temática “fake news” invadida por pai de aluna que era policial militar na Universidade Federal do Pará e a campanha da Deputada Estadual eleita por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSL/SC) para que alunos gravassem as aulas de seus professores com o objetivo de “reprimir a apresentação de conteúdos considerados por ela como ideológicos”.
Em todos os casos, temos aquilo que é definido pelo direito e sua literatura como assédio moral, ou seja, “uma conduta ilícita, de forma repetitiva, de natureza psicológica, causando ofensa à dignidade, à personalidade e à integridade do trabalhador. Causa humilhação e constrangimento ao trabalhador. Implica guerra de nervos contra o trabalhador, que é perseguido por alguém”. (MARTINS, Sergio Pinto. Assédio Moral. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Paulo, n. 13, p. 434, jan/dez. 2008)
Eu vou um pouco mais longe, a repetição não precisa ser contínua contra a mesma pessoa, basta que exista o dolo e a vontade de constranger ou humilhar o profissional no exercício da sua profissão, caracterizando perseguição para que tenhamos os assédio moral. Aliás, outro aspecto importante é que o assédio moral não se limita à ação do superior hierárquico contra seus subordinados. Existe, também, o que chamamos de assédio moral vertical assedente, quando uma pessoa ou grupo de pessoas atuam no sentido de desestabilizar pessoa que esteja acima na hierarquia profissional ou, no caso da docência, hierarquia acadêmica, pois o professor é responsável pelas aulas. Em qualquer hipótese, além da punição dos responsáveis pelo assédio, também é possível a indenização por danos morais. (vide: TRT-3 – RO: 02104201114203003 0002104-35.2011.5.03.0142, Relator: Sebastiao Geraldo de Oliveira, Segunda Turma, Data de Publicação: 06/02/2013,05/02/2013. DEJT. Página 96. Boletim: Sim.).
Portanto, quando falamos em projetos que visam castrar a liberdade acadêmica e impor um pensamento único, monolítico e doutrinário, como o “escola sem partido”, estamos diante de dois tipos diferentes de atos ilícitos, ambos passíveis de restrições jurídicas e punição: 1) o cerceamento de liberdades, inclusive de direitos civis; 2) o assédio moral dos profissionais de ensino. Em ambos os casos cabe à sociedade se posicionar contra o retrocesso e é direito dos profissionais vitimados buscar a reparação de eventuais danos, inclusive nas esferas civil, trabalhista e criminal.