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Os dias de um pai

.Por Luís Fernando Praga.

Já escrevi sobre a paternidade e o dia dos pais mais de uma vez, mas agora é diferente. Minha filha saiu de casa…

Já estamos cansados de ouvir a clássica sentença: “quando você for pai você vai entender!”, porém a gente nunca crê nessa lorota antes de ser pai…

Detesto dar o braço a torcer pra velho, mas era verdade todo o tempo! Só um aparte: apesar de detestar dar o braço a torcer para determinados enganos de meu passado, acabo de dar meu braço a torcer e nem doeu. Fica a dica, impeachmistas.

Bem, fui pai com 28, já sou pai há mais de 19 anos e muita coisa aconteceu pra me fazer entender que só sendo pai pra entender.

Antes de ser pai de menina eu já era tio de 6 meninos, dos quais, muitas vezes, ajudei a cuidar com muito amor e carinho (tirando aquela vez em que levei os 3 do meu irmão ao cinema e sentei um tabefe no cocuruto do mais novo, que não parava quieto por nada. Foi mal, Rafinha! Eu errei, irmão! Desculpa aí! Mas isso faz mais de 22 anos, tomara que ele nem se lembre…); cheguei a  trocar fraldas, levava pra passear, contava histórias, jogava bola e jogos de tabuleiros e gostava muito quando podia fazer isso, porque sempre gostei da companhia das crianças, de rir e de fazer graça com elas, de aprender, de ver a cara de criança quando aprende as coisas e de acompanhar até onde um novo aprendizado é capaz de levar um ser humano.

Entretanto eu sempre soube que, passadas aquelas horinhas aos meus cuidados, meus sobrinhos seriam novamente de seus pais, que voltariam a alimentá-los corretamente e cuidariam de seus ferimentos.

Quando a Natália nasceu, tudo começou a mudar. Eu fui o primeiro, junto com o Dr. Wlad, o obstetra, a ver sua cabecinha vindo do mundo dela, o útero, pro meu mundo duro, seco e frio, o Mundo onde os humanos vivem há mais de 200 mil anos; mais especificamente, à Campinas de 1999.

A partir dali ela era minha e meus irmãos não iriam decidir o que ela iria comer, como iria se vestir nem a que horas tomaria seu banho e… é, bebê é só isso mesmo.

Ela era muito miudinha, frágil, delicada e vermelhinha (sim, já era um prenúncio). Era tranquila, carinhosa, quentinha de se abraçar, mamava bem, dormia a noite toda, desde a primeira noite em casa, já no próprio quarto, sozinha em seu bercinho esmaltado num tom marfim.

Eu contava histórias pra ela dormir e ela gostava mais da história dos Três Gatinhos Feios.

Era incrível como eu e a Paula, minha esposa, adorávamos aquela coisinha misteriosa, capaz de incubar, em si, tanto futuro. Era incrível como cada dia era diferente da véspera e como nossa filhinha se desenvolvia e aprendia tantas coisas em tão pouco tempo. Era incrível aquele misto de responsabilidade e vontade de estar junto, aquele prazer em ser responsável por protegê-la, aquele orgulho e aquela graça em percebermos características nossas se mostrando nela.

Era bem ali que eu queria estar e era bem ali que começava a dar meu braço a torcer pra velharada… Eu me tornara pai, e só então fui entender.

Depois de 5 meses acabou o período de licença maternidade e a Nat foi pra escolinha. Sociável, minha filhinha entregou seus bracinhos pra “tia” como se fossem velhas conhecidas, logo no primeiro dia de “aula”, o que trouxe certa tranqüilidade e, por outro lado, aquela indignação que só quem é pai entende, de quando seu filho se sente tão bem com um estranho como com você.

Ainda não era escola sem partido e minha filha parecia uma esponjinha de aprender. Trazia os trabalhinhos manuais pra casa, os boletins com boas notas, os presentinhos de dia dos pais e das mães, as mãozinhas e pezinhos carimbados em camisetas e as marcas das dentadas de um amiguinho em seus braços. Acho que foi ali que o feminismo tornou-se irreversível em sua vida.

Aos 2 anos Natália foi ao cinema pela primeira vez. Era o lançamento de Shrek e a malvada não parava quieta pra que eu pudesse me divertir com o filme, mas eu não dei um safanão em seu cocuruto (desculpa, Rafa). A partir daquela data, nunca mais adentrei a um cinema se não fosse pra ver desenho, só quem é pai entende.

Fizemos várias viagens e, antes dos 5 anos, minha filha já conhecia Foz do Iguaçu, o Pantanal e as cavernas do P.E.T.A.R.. Ela adorava viajar e pensei até que, no futuro, pudesse se tornar uma profissional do turismo, mas minha alegria foi maior quando a Nat nos informou sobre suas pretensões de se tornar uma renomada médica veterinária, assim como seus pais.

Foi então que tive a excelente ideia de introduzi-la na lida profissional como minha subalterna imediata. Sua primeira missão foi a de auxiliar cirúrgica na castração de nossa gatinha Xaxá, uns 4 meses mais velha que a Nat. A experiência foi ótima, traumática (não para a Xaxá, que, bem anestesiada, tirou tudo de letra) e decisiva para que a criança percebesse que sangue não era a praia dela e nunca mais falasse em ser veterinária na vida.

Aos 6 anos, mudamo-nos de Campinas para Sumaré e, bem nessa época, ocorreu outro trauma provocado por mim na vida de minha filha. Ela olhou em meus olhos, pediu sinceridade e perguntou se era mesmo o Papai Noel quem a presenteava nos natais. Eu pensei um bocado pra responder e disse que não, quem a presenteava eram as pessoas que a amavam e que tinham condições de comprar presentes. Essa foi só uma das vezes em que fiz a Natália chorar, e ela chorou muito, copiosamente. Sinto-me muito mal e com vontade de chorar, toda vez que me lembro.

Arrependimento por ter dado aquela resposta? Não. Por uma contingência da vida, o pai da Natália sou eu; e, no pacote, veio, além de um pai que não bate em filha (se deu mal, sobrinho!), esse tipo de resposta e a predileção pelo que me parece a verdade, em detrimento do que me parecem “mentirinhas inofensivas”, suposições improváveis, tradições religiosas ou capitalistas e mitologias alienantes.

Pouco depois desse trauma, fomos escolher uma escola (escola mesmo), pra colocarmos nossa preciosidade. Depois de algumas viagens perdidas, conhecemos o Luciano (o tio Lu), professor de História e coordenador pedagógico que nos conduziu a uma visita em que mostrou trabalhos escolares de alunos de várias séries, todos sobre a “globalização”, que envolviam as disciplinas de História, Geografia e Ciências e tocavam em pontos como ecologia, imigração, sustentabilidade, desigualdade social, guerras e “por que uma criança ocidental se divertia com um “tablet” produzido pela mão de obra escrava de uma criança oriental que não se divertia?”…

Natália ficou naquela escola de 2006 a 2013 e, sempre que pode, vai almoçar com aquele coordenador pedagógico, que até hoje continua sendo o seu tio Lu.

Passavam-se os anos e nossa amada filha única demonstrava seriedade e comprometimento escolar impressionantes, dignos da genética de sua mãe!

A amizade e admiração pelo tio Lu, as dificuldades com a Matemática e a presença diária de um pai engajado nas causas sociais foram aspectos determinantes para abrir os caminhos que Natália percorreria pelo magnífico mundo das ciências humanas…

Ah, como a vida era tranquila e maravilhosa naquela primeira década dos anos 2000, mas todo equilíbrio só se chama equilíbrio porque pode desequilibrar…

Em 2008 veio a notícia que atingiu Natália como um tapa de supetão no cocuruto (foi mal, Rafael!): depois de 9 anos como filha única, Natália não mais seria a herdeira absoluta de todos os nossos bens… tudo bem, de todos os nosso genes.

Depois de muito planejamento de ficarmos numa filha só, sem planejarmos, Mariana se anunciava para 2009, o que tornaria a vida de Natália um verdadeiro caos! Na época a Natália não gostava de caos.

Mariana nasceu em meados de 2009 e desde a primeira noite em casa já aprendeu a dormir na cama, a cama do casal, como faz ainda hoje, aos 9.

Houve uma natural resistência no processo de socialização da Nat com a Mari e os 4 primeiros meses foram de afastamento. No final daquele ano a Natália passou 15 dias na Disney, com os tios (naquele tempo era mais fácil) e voltou com saudades da irmãzinha, o que me trouxe alívio e uma extrema felicidade que só quem é pai entende.

As meninas começaram a se dar bem e a Nat ajudou muito e ainda ajuda a cuidar da Mariana

São 10 anos de intervalo entre as crianças minhas filhas e 28 e 38 anos de diferença, respectivamente, de Natália e Mariana para a criança que é o pai delas. Tal diferença é um importante fator de percepção do processo de aprendizado, contínuo e ininterrupto de parte a parte.

Mariana é uma menina muito amiga e amada! Também é muito ativa, mas não hiper, a ponto de tomar Ritalina. É brincalhona e também vai muito bem na escola, mas não foi a Mari quem saiu de casa, logo me preservo o direito de focar na Nat.

Minha menina “dimaior”, aos 14, trocou a escola do tio Lu por um colégio técnico em Campinas, e aí eu vi a bichinha estudar! Era tudo mais puxado e difícil, o ensino era em período integral e ela saía de casa com o Sol nascendo, pegava o busão com o povão e voltava com o povão cansado e Sol já dormido havia horas. Chegava e estudava. Eu a mandava parar, relaxar, descansar, reprovar e atrasar um ano, se fosse o caso! Ela desobedecia… Ah, como é bom ter uma filha desobediente e como a desobediência é essencial ao desenvolvimento humano.

Apesar da austeridade exigida nos 3 anos de seu curso técnico, a Nat também soube viver! Não deixava de ir às festas e fez muitas amizades fortes e duradouras! Foi lá que minha filha teve seu primeiro namorado, logo no primeiro ano; o segundo no segundo ano e o terceiro no terceiro. Natália sentiu muito, teve encantos e decepções, buscou a felicidade, chorou um pouco, guardou e digeriu muito sentimento dentro dela e aprendeu a amar como quem deseja o bem, não como quem deseja possuir.

Natália bem que tentou superar o rigor e exigências de seu ensino médio. Não lhe faltou esforço, mas a matemática, da qual ela nunca fora grande amiga, ficava cada vez mais profunda, complexa e difícil e ela não conseguia encontrar um meio de conciliar um bom desempenho escolar com o ódio pela disciplina, então foi preciso desistir… do ódio. Buscou motivos para se interessar mais e mais pela misteriosa e desafiadora matéria; e, dia após dia, passou a nutrir um interesse crescente pela matemática, além de singulares respeito e admiração pelo Mauro, o professor exigente.

Eu, particularmente, gostei dos 3 namorados da Nat. Ela também, mas, no final das contas, a Natália foi mais ela e ingressou na Unicamp, em 2017, livre de namorados, leve e solta. Ela faz o  “Cursão” ou “Curso 51”, um curso de exatas que é o ingresso para as graduações em Engenharia Física; Física; Física Médica; Física Biomédica; Matemática; Matemática Aplicada e Computacional.

Pois é, exatas… Hoje ela gosta dos números, dos astros e até do caos. Agora, no segundo ano, decidiu-se pelo bacharelado em Física.

Este texto ta ficando grande, mas sempre será pequeno para o tanto que eu gostaria de dizer pra minha filha que a amo! Amo como quem deseja o bem, não como quem deseja possuir.

Natália ingressou num projeto de iniciação científica e nos disse que, com o dinheiro da bolsa, iria procurar uma república para morar mais perto da faculdade e ocupar de outra forma aquelas quase 4 horas perdidas diariamente dentro de um ônibus.

Na república que abriu as portas pra minha filha, há cerca de 30 dias, fizeram uma rápida entrevista e a pergunta “cereja do bolo” foi: E aí, foi golpe?

Adivinhem a resposta da filha do Luís Fernando Praga…

Fico feliz que a Natália esteja numa república de verdade, com gente inteligente e historicamente consciente, diferente do “tucanato” em que se transformou nosso país.

Minha filha, você é incrível e é motivo de muito orgulho pra mim e pra sua mãe! Sua vida enriquece as vidas que a rodeiam e permite que eu goste ainda mais de minha vida!

Muita coisa aconteceu desde o dia em que me tornei pai até hoje: em 2001 assassinaram um querido prefeito de Campinas, o Toninho do PT (é, do PT) e no dia seguinte caíram as torres gêmeas; em janeiro de 2003 o Brasil trocou do governo de FHC, oriundo de uma tradicional família de militares e políticos do Império, bisneto do capitão Felicíssimo do Espírito Santo, deputado e senador pelo Partido Conservador e presidente da província de Goiás; e neto do general de brigada Joaquim Ignácio Baptista Cardoso, pelo governo Lula, nosso primeiro presidente nascido na miséria, cujos genitores não têm páginas na wikipédia e cujo governo atingiu o record histórico no índice de aprovação popular, acima de 80%; em 2006 os USA (do republicano George W. Bush) assassinaram Saddam Hussein, enforcado e sem um julgamento internacional; em 2010 Lula também tornou possível a eleição de Dilma Rousseff a primeira presidenta da história de nossa república machista; em 2013, eu e a Nat corremos juntos os 10 km da corrida da Lua; o povo brasileiro viveu um período de união e feliz prosperidade, mas parte do povo se esqueceu e ajudou a dar o golpe de estado de 2016; em 2017, aos 18 anos, a gatinha Xaxá parou de viver e de conviver conosco; chegou a cachorrinha Catarina; fui feliz como pai de minhas filhas por todo esse tempo…

Aí, mês passado, a Natália passou a se sustentar e foi morar numa outra casa. Continuo sendo seu pai, com o mesmo orgulho, nessa nova realidade de independência e liberdade!

Sinto muito por tê-la feito chorar tantas vezes, minha filha! Espero ter aprendido alguma coisa com meus erros e tento continuar aprendendo, agora com a Mari, que também já chorou muito por culpa minha! Procuro, sempre, a cada agora, encontrar formas de agir menos brutais e insensíveis que aquelas a que submeti vocês duas muito mais de uma vez. Eu sei que ainda sei ser estúpido, filha, me desculpe!

Ah, mas não pode terminar triste!

Conviver com minhas filhas é sempre muito mais alegria que dor e tristeza! É sempre muito  mais carinho e abraço e beijo e querer bem que rispidez. É sempre muito mais aprender que ensinar! É sempre mais tolerar que exigir! É sempre mais ser amigo que jogar contra! Nossas viagens são inesquecíveis e espero contar com vocês em todas a que vocês puderem ir, filhas!

Natália, seu pai te ama muito; e saiba: isso não te obriga a nada! Sei que não se pode obrigar alguém a amar e respeitar e sou grato, pra sempre, por todo o amor e respeito que você demonstra por mim e pela sua mãe!

Voe longe e volte sempre, filha, sempre que quiser! As portas estarão abertas, vai ter comida boa (a Nat é vegana), conversa, abraço, sofá com todo mundo apertadinho, risada e vida!

Só um detalhe, pra não ser pega de surpresa quando vier nos visitar: agora que seu quarto ficou vago, filha, seu pai, um lutador que nunca bateu em ninguém (tirando um sobrinho, uma vez), montou nele o Escritório Central do Consulado Secreto da URSAL em Sumaré, de modo que será preciso dividir o quarto da Mari. Mas olha: sigilo absoluto!

Amo vocês, filhas!

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