Por Fabiana Frayssinet | Tradução: Inês Castilho
A rejeição do Senado argentino ao projeto de descriminalização do aborto não deteve um movimento latino-americano que já está nas ruas e se expande, de forma cada vez mais articulada, entre as organizações de mulheres da região – que tem as leis e políticas mais restritivas contra o direito de decidir. Aprovado na Câmara de Deputados e depois rejeitado por apenas 38 a 31 votos em 9 de agosto, o projeto de interrupção voluntária da gravidez na Argentina e a histórica mobilização social que o acompanhou nas ruas era uma esperança para outros países.
O Instituto Guttmacher estima que, entre 2010 e 2014, ocorreram anualmente 6,5 milhões de abortos induzidos na América Latina e Caribe, bem mais que os cerca de 4,4 milhões, em média, praticados entre 1990 e 1994. Nesse mesmo período, a região teve a taxa de gestações não planejados mais alta do mundo: cerca de 14 milhões, das quais 46% terminaram em aborto, como destaca o Instituto, que promove os direitos reprodutivos das mulheres segundo os princípios da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Quem perdeu, na verdade, foi a política, porque enquanto toda a sociedade discutiu, manifestou-se e se somou à onda verde (cor adotada por quem promove a legalização do aborto), a maioria dos partidos políticos nem se importou”, disse ao IPS a médica feminista Mabel Bianco, presidenta da Fundação para Estudo e Investigação da Mulher (FEIM). “Penso que, embora influencie um pouco menos do que se a lei fosse aprovada, o impacto da onda verde e a repercussão que ela teve nos países da América Latina serão notados da mesma forma, e influenciarão a apresentação de novas leis. Vão inclusive reavivar alianças com mulheres parlamentares e jornalistas. Vamos seguramente colher frutos em vários países”, antecipou.
Na Argentina só é permitido o aborto em caso de estupro e de risco de vida ou da saúde da mulher; nos outros casos, há pena de até quatro anos de prisão. O aborto só é plenamente legal em Cuba, na Guiana, Guiana Francesa e Uruguai, assim como na autônoma capital do México, enquanto no resto da região só está descriminalizado em restritivos pressupostos terapêuticos, semelhantes aos da Argentina. Bianco atribui isso “ao peso” da majoritária Igreja Católica na região, e “agora às novas igrejas evangélicas, que estão conseguindo penetrar em amplas camadas da população, especialmente as mais pobres. Nos preocupa porque esses grupos se infiltram nos partidos políticos e logo que chegam nos parlamentos armam bancadas e orientam as decisões, como está ocorrendo no Brasil”, sustentou.
Por essa razão, para essa feminista latino-americana, o próximo passo na Argentina e em outros países da região será “avançar com uma campanha pelo Estado Laico”. “Ganhamos a batalha. Perdemos esta etapa, mas teremos para nos recompor e voltar com força para vencer”, sintetizou a presidenta da FEIM, organização que, ao lado de outras, levará adiante a apresentação de uma nova lei de descriminalização, no próximo período legislativo da Argentina. Paralelamente, continuarão lutando para descriminalizar o aborto no arcaico Código Penal, e para conseguir que as leis vigentes de saúde sexual e reprodutiva e de educação sexual integral sejam aplicadas, depois que “todos, no parlamente, encheram a boca para dizer que estavam de acordo”.
Países com proibição absoluta
O debate cresce também em outros países da região, como República Dominicana, Haiti, Honduras, Nicarágua e Suriname, onde a interrupção induzida da gestação está proibida em qualquer circunstância. Ainda mais draconiano é o caso de El Salvador, onde uma mulher que pratica o aborto pode ser condenada a até 50 anos por “homicídio agravado”, num país governado pela esquerda desde 2009, como ocorre em outros países com proibição absoluta. “Nesse sentido, se uma mulher enfrenta uma gravidez que coloca sua vida em risco, se uma mulher enfrentou violência sexual, se inclusive uma menina de 10 anos sofre um estupro e fica grávida, as mulheres não têm alternativa neste país”, disse de São Salvador a ativista pelo direito de decidir Sara Garcia.
“As únicas alternativas para as mulheres são a prisão ou a morte ou um dano à saúde”, ressaltou a integrante da Organização Cidadã pela descriminalização do aborto de El Salvador. Garcia enfatizou que, nesse país centro-americano, “a criminalização absoluta do aborto afeta um perfil, um grupo específico de mulheres, qual seja, as mulheres jovens, as mulheres que vivem em situação de pobreza, as mulheres com baixa escolaridade, as mulheres que estão enfrentando o sistema público de saúde. Essas são as mulheres que arcam com as maiores consequências de uma lei tão restritiva”. Segundo a Organização de Mulheres Salvadorenhas pela Paz, entre 2000 e 2014, 147 mulheres foram processadas por delitos relacionados ao aborto, 49 das quais foram acusadas: 23 por aborto e 26 por assassinato. Em 2018, 24 mulheres encontram-se encarceradas pelo suposto delito de aborto induzido, ainda que algumas tenham insistido em dizer que sofreram uma interrupção espontânea da gestação.
Contudo, depois de um intenso debate de organizações feministas e acadêmicas, essa situação pode mudar. “Temos intensificado o debate, há um projeto de lei na Assembleia Legislativa que busca descriminalizar o aborto por quatro causas, enquanto um outro afirma a descriminalização por duas causas”, explicou Garcia. “Sabemos que o assunto está dividido, que enfrentamos dogmatismos e fundamentalismos. Mas sem dúvida sabemos que a consciência social e a consciência cidadã são o que faz com que em nosso país, apesar de tudo, já não se possa retroceder”, afirmou.
Nesse sentido, segundo Garcia, as ondas dos lenços verdes nas ruas “significaram força e esperança” para as ativistas desses mesmos direitos em El Salvador e no restante da região. Enquanto na Assembleia Legislativa salvadorenha há debates “de dar vergonha alheia”, sem fundamento científico ou de direitos humanos, originados “por preconceitos”, “sabemos que nas ruas, na academia, nas organizações há outro nível de compreensão”, afirmou a ativista.
“Embora haja grupos fundamentalistas, também há outros que trabalham por uma sociedade onde os direitos sexuais e reprodutivos sejam respeitados”, ressaltou. “A onda verde influi em toda a região latino-americana e caribenha; ela nos dá mais força e nos diz: esta é uma luta em que todas estamos, e o aborto vai ser lei na América Latina e no Caribe”, concluiu Garcia.
O irrefreável movimento verde
Na Venezuela, outro governo filiado à esquerda desde 1999, o Código Penal proíbe o aborto, exceto em caso de risco de vida da mãe, e estabelece penas de seis meses a dois anos a quem o pratica. Mas em junho deste ano, várias organizações feministas adeptas do governo solicitaram, diante da Assembleia Nacional Constituinte, que se modifique o artigo 76 da Constituição de 1999, que protege a vida “desde a concepção”. Também solicitaram a inclusão de um capítulo de direitos sexuais e reprodutivos na Constituição, explicou Taroa Zuñiga, da Rede de Informação pelo Aborto Seguro, que recebe 43 ligações diárias de mulheres que decidiram abortar. A ativista venezuelana disse à IPS, em Caracas, que apesar da derrota no Senado argentino, o movimento verde fortaleceu toda a região. “Foi muito potente e revitalizante entender que o direito ao aborto pode tornar-se um movimento massivo. É sem dúvida uma onda irrefreável em toda a América Latina”, concluiu.(Do Outras Palavras)