.Por Luís Fernando Praga.
Ah, como a História é importante e reveladora! O que aconteceu, queiram ou não, não “desacontece” e fica registrado pra sempre, até que a mídia deturpe e a alienação apague…
Lembro-me de não ter votado pela reeleição de Lula em 2006, e essa fora a primeira candidatura de Lula a não ter contado com meu voto. Era democracia (bem, ao menos era muito mais democracia que hoje!) e haveria a possibilidade de votar nele no segundo turno, dependendo do outro candidato, mas não votei em Lula em 2006; e, mesmo sem meu voto, ele se reelegeu, derrotando o PSDB, de Geraldo Alckmin (que também não recebeu meu voto), de forma acachapante, com 60,3% dos votos válidos contra 39,17% de Alckmin. (21.000.000 de votos à frente do 2º colocado).
Fui oposição a muita coisa daquele governo, mas, principalmente, me opus às suas alianças com setores conservadores da direita.
Desde aquela época, e ali já havia se passado a crise do mensalão, ocorrida no 1º mandato (2002 – 2005), colocava-me a serviço de meu raciocínio na hora de votar. Posso recordar e explicar cada voto meu, desde 1989, e, dando o braço a torcer, posso ter raciocinado errado muitas vezes.
Ninguém é perfeito, mas considero mais digno dar o braço a torcer do que entregar os olhos à cegueira ou a voz à omissão.
Fato é que, por influência familiar, nunca aprendi a odiar o Lula, nem ninguém, aliás. Desde 1980 ouço falar sobre Lula com respeito e admiração. Meus pais (bancário e professora) e meu avô (jornalista e historiador) o enxergavam como uma novidade muito bem vinda na vida política brasileira naqueles estertores do período ditatorial, iniciado com o golpe de 64.
Na escola era diferente. Estudei num bom colégio particular em Franca-SP, e a relação de meus “amiguinhos” com a figura de Lula era de escárnio e raiva. Crianças na faixa dos 10 – 11 anos já tripudiavam de sua pobreza, de seu jeito grosseiro, rouco e sibilante de falar, tripudiavam de seu suposto analfabetismo, tripudiavam de seu dedinho a menos, de suas origens e já o chamavam de cachaceiro, bandido, burro, estuprador, daí pra baixo.
É triste me lembrar disso, mas meus “amiguinhos” já empregavam o tom pejorativo nas expressões “pobre”, “gay”, “preto”, “nordestino”, “gari”, “mãe solteira”, “metalúrgico”, “favelado”, “comunista”, “petista” entre tantas outras, o que já revelava que, apesar das altas mensalidades pagas por seus pais naquela escola cara, jamais fora uma prioridade da escola dissipar aquela certeza ignorante a respeito da condição humana, da própria e da alheia.
Hoje parece ser impossível que a maioria daqueles meus “amigos” seja capaz de enxergar um pobre, por exemplo, como um semelhante humano, digno dos mesmos direitos e do mesmo respeito.
Refletindo, percebo que desde 1980 o juiz Moro já contava com as “provas” contra Lula de que dispõe hoje: o ódio de quem foi influenciado a odiar e pegou gosto pela coisa.
Mas, apesar das certezas de meus “amiguinhos” sobre as incapacidades de Lula, em 1986, ele foi eleito deputado federal por São Paulo com a maior votação para a Câmara até aquele momento, tendo participado da elaboração da Constituição de 1988.
Como líder do PT na Câmara, Lula foi voz de oposição aos governos de José Sarney e Fernando Collor, e em seu único mandato como deputado federal, apresentou seis projetos de lei dedicados à correção de salários de trabalhadores ativos e benefícios da previdência aos aposentados.
Lula e o Partido dos Trabalhadores posicionaram-se contrariamente à aprovação daquela constituição nos termos em que fora escrita, pois consideraram que a carta não garantiria as transformações sociais buscadas e necessárias, e a estrutura econômica e política do País permaneceria inalterada, sobrecarregando o povo, beneficiando a elite e perpetuando os desmandos políticos em prol da elite.
Foi nesse período de atuação legislativa que Lula afirmou: “são 300 picaretas com anel de doutor”, referindo-se ao congresso nacional.
Depois de bem avaliado em seu mandato como deputado, Lula concorreu às eleições presidenciais de 1989, a 1ª direta depois do golpe de 64, e ficou na segunda colocação, perdendo para Collor, às de 1994 e 1998, quando foi derrotado por FHC e à de 2002, quando finalmente venceu pela 1ª vez.
Votei em Lula em todos esses pleitos e sofria nas derrotas, pois entendia que quem havia vencido representava a manutenção de uma situação de miséria, exploração, desigualdade social e corrupção, mas meus “amiguinhos” riam e ironizavam minha estupidez por votar naquele barbudo daquele partido.
Fui mais eu e, superando a maldade, o bullying e a ameaça de lavagem cerebral, mantive meu foco na justiça social, que sempre me pareceu a verdadeira justiça.
Mas o Lula eleito em 2002 já era diferente do Lula brutão de quem aprendi a gostar. Era um homem moderado e mais discreto. Fora lapidado, excluíra vários pontos radicais de seu discurso, não mais declararia a moratória de nossa então astronômica dívida externa e em sua Carta ao Povo Brasileiro, comprometia-se, inclusive, a tentar pagar a dívida.
Outro ponto importante na transformação de Lula foi a flexibilização com relação às alianças, antes restritas a pessoas e partidos da esquerda mais radical. Justificadas pela “governabilidade”, alianças até então impensáveis ocorreram na campanha de 2002, e foi aí que eu comecei a imaginar que Lula pudesse ter se tornado “mais do mesmo”.
A repercussão do caso mensalão, as tais alianças e o bombardeamento da mídia arranharam a imagem que eu tinha de Lula. Considerei que ele havia quebrado minha confiança, e não votei por sua reeleição em 2006, mas não havia como me cegar ao fato de que seu governo havia sido inigualável e transformador, tanto que terminou seu mandato em 2010 com inéditos 83 a 87% de aprovação popular.
Uma taxa de aprovação tão elevada indica que, além dos que nunca deixaram de odiar o PT, muitos dos apoiadores do golpe apreciaram as conquistas do governo Lula e só vieram a apoiar o impeachment contaminados pelo incessante esforço midiático de, em 4 anos, queimar a imagem do partido.
Eu também aprovei os governos Lula, mas acreditava que ele deveria ter feito ainda mais e se envolvido menos com esses que hoje nos governam.
Contrário a grandes períodos de continuidade de um mesmo partido no poder, em 2010 e 2014 também não votei na coligação petista, com Dilma Rousseff e Michel Temer, chapa vencedora em ambos os pleitos.
Fui às ruas em 2013 contra o projeto da “cura gay” e contra o aumento das tarifas de ônibus; e, sim, fui porque fui manipulado pela mídia e induzido a participar daqueles primeiros testes de “arrebanhamento” de gente à convocação global.
Fui contrário à Copa do Mundo 2014 e às Olimpíadas 2016 e fui um crítico severo da realização de tais eventos e do governo que os promoveu num país com tantas outras carências e prioridades.
Entretanto, já antes das eleições de 2014 percebi a perseguição midiática e a organização de setores ultraconservadores da sociedade e da política na intenção de desarticular a esquerda e destruir, difamar, caluniar e queimar irremediavelmente os nomes do PT, de Lula e Dilma.
Não havia governabilidade que se sustentasse no clima que fora criado e a rede globo estava envolvida até o pescoço na gênese desse clima social. Já se falava em impeachment e eu já era contrário, sentia e alertava que seria um golpe contra a democracia.
Aécio Neves perdeu as eleições e iniciou uma guerra contra o PT, junto de outros nomes, de passados muito mais que obscuros, historicamente ligados aos interesses da elite, do capital internacional e comprovadamente ligados à corrupção.
O governo Dilma foi engessado por esse mesmo congresso que continua lá até agora, muito parecido com os 300 picaretas de 1988, e não havia qualquer empenho, muito pelo contrário, em prol do País e da governabilidade.
A parte do povo onde se encontra a classe média brasileira comprou o discurso de Aécio Neves e de todos os corruptos que corriam risco na operação Lava Jato e que possuíam interesses pessoais na destruição antidemocrática do governo petista.
Chocava-me mais a cada dia, na medida em que percebia que nossas mais altas instituições, aquelas “mantenedoras da democracia”, em suas mais altas esferas, vinham atentando violentamente contra a democracia e a soberania do País.
A parcialidade da justiça, como hoje, já enojava e deprimia, a cada uma de suas decisões arbitrárias e partidarizadas.
O ano de 2015 transcorreu em clima de total polarização social e foi aí que comecei a buscar novos amigos.
Quem considerou que seus interesses eram os mesmos da rede globo, do congresso nacional e das bancadas da bala, da bíblia e do boi, do PMDB, do PSDB e do derrotado e enfurecido Aécio Neves, passou a demonstrar toda a sua boa educação, a educação adquirida em suas casas próprias e em boas escolas particulares das regiões Sul e Sudeste do Brasil, uma educação “cristã”, excludente, racista, machista, fascista e ideologicamente forjada para odiar quem quer que ameace o status quo da elite no poder, uma educação amparada pela ignorância.
A outra fração da população, apesar de, em boa parte, também desnorteada pelo bombardeio de informações e desunida em suas causas, já percebia que não podia se aliar aos que pediam o impeachment, já dizia que era golpe e já notava que Dilma, o PT e todo o Brasil vinham sendo vítimas de um grande complô.
Em 18 de Abril de 2016, nossos deputados federais com anéis de doutor, em nome da honra, da família, da moral e dos bons costumes, em nome das criancinhas de nosso Brasil, em nome da Ordem e do Progresso e em nome de Deus, deram a primeira estocada do golpe na alma da sociedade e aprovaram a abertura do processo de impeachment.
No dia 12 de Maio de 2016 nossos senadores, também movidos por seu apego forte à honestidade e pelo deus que trazem em seus corações e bolsos, afastaram Dilma da presidência para nunca mais voltar enquanto o País estiver nas mãos em que se encontra.
Em 23 de Maio do mesmo ano vaza o áudio em que Romero Jucá, PMDB (hoje MDB) de Roraima e líder no senado do governo Michel Temer, em diálogo com o ex-senador pelo PSDB, Sérgio Machado, esmiúça detalhadamente o golpe em andamento: um grande acordo nacional, com o STF (exceto Teori Zavascki) e com tudo, para derrubar Dilma e colocar o “Michel”.
Nesse momento os esperançosos na restituição da democracia acreditaram que o golpe seria desmantelado, mas nem a mídia nem a nossa classe média bem educada e formadora das piores opiniões, nem o congresso nacional nem o STF nem ninguém que pudesse interceder deu a mínima para o fato de que o golpe havia se mostrado tão hediondo e se tornado tão público.
Em 31 de Agosto de 2016 o senado aprova o impeachment e colocam o “Michel” lá, onde está até hoje.
Em 19 de Janeiro de 2017 o relator da Lava Jato e, segundo Romero Jucá, o único dos ministros do STF que não havia aceitado entrar naquele grande acordo nacional, Teori Zavascki, morre de queda de avião.
Em 8 de Abril de 2018 Lula é preso e afastado da vida política numa carceragem em Curitiba onde se encontra até agora.
É, preciso admitir e dar o braço a torcer: eu errei, raciocinei equivocadamente, fui induzido a pensar mal de alguém de quem a mídia desejou que todos pensassem mal. Mas eu acordei a tempo de não me tornar um golpista, um comparsa da elite, da injustiça, de assassinatos e da hipocrisia.
Hoje não posso deixar de me lembrar de um pronunciamento, dos anos 90, em que Lula afirmava ser um político e não um revolucionário, e que sua luta seria com as armas disponibilizadas pelo jogo político, não com armas de fogo.
O jogo político no Brasil jamais foi limpo e foi esse jogo sujo que cultivou, por interesse próprio, uma população alienada e pronta para atacar “em nome de deus, da moral e dos bons costumes”.
Foi o jogo sujo da política brasileira quem obrigou Lula a fazer alianças impensáveis em prol do êxito nas eleições e da governabilidade.
É o jogo sujo da política brasileira que mantém, desde os primórdios da república, um congresso a serviço da elite, mercenário e corrupto, com o qual Lula precisou negociar e com o qual Dilma não teve chances de governar por 2 mandatos.
Lula optou pela política e não pela revolução, pois sabia com quem estava lidando e, apesar disso, acreditou ser possível gerar uma transformação social neste país.
Os governos petistas tentaram aprovar as reformas política e tributária, mas o congresso, esse que deu o golpe e que lá continua, sempre vetou.
Os olhos de ver o presente precisam ser olhos de enxergar a história também.
Lula, o político odiado pela elite e pela classe média que se sente elite e se acha mais gente que gente pobre, nunca foi santo, ele é só um homem, mas conseguiu fazer mais pelo Brasil que todos os santos juntos.
O menino miserável, nascido do ventre da seca e da desigualdade, em 1945, foi o único que teve o “jogo de cintura”, a diplomacia, a vontade política e a competência necessárias para criar, nesse panorama dominado por uma elite escravocrata desde que o Brasil é Brasil, condições de ascensão social a uma legião de outros nascidos miseráveis como ele.
O menino que passava fome quando os clãs Sarney e Collor já roubavam dos pobres conseguiu implantar os programas Fome Zero e Bolsa Família e retirar da linha da miséria mais de 30 milhões de brasileiros nascidos famintos e miseráveis.
O único presidente da república flagelado da seca foi aquele que conseguiu viabilizar a transposição das águas do Rio São Francisco e matou a sede e a fome de milhões de nordestinos como ele.
O homem pobre que, em 1971, perdeu o filho e a esposa grávida de 8 meses por negligência médica foi o maior incentivador do SUS e foi o criador do Programa Mais Médicos.
O metalúrgico brutão e analfabeto, odiado desde sempre por meus “amiguinhos” bem educados, foi o presidente da república que mais investiu em educação, criou o Ciência sem Fronteiras, o Prouni (Universidade para Todos) e foi o que mais criou universidades públicas e cursos técnicos profissionalizantes em toda a história da república.
O líder sindical que, em 1981 (enquanto Aécio Neves já exercia, em liberdade, o crime de nepotismo e o cargo de assessor parlamentar de seu avô Tancredo), foi preso pela ditadura militar por “incitar a desordem” enquanto liderava greves em defesa dos direitos de sua categoria e do povo, foi o único que conseguiu colocar o Brasil na 6ª colocação no ranking mundial da economia, foi o único que pagou a nossa dívida externa, foi quem conquistou os maiores avanços diplomáticos e os melhores acordos comerciais de nossa História.
Lula é só um homem e não um santo, porém a nossa classe média cristã e hipócrita gosta muito mais de santo que de gente, porque toda gente é imperfeita.
Ah, como a imperfeição humana pode ser linda! Lula é um homem adorado e respeitado, no Brasil e no mundo, por tudo o que fez.
O jogo sujo da tradicional política brasileira “educou” meus “amiguinhos”, que me acusam de ser vítima de doutrinação marxista (eu queria saber como, já que fomos educados dentro da mesma sala, pelos mesmos professores); esse jogo os fez respeitáveis advogados, fazendeiros, empresários, médicos e juízes (em regra, filhos de outros advogados, fazendeiros, empresários, médicos e juízes, é claro).
Esse mesmo jogo sujo fez com que toda essa gente odiasse Lula pelo que ele é: povão brasileiro; e também por tudo o que ele fez sem precisar pegar em armas: Lula, enfim, despertou o gigante adormecido e deu a oportunidade ao povão brasileiro de deixar de ser explorado, um grande desaforo para com a nossa elite generosa e cheia de deus no coração.
Lula é hoje o cidadão brasileiro mais condecorado com títulos de Doutor Honoris Causa (33, sendo 17 de universidades internacionais), seguido de Paulo Freire (28) e FHC (13).
Hoje Lula é indicado ao Prêmio Nobel da Paz e cada vez mais gente no mundo reconhece e reverencia sua história.
Hoje meus “amiguinhos” do colégio ainda odeiam Lula e o continuam xingando e desprezando; e, assim como odeiam Dilma, o PT e a esquerda brasileira, odeiam quem não os odeia junto. É isso: não compreendem e odeiam quem não aprendeu a odiar.
O maior presidente da história do Brasil, que há cerca de 2 meses vivia no mesmo apartamento de classe média (com o perdão da palavra) em que viveu por mais de 20 anos, desde antes de tornar-se presidente, hoje está preso numa solitária fria, apenas por representar a ameaça de ser eleito novamente. Preso sob a acusação de possuir um imóvel que ele não possui e que jamais possuiu, sem qualquer tipo de provas, exceto aquelas de que a “justiça” brasileira já dispunha em 1980: o ódio da elite e de parte da população que se enxerga como elite.
Que bom que eu não vou passar vergonha nem entrar para a História como golpista. Que bom que eu e outros poucos saímos “tortos” daquele colégio. Que bom que eu pude redefinir minhas amizades nesse momento em que a humanidade das pessoas é colocada à prova.
Que triste que nada disso parece interferir na resolução dessa injustiça para com a vida humana, para com o mundo e para com o Brasil…
Segue a História e, até que o ódio se esclareça e desapareça e que uma consciência coletiva brote no povo brasileiro e clame pela verdadeira justiça social, o golpe segue também.