1º de Maio Unificado / Lula Livre (um relato de viagem)

.Por Luís Fernando Praga.

29 de Abril de 2018, domingo, 10 horas da manhã. Era o meio de um feriado prolongado, que prometia ser de sofá e cinema, mas havia aquela comichão… O País retalhado, inflamável, às vésperas do Dia do Trabalho, Lula preso em Curitiba e a história acontecendo demais pra eu ficar olhando de casa.

No impulso, comprei passagem no último ônibus para a capital paranaense e parti de Campinas em alta noite, levando uma barraca na mochila.

Sempre escrevo com a ilusão de que vou mudar o mundo e, de tanto escrever, já entendi que é só ilusão. Aqui segue um mero relato de viagem:

30 de Abril, segunda, às 7:30 chego a Curitiba.

Havia o fog habitual, mas a o clima era agradável. Chamo o Uber com destino à Superintendência Regional da Polícia Federal do Paraná, na carceragem da qual Lula se encontrava, em solitária, havia 25 dias. Eu sabia que deveria encontrar um acampamento da resistência nas proximidades.

O motorista me fitou e desviou o olhar, sério, como se não quisesse ter olhado, quando soube para onde íamos e que eu defendia a liberdade. Deixou-me a 4 quadras do local. Barreiras policiais impediam que qualquer veículo não cadastrado se aproximasse mais.

Era uma ladeira íngreme, algumas araucárias, um fundo de céu muito azul e o Sol já dissolvia a névoa da manhã. No alto, um cubo de concreto cinza e suas pequenas janelas refletindo o céu mostravam-me o caminho, mas nem seria preciso enxergar o prédio, havia gente.

Como na periferia de um grande formigueiro, gente com bandeiras, roupas vermelhas, roupas coloridas, roupas surradas, engravatados e pés descalços zanzavam pela área de cerco, onde não passavam carros.

Subi a ladeira, norteado pela concentração humana e pelo que vinha do equipamento de som. Conforme passava pelas pessoas, o cansaço da viagem e da subida se dissipava. Era uma energia boa e, pra mim, o remédio do qual eu não sabia que precisava!

Era muita gente feliz, com aquela leve sensação de poder ser ela mesma, sem que ninguém a fuzilasse com o olhar; aquela sensação de ter encontrado, finalmente, seu nicho seguro, apesar de estarmos cientes dos riscos que corríamos. Dois dias antes, o acampamento Marisa Letícia havia sofrido um atentado a tiros, e Jeferson, um dos ativistas feridos, ainda estava na UTI. Além disso, sabíamos em que Brasil nós vivemos.

No alto da colina, a rua apinhada de gente era quase intransitável. Lá aconteciam, de forma ininterrupta, os pronunciamentos e shows. Havia barracas de comida, água, refrigerante, camisetas e souvenirs relacionados à causa.

Acreditei ter chegado ao acampamento Marisa Letícia, mas estava na “Praça da Esquina Democrática Olga Benário”, base da vigília, a cerca de 100 metros do cárcere de Lula. O acampamento havia sido transferido dali, semanas antes, a fim de acomodar mais convenientemente a grande quantidade de pessoas dispostas a colaborar na vigília do presidente.

À minha chegada, encenavam uma peça sobre o massacre de Eldorado de Carajás, ocorrido 22 anos atrás, que ironizava o secular comportamento elitista de nosso sistema judiciário, seu íntimo comprometimento com banqueiros, empresários e políticos e seu modo de simplificar as coisas, colocando, de antemão, a culpa nos pobres e blindando os ricos, que são, em verdade e em última instância, para quem os juízes brasileiros trabalham.

Havia canções para Lula e palavras de ordem saindo da boca de quem quisesse gritar, na hora que quisesse. Havia sorrisos e abraços, havia comunhão de ideias, havia o discurso emocionado da senadora Gleisi Hoffmann! Havia forró, samba, rap e MPB da melhor qualidade. Havia o senador Lindbergh Farias, presidente da U.N.E., no meu tempo de faculdade, andando no meio do povo, como povo que ele é. Havia lideranças católicas, espíritas, evangélicas, judias e das religiões de matriz africana; havia índios, negros, asiáticos, europeus e miscigenados; havia L.G.B.Ts, estudantes, moradores de rua, professores, agricultores, poetas, advogados, engenheiros e historiadores. Havia funcionários da Petrobras com seus uniformes alaranjados e havia muitos aposentados, com suas histórias e demandas gritadas pelas marcas da idade em suas faces.

Cabia um Brasil inteiro ali, naquele território neutro.

Havia um cerco policial e, há 100 metros de nós, o homem por quem tudo aquilo acontecia. Há 100 metros daquele Brasil acolhedor em que se transformara a praça Olga Benário, reinava a injustiça sobre a carne cansada de um senhor de 72 anos, dono de uma das mais duras, belas e corajosas histórias de vida que a humanidade conhece, privado da convivência social, numa solitária fria.

Sentíamos-nos cuidando de Lula e amenizando seu tormento.

No meio da tarde caminhei uns 2 km até o acampamento Marisa Letícia e no caminho encontrei muitos companheiros, indo e vindo. Não nos conhecíamos e naturalmente nos cumprimentávamos com um #LulaLivre.

O caminho não era mais um território neutro, era a República de Curitiba, e eu voltei a ser fuzilado, por sorte, só com olhares. Fazia um raro calor, para essa época do ano naquela cidade, mas, para não perder o costume, até chegar ao acampamento, Curitiba foi fria.

Na entrada, dois rapazes me barraram e perguntaram, sobriamente, de onde eu vinha e pra que. Respondi e permitiram minha entrada, com aperto de mão e tapa nas costas. Cheirava comida boa, faziam a janta comunitária. Logo chegaram o José e a Edna, líderes do acampamento, e me acompanharam na visita. Tudo muito simples, tudo muito solidário, tudo muito democrático, mas havia regras: toque de recolher às 22:30, não eram permitidas drogas ou bebidas alcoólicas dentro do acampamento nem desrespeitos a convivência pacífica, e só. Serviram-me café bem quente, água e me convidaram para o jantar. O acampamento estava lotado e eu me espremia entre as barracas durante a visita, mas mesmo assim chegaram a insistir pra que eu ficasse; apertariam-me num canto.

Declinei à oferta e desisti de acampar. Já havia muitos representantes de minha causa e eu seria mais um estorvo que uma ajuda ali àquela altura, sem contar a questão da bebida alcoólica… Graças a deus, também sou cachaceiro, e não queria passar batido àquela noite, que já estava pra cair.

Despedi-me com abraços apertados, que trocavam alguma coisa que faz bem, mas os olhos não enxergam, e caminhei novamente para a Praça Olga Benário.

Na volta, passei bem em frente ao prédio da P.F., talvez a uns 40 metros de Lula. Havia poucos e ocasionais transeuntes, uns moradores do bairro de classe média alta (ai, meu fígado!) Santa Cândida, uns cachorros de rua livres, uns poucos policiais adestrados, eu e um grosso alambrado que deixava a injustiça maior do lado de dentro. Não pude fazer nada além de uma self.

Cheguei à praça da esquina democrática a tempo do “BOA NOITE, PRESIDENTE LULA!”, entoado por todos, do fundo de cada alma, pontualmente às 19:00. Ouvi algumas músicas, tomei, pontualmente, 3 latinhas de cerveja e chamei o Uber (eu disse Uber), que me levou a um hotelzinho perto da rodoviária. Comi pizza e dormi como uma pedra, daquelas de consciência leve.

1º de Maio. Ansiedade, café da manhã e Uber, sentido Praça Olga Benário, local da concentração do “povo sem medo, sem medo de lutar”, para a marcha até a Praça Santos Andrade, centro de Curitiba, onde ocorreria o ato público “1º de Maio Unificado / Lula Livre”, organizado em conjunto, pela primeira vez, desde a redemocratização, pelas principais centrais sindicais do País.

Cheguei a tempo do “BOM DIA, PRESIDENTE LULA!”, tão cheio de alma quanto o “boa noite”, mas, dessa vez, muito mais cheio de gente! Havia gente de todos os estados e o cerco policial ficou pequeno. Havia a mesma energia boa, havia o deputado Paulo Pimenta, havia grupos de percussão, havia gente de todo tipo, mas só os humanos, de todas as idades e de todas as classes sociais, havia o ex-governador baiano Jaques Wagner, o José, a Edna e os amigos do acampamento Marisa Letícia, havia a senadora Vanessa Grazziotin e a deputada Jandira Feghali, do PC do B, havia pessoas queridas, eu e minhas sandálias de couro, preparados para uma caminhada de mais de 8 km.

Partimos às 11:30. A prefeitura reservara um corredor, numa das faixas da avenida, para nossa marcha, que cortaria a cidade.

As canções, as mãos dadas, os gritos de guerra, a união e uma esperança, cheia de esperança em nós, tornavam o trajeto menos cansativo. Uma índia muito linda pintou meu rosto com urucum, ao som de “OLÊ, OLÊ, OLÊ, OLAÁ, LULAAA LIVREEE!”.

O Sol no coco, uns motoristas nervosinhos e certos moradores, das janelas de prédios grã-finos, se manifestavam contra nós e nossa luta. Alguns nos mostravam o dedo médio, mas, diferente de Temer, ninguém chegou a nos introduzir nada.

Retrucávamos com “BATE PANELA, PODE BATER, QUEM TIRA O POVO DA MISÉRIA É O PT!” ou mudando o final para “… COMPROU APÊ NO GOVERNO DO PT!”. Houve momentos em que cantávamos “LULA SIM, MORO NÃO! LULA LIVRE! MORO NA PRISÃO!”, canto do qual me abstive, por ser contrário às prisões e por não enxergar benefícios na vingança. Não por duvidar que Sérgio Moro seja um bandido, mas por entender que ele deve ressarcir o País com a verdade, mostrando quem são seus comparsas, quem é seu dono, limpando privadas, alimentando mendigos, tratando leprosos, prestando serviços à comunidade, e não se tornando um peso morto e esquecido numa cela. Creio que até Sérgio Moro tenha a capacidade de evoluir e, melhor que prendê-lo, seria destituí-lo de qualquer poder sobre o povo.

A polícia acompanhou nossa caminhada e agiu de forma irrepreensível, isto é, pra nossa sorte, ela não agiu. Ali não havia gente a fim de confusão, aquele era um momento de amor, comunhão e catarse coletiva da melhor qualidade, por isso nem precisei lançar mão de meu inédito hit: “O SEU POLÍCIA, ENCARE O FATO, VOCÊ É O NOVO CAPITÃO DO MATO!”.

A marcha foi cansativa, o que pareceu dignificar ainda mais nossos esforços. Muitas pessoas idosas, que poderiam ter ido de carro ou ônibus, fizeram questão de superar aquela dificuldade e demonstrar seu engajamento, seguindo unidos, apesar das dores e do calor.

Chegamos à Praça Santos Andrade às 14:30 e estava lindo demais! Bandeiras do Brasil, bandeiras do arco-íris e dos partidos de esquerda, todos! Bandeiras das centrais sindicais, bandeiras de #MariellePresente, bandeiras nas costas, bandeiras do movimento negro, MST e MTST, camisetas, as mais originais, e gente! Havia muita gente!

As pessoas, aglomeradas próximas ao belíssimo prédio da Universidade Federal do Paraná, onde ficava o palco, ou mais distantes, sentadas nos gramados, exibiam uma expressão forte e poderosa!  Exibiam a beleza da humanidade através de seus sorrisos e de seus choros! Exibiam uma beleza que jamais conseguirá ser imitada pelo padrão de beleza das novelas! Nós exibíamos a beleza que todos os seres humanos possuem, mas que muitos morrerão sem conseguir exibi-la uma vez sequer, muitos morrerão com sua beleza humana soterrada por valores deturpados e muitos jamais terão ciência dela…

Acompanhei ao show do rapper “Renegado”, com sua poesia cortante, de cunho social. Não conhecia e gostei muito.

Ouvi a sintonia e a união na defesa da liberdade, da justiça e da democracia, nos discursos dos “adversários” presidenciáveis Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila. Ouvi Aldo Rebello discursar com a mesma sintonia nas palavras, mas sendo chamado de “GOLPISTA!” por boa parte da multidão. Ouvi a emoção no discurso da atriz Lucélia Santos, lutadora abnegada de décadas! Ouvi a esperança na carta manuscrita por Lula, naquele mesmo dia, e entregue a Gleisi Hoffmann, para que a tornasse pública para aquele público tão especial!

Anoiteceu e Ana Canhas foi a responsável pelo show de encerramento do ato. Um responsabilidade à altura de nomes como Mercedes Sosa, Bob Dylan, U2 e Chico Buarque de Holanda! Ana Canhas também exibia aquela beleza da humanidade… Ela começou dizendo: “A primeira vez que eu cantei essa música para ele (Lula), ele disse que era a música da vida dele, por isso eu vou cantar bem alto e quero que todos cantem junto, bem alto, para que Lula ouça de seu cárcere!” , e todos os olhos marejaram, e todos nós cantamos, bem alto, uma canção de dizia

“…Mas sei, que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente, a esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista tem que continuar”

Ouvi ainda outra música, mas tinha passagem comprada e precisava voltar. Na caminhada até a rodoviária, na noite daquela Curitiba calorenta e fria, todas as vibrações dos dois últimos dias ditavam o ritmo do meu coração. Eu partiria de um dos mais representativos redutos da direita golpista brasileira, com destino a outro, mas sentia, claramente, que não havia mais apenas reses naqueles currais eleitorais. Havia a gente sem medo também!

02 de Maio. Chego cansado e sonado da noite mal dormida no ônibus. Trago bolhas nos pés e aquele assado na virilha que só os “fortes” quando andam muito conhecem. Mais tarde estarei trabalhando, tentando dar o meu melhor para ajudar os animais de estimação de pessoas que, majoritariamente, odeiam Lula, odeiam quem defende a libertação de Lula e odeiam a esquerda brasileira em geral. Trabalho de branco. Sinto vontade de ir de vermelho, mas afino.  Entristeço. Fecho os olhos para voltar algumas horas no tempo. Sorrio e, de olhos fechados, vejo que trouxe comigo mais que desânimo, cansaço e feridas.

Eu trouxe tudo o que vi e o que vivi! Eu trouxe a consciência de que nós somos muitos! Eu trouxe a convicção de que seremos cada vez mais! Eu trouxe a certeza de nossa força, pois ela é a força do ideal coletivo, do respeito às diferenças, da tolerância, do que é flexível, do que é resiliente e não se destrói.

Eu trouxe a ciência de que há um forte trabalho midiático e uma imposição cultural que nos querem invisíveis, marginalizados, ridicularizados e criminalizados.

Eles nos querem bem longe de suas ovelhas, eu sei, mas eu voltei confiante!

Confiante na capacidade transformadora, na coragem e na abnegação de cada um e de todos nós, que empunhamos a causa da justiça social! Eu voltei cheio de orgulho de meu ideal e desse meu povo que sabe ligar os fatos históricos. Eu voltei confiante em nossa paciência de explicar e explicar, de argumentar e argumentar, sem difamar, sem ofender, sem discurso de medo, sem discurso de ódio!

A luta será dura, como é de costume quando se lida com poderosos, com endinheirados, com juízes corrompidos, com mídia vendida, com fake-news, com séculos de uma péssima educação e com uma “gente de bem” que é reflexo de todo esse mal feito cultivado pela elite.

Não há mentira que dure para sempre, e lutar é bom! É nossa vocação! Ah, como é bom encontrar a causa certa e entregar a vida à ela!

Eu voltei reluzente e não posso mais ficar invisível! Eu não posso mais ter medo ou vergonha de me mostrar! Aparecer, agora, é inevitável, e eu vou pra rua de vermelho, de “boton”, de boné e de camiseta! Ninguém é mais brasileiro que eu! Ninguém é mais que nós! Não sou eu que tenho o que esconder! Eu não atiro em gente! Eu não roubo direitos de ninguém! Eu não golpeio a dignidade ou a democracia de ninguém! Eu não torço pelo prejuízo de ninguém! Eu não espalho calúnias sobre ninguém! Nós queremos o melhor para nosso país e chegou a hora de erguermos a cabeça e esbanjarmos nossa dignidade nessa sociedade hipócrita!

Chegou a hora do povo sem medo reluzir unido! #LULALIVRE