O golpe iniciado em 2016 é “uma tsunami política que tem um objetivo muito claro: remover qualquer traço de potencial soberania do Brasil, eliminar o Brasil do cenário geopolítico mundial como uma voz dissidente nas Américas e sabotar os Brics”. A avaliação é do neurocientista Miguel Nicolelis em entrevista ao Tutaméia.
Para ele, a situação atual é muito pior do que a vivida nos idos de 1964: agora o golpe “carrega dentro dele a semente da destruição, a obliteração total de qualquer vestígio de soberania brasileira”.
“É trágico. Se estivéssemos no século quinto Antes de Cristo aqui, um dos grandes poetas gregos ele iria escrever uma tragédia grega sobre a história brasileira. Nós somos a manifestação, no século 21, de uma tragédia grega do século quinto Antes de Cristo. Temos provavelmente um dos comportamentos mais peculiares do mundo, que é essa contínua tentativa de autossabotagem ao próprio país, essa autofagia brasileira, esse tiro no pé crônico é único”, afirma.
Nicolelis é um dos mais importantes cientistas do mundo. Membro das Academias de Ciência brasileira, francesa e do Vaticano, doutor em Medicina pela USP, ele recebeu mais de 30 prêmios internacionais.
Desde 1994, é professor da Duke University, nos EUA. Ficou mais conhecido do grande público quando, na abertura da Copa de 2014, Juliano Pinto, paraplégico havia dez anos, deu o chute de abertura dos jogos. Três metros atrás de Juliano estava Nicolelis, idealizador (com John Chapin) do paradigma cérebro-máquina que proporcionou a realização do inédito e revolucionário movimento.
Em 1964, observa Nicolelís, “a correlação de forças jogou o Brasil numa ditadura militar, mas onde os militares tinham um plano de Brasil. Não concordo [com o que o regime fez], mas não havia dentro do movimento militar o desejo de destruir a soberania brasileira, entregar a Amazônia, a nossa fronteira marítima –que era muito menor do que é hoje. Os militares foram atrás das 200 milhas, preservar a Amazônia, [criaram] a Embraer, o computador brasileiro, universidades federais. Não existia naquele golpe a estratégia de destruir o brasil como player mundial –e nesse existe. Desde a concepção, nesse golpe o mantra central é alijar o Brasil de ser um player mundial. Em todas as esferas”.
E desenvolve o argumento: “Não é à toa que a ciência brasileira está sendo sucateada. As universidades federais estão sendo atacadas a ponto de se discutir a possibilidade de algumas delas desaparecerem. O orçamento científico foi cortado em mais de 60%. A Embraer está sendo dada. O programa espacial brasileiro eu visitei na Base de Alcântara….”
Nicolelis conta que essa visita foi um dos momentos mais emocionantes de sua carreira. “Chegar lá e ver a base de lançamento brasileira, que também foi sabotada. Ninguém esclareceu direito o que aconteceu naquele acidente, anos atrás, quando o Brasil estava no limiar para entrar no clube restrito de países que são capazes de colocar objetos em órbita”.
E afirma: “Eu vejo tudo isso encadeado: a entrega do pré-sal, os abusos que nós todos temos testemunhado. Eu sou filho de juiz do Tribunal de Justiça, conservador, que nunca deu uma entrevista na vida, um juiz garantista”. Hoje, na sua visão, “nossas garantias jurídicas estão evaporando. Tudo isso é parte de um enredo completo, facetado, multidirecional, que tem um objetivo central muito bem edificado muito bem construído –que é a evaporação da soberania do Brasil como país que importa. Alguns anos atrás estávamos a ponto de passar –por algumas centenas de milhões de dólares não passamos– a economia da França e da Inglaterra. De repente, parecia que o Brasil ia dar certo”. (Do DCM –Texto completo)