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Na grande indústria farmacêutica, remédio que causa morte compensa com o lucro

O que não tem remédio (será que terá?)

.Por Raquel Torres.

“É assustador quantas similaridades existem entre essa indústria e o crime organizado”. Uma afirmação desse tipo sobre a indústria farmacêutica impressiona, mas o que impressiona mais é a fonte: quem a escreveu foi um ex-diretor de marketing da Pfizer, uma das maiores empresas do ramo no mundo, com cerca de US$ 50 bilhões anuais em vendas.

Peter Rost foi demitido em 2005 depois de denunciar a promoção ilegal de um hormônio de crescimento vendido como produto antirrugas, e hoje segue falando sobre conflitos de interesse e outros problemas das companhias. A comparação entre empresas e quadrilhas está em um livro lançado logo depois do episódio (The Whistleblower: Confessions of a Healthcare Hitman), e ele explica o raciocínio: “As quadrilhas produzem quantidades obscenas de dinheiro, assim como essa indústria. Os efeitos colaterais do crime organizado são matanças e mortes, e os efeitos colaterais são os mesmos nessa indústria. As quadrilhas subornam políticos e outros, e assim faz a indústria farmacêutica…”.

Alguns anos depois, outro Peter – o médico dinamarquês Peter Gøtzsche – usou a mesma referência no título de seu livro Medicamentos mortais e crime organizado. Na lista de semelhanças entre as duas atividades estão extorsão, fraude, crimes federais ligados a drogas, suborno, obstrução de justiça e corrupção – só para ficar em algumas delas. Ele também afirma, repetidas vezes, que o uso de medicamentos é a terceira maior causa de mortes na Europa e nos Estados Unidos, atrás do câncer e de doenças cardíacas (no Brasil, o uso indevido leva a 20 mil mortes por ano).

Eles não estão sozinhos. “O grande problema”, discorre José Ruben Bonfim,  coordenador da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), “é que a indústria farmacêutica precisa provar o tempo inteiro que está voltada para a proteção da saúde, para o alívio das doenças. Mas até hoje não provou isso. Tem méritos, é claro, em relação a conquistas sanitárias, mas estes méritos são ofuscados por uma sucessão interminável de danos produzidos nas últimas décadas”.

Em um livro lançado em 2004, quatro anos depois de deixar seu cargo de editora no New England Journal of Medicine, a também médica Marcia Angell escreveu o A verdade sobre as laboratórios farmacêuticos, onde, embora reconheça a importância dos bons medicamentos, diz que a indústria se tornou “antes de tudo uma máquina comercial que vende drogas de benefícios duvidosos e utiliza sua riqueza e poder para cooptar todas as instituições que cruzem o seu caminho, o que inclui o Congresso dos Estados Unidos, a FDA [Food and Drug Administration, agência reguladora norte-americana], centros médicos acadêmicos e mesmo a profissão médica”.

Um negócio e tanto

Há muitos e muitos séculos, alquimistas passavam a vida inteira correndo atrás de dois objetivos: produzir o elixir da imortalidade e transformar metais menos nobres em ouro. Se ainda não se descobriu o elixir, produzir riqueza não é um problema para as farmacêuticas. Segundo a revista Forbes, no fim de 2016 a indústria de genéricos era a mais rentável do mundo, com margens de lucro de 30%; a de medicamentos tradicionais estava em quarto lugar com 25,5% e a de biotecnologia em sexto, com 24,6%. Todas estavam acima dos grandes bancos. O ranking da Forbes de 2017 mostra que as cinco farmacêuticas mais valiosas tiveram em média lucros de US$ 6,5 bilhões.

Mas isso é relativamente recente. Embora as grandes empresas que conhecemos hoje já existissem no fim do século 19, foi durante a Segunda Guerra Mundial que elas começaram a crescer muito. Pouco antes haviam sido descobertas a penicilina e sulfonamida, medicamentos amplamente usados no tratamento dos soldados feridos e que desencadearam várias descobertas. “No pós guerra começa a aumentar o número de ensaios clínicos, a descoberta de novas moléculas, o aparecimento de medicamentos novos, a indústria cresceu e começou a ter um poder enorme”, conta o médico Dirceu Greco, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A conquista desse caminho do ouro levou a um círculo virtuoso (ou vicioso, dependendo da perspectiva). É que, como escreve o pesquisador canadense Joel Lexchin neste artigo, “quem tem o ouro fabrica as provas”.

Necessidade?

Quando você sai de uma consulta com uma prescrição em mãos, certamente confia que aquele remédio é seguro, necessário e eficaz. Às vezes isso é real. Mas numa boa parte dos casos, uma dessas características – ou mesmo todas – está faltando.

Algumas coisas parecem inexplicáveis. Neste artigo, Lexchin conta que, apesar de caríssimas, as drogas para tumores malignos lançadas nos Estados Unidos entre 2002 e 2014 geraram uma taxa de sobrevida de em média apenas 2,1 meses; e ainda que, na França, só 66 dos mais de mil remédios lançados entre 2004 e 2015 foram significativamente vantajosos. Há pouco tempo estudo do governo britânico mostrou que uma grande quantidade de antibióticos são receitados sem indicação real no Reino Unido. E, nos Estados Unidos, cresce a discussão sobre o papel da indústria farmacêutica na epidemia de overdose por opiáceos, que mata mais de 150 pessoas por dia.

Marcia Angell explica que, na verdade, o marketing tem importância vital para manter bem altos os lucros dessa indústria, e a propaganda assume formas variadíssimas. A face mais visível é a publicidade direcionada aos consumidores, mas também se fala cada vez mais sobre as estratégias voltadas especificamente para a corporação médica (e aqui tem uma reportagem sobre isso). “Existe ainda toda uma discussão sobre a invenção de novas doenças: se acaba a razão do medicamento, inventa-se uma doença nova para utilizá-lo”, lembra Greco.

E, muito antes de o nome do medicamento chegar à ponta da caneta do médico, ainda durante a fase de desenvolvimento e aprovação do produto, vários conflitos fazem da pesquisa clínica uma atividade bem menos confiável do que desejaríamos.

Crimes que compensam

Uma história célebre – e que mudou bastante o rumo das coisas nesse sentido – é a da talidomida, substância usada em um remédio lançado em 1957 pela alemã Grünenthal e largamente prescrito para gestantes como remédio para enjoo (mesmo que, de acordo com Peter Gøtzsche, não tenha sido testado adequadamente em animais prenhes). O problema era que ela tinha entre seus efeitos colaterais o de produzir malformação fetal, e os primeiros relatos desse efeito foram ignorados. Só em 1962, depois de muita pressão, o medicamento foi retirado do mercado. Mais de 10 mil bebês em 45 países foram afetados, e metade morreu.

De todo modo, essa história mudou radicalmente como se via a aprovação e circulação de medicamentos. Foi o início da pressão por testes que comprovassem tanto a eficácia como a segurança dos fármacos. Nos EUA, se estabeleceu que medicamentos só pudessem ser vendidos com autorização expressa da FDA. “Hoje, há dois grandes órgãos de regulação que influenciam o mundo inteiro: a FDA, nos EUA, e a European Medicines Agency (EMA), na Europa. Nesse continente, cada país tem sua própria agência, mas a aprovação de novos medicamentos é centralizada. E, embora cada país do mundo tenha sua agência reguladora, pode-se dizer que aprovações dadas na Europa e nos EUA têm um peso grande para os demais”, diz Bonfim. No Brasil, esse papel é realizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), criada em 1999.

José Ruben explica que quando uma empresa quer submeter um novo medicamento à aprovação e registro das agências, envia a elas um dossiê com o resultado de ensaios que devem ser avaliados (mas as agências não precisam se basear apenas nesse documento). Essa análise é paga pelas próprias empresas por meio de taxas, que variam de acordo com o tipo de empresa e de fármaco. As da Anvisa estão disponíveis aqui. “Isso é complicado. A Anvisa hoje não tem quadro técnico para isso. Utiliza consultores externos, que precisam declarar que não têm conflito de interesse com o que está sendo examinado, mas ainda assim não é suficiente, são muitos aspectos a analisar e esses dossiês são imensos. E o principal, no caso brasileiro, é que deveríamos ter uma agenda de prioridades para analisar de acordo com as necessidades da população, e não temos. A indústria paga e espera ter os resultados o mais rápido possível”, analisa ele.

Apesar das mudanças, sistema não se tornou infalível, e nada melhor que um escândalo para ilustrar isso. O Vioxx, fabricado pela Merck e prescrito para artrite e dor aguda, foi retirado de circulação em 2004 por provocar ataques cardíacos e AVCs com o uso continuado. Nos cinco anos em que circulou, pelo menos 47 mil pessoas morreram ou sofreram lesões irreversíveis  – um número ainda mais notável do que o caso da talidomida, mas em plena vigência das regulamentações. “E ninguém sabe exatamente quantas pessoas realmente morreram”, salienta Bonfim.

O Vioxx era um dos campeões de vendas no mundo, com mais de 80 milhões de consumidores. No Brasil, apenas alguns meses antes de ele ser retirado do mercado, a IstoÉ Dinheiro informava que o remédio havia acabado de “interromper 20 anos consecutivos de liderança do poderoso Cataflam, da Novartis”. Ainda segundo a matéria, ele custou US$1 bilhão para ser desenvolvido e rendia US$1,26 bilhão por ano. E, para constar: em 2007, a Merck aceitou pagar US$ 4,85 bilhões em indenizações, mas mesmo assim teve um lucro de US$ 3,3 bi naquele ano.

Um artigo publicado este mês no Indian Journal of Medical Ethics conta que, desde 1991, empresas farmacêuticas pagaram juntas US$ 35,7 bilhões em penalidades, só nos Estados Unidos. É mais do que qualquer outra indústria. E, o que é mais preocupante: quase nenhum executivo foi preso pelos crimes cometidos. Gøtzsche cita um sem número de exemplos desses pagamentos, que as empresas aceitam oferecer como partes de acordos para encerrar as investigações; ele ressalta que os valores são facilmente compensado pelos lucros, sendo vistos como despesas usuais de marketing.

Para muitos autores, uma das raízes das falhas do sistema está no fato de que a indústria exerce enorme influência sobre a própria pesquisa clínica. É que existem as agências reguladoras… Mas são as próprias empresas que conduzem os ensaios clínicos e, cada vez mais, também são elas que detém os resultados por meio de contratos. Parece confiável?

O longo caminho

A Interfarma nos informou que o setor farmacêutico é um dos que mais investe em pesquisa e desenvolvimento no mundo. “Para que um medicamento chegue aos pacientes, cerca de US$ 1 bilhão precisa ser dedicado aos estudos clínicos, no decorrer de 10 anos. Com o avanço dos medicamentos biológicos, essa média pode até dobrar”.

No entanto, isso é questionado por muitos autores. Em seu livro, Angell afirma que a parte mais demorada e arriscada – o estudo das doenças e moléculas e o desenvolvimento dos fármacos propriamente dito – é em geral feita com recursos públicos, por universidades e centros de pesquisa. “No Brasil acontece da mesma forma”, concorda Bonfim.

Dirceu Greco também faz ponderações. De acordo com ele, as empresas colocam, sob a mesma rubrica, pesquisa e desenvolvimento, ensaios clínicos e de terminadas ações de marketing. “Então ninguém sabe o quanto é usado exatamente em cada área”, diz. Em relação a isso, Angell chega a afirmar que as empresas gastam duas vezes mais em propaganda do que em pesquisa. “Isso é importantíssimo, especialmente porque há um momento em que não há mais muitas novidades em termos de medicamentos. Um dos jeitos de ‘inovar’ é por meio da propaganda”, diz Greco.

Já durante os testes em seres humanos, os famosos ensaios clínicos, o investimento da indústria seria maior. E é com base nesses testes que os medicamentos são avaliados.

Fiquemos com o exemplo do Brasil. Para uma nova droga ser aprovada e registrada, precisa passar pela Gerência de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos (GEPEC) da Anvisa. Mas a análise é dividida em três partes – farmacotécnica, de eficácia e de segurança – e a Anvisa só é responsável pela farmacotécnica. Como informa o site da agência, isso “inclui a verificação de todas as etapas da fabricação do medicamento desde aquisição dos materiais, produção, controle de qualidade, liberação, estocagem, expedição de produtos terminados e os controles relacionados” e é feita quase sempre com técnicos próprios.

Já a eficácia e a segurança são testadas por consultores externos e a indústria financia a maior parte dos ensaios. A Anvisa disse ao Outra Saúde, por meio de sua assessoria de imprensa, que é a indústria quem realiza a maioria desses ensaios porque as empresas “têm o dever de mostrar às agências reguladoras a comprovação de segurança e eficácia de seus medicamentos” e que, “antes de os ensaios clínicos serem realizados eles são avaliados pelas agências reguladoras (no Brasil, pela Anvisa) e por comitês de ética.

Durante a realização da pesquisa, ainda é possível realizar inspeção em Boas Práticas Clínicas para verificar se os participantes daquela pesquisa estão sendo protegidos e se os dados obtidos por meio do ensaio têm credibilidade e precisão adequados”. Do lado das empresas, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) nos escreveu que esse processo garante um “parecer independente, com base em evidências científicas robustas”.

O ensaios clínicos se dão em quatro fases. Na primeira, um número reduzido de pessoas (entre 20 e 100) usa o medicamento e só é testada a segurança. Na segunda, que conta com de 100 a 300 pessoas, já se procura ver tanto a segurança quanto a maneira como a droga atua sobre a doença e o organismo. E então vem a fase 3, bem maior, com entre mil e cinco mil participantes distribuídos por vários países. Nela, pacientes com a doença a ser tratada recebem a medicação e os resultados são comparados com um grupo-controle, formado por pessoas que não o estão usando.

A quarta fase, também chamada de pós-marketing, acontece com o medicamento já aprovado e em circulação. “Quando se sai da fase 3, com cinco mil pessoas tomando a medicação, para de repente um milhão, começam a aparecer efeitos que não foram avaliados antes”, explica Greco. Então, nessa fase, são analisados os efeitos de longo prazo em uma população muito maior e, quando há muitos efeitos  nocivos, o medicamento é retirado do mercado. Segundo a Anvisa, isso acontece com cerca de um terço dos medicamentos no Brasil nos dois primeiros anos de comercialização. Depois de cinco anos, 50% deles têm o uso suspenso.

Trocando em miúdos, quem mede a eficácia e a segurança de drogas novas é quem mais tem interesse em que os resultados sejam ótimos, e não só no Brasil, mas no mundo todo. “Quando analisamos a fundo, vemos que o processo todo ainda está sob o comando da indústria. Esse é o grande desafio. Porque é claro que, apesar de sua propaganda, a indústria não leva em conta as necessidades dos pacientes em primeiro lugar”, resume Ruben. E é aí que entra a tal fabricação de evidências, mencionada por Joel Lexchin e vários outros autores.

Contra fatos não há argumentos?

Muitos estudos mostram que os ensaios financiados pela indústria têm mais resultados positivos do que aqueles com outras fontes de financiamento (como este e este). Lexchin dá um exemplo: em 2006, foram examinadas pesquisas que comparavam os antipsicóticos olanzapina e risperidona. Todos os testes financiados pela Eli Lilly, que produz a olanzapina, favoreceram esta droga. E, dos quatro financiados pela Janssen, fabricante do risperidona, três concluíram que esta era melhor.

Marcia Angell tem um caso ainda mais contundente. Uma pesquisa financiada por recursos públicos nos Estados Unidos acompanhou 42 mil pacientes durante oito anos para avaliar tratamentos contra hipertensão. Para surpresa geral, o mais eficaz não era nenhum dos remédios mais recentes da Pfizer, da AstraZeneca nem da Merck, mas um simples antidiurético, centenas de dólares mais barato que os outros, e com menos efeitos colaterais.

Alguns fatores ajudam a explicar isso: são os ‘vieses’ introduzidos de várias maneiras nas pesquisas. Eles são múltiplos, podem acontecer ao mesmo tempo, e José Ruben destaca: “Nem todo viés é sinônimo de fraude ou fruto dela. Mas pode ser”.

Ao longo de seus livros, Angell e Gøtzsche descrevem algumas possibilidades. Um dos erros vem do fato de que, na maior parte do mundo, testes podem comparar novos medicamentos a placebos (substâncias inertes), em vez de compará-los com outros que já tenham eficácia comprovada. E aí, como você pode imaginar, a chance de os novos se mostrarem melhores é imensa. Também é possível fazer a comparação entre o novo medicamento e um já conhecidamente eficaz, mas usado numa dose muito abaixo da recomendada. Ou, ainda, ministrar o remédio que se quer desfavorecer pela via errada (como oferecer, via comprimidos, um medicamento intravenoso).

Essa é uma polêmica antiga e, no Brasil, não são aceitos ensaios em que o controle seja feito com placebos – é preciso comparar os medicamentos novos com o melhor tratamento conhecido. Isso é ótimo, mas já faz um tempo que um projeto em tramitação no Congresso propõe, entre outras coisas, permitir que o placebo seja usado (leia mais sobre isso na outra parte desta reportagem: ‘Para onde vai a ética em pesquisa?).

Ensaio ou marketing?

Ambos os autores se referem a um tipo de fraude sempre presente na fase 4, que consiste realizar ensaios sem objetivos científicos, mas desenhados apenas para aumentar as vendas. As empresas recrutam médicos para prescreverem remédios aos seus pacientes, às vezes para usos não aprovados, e anotarem os resultados. Mas os médicos não precisam ser pesquisadores e não há muitas exigências – não é preciso ter grupo controle, o ensaio não precisa ser duplo-cego (duplo-cego é quando nem o paciente nem o médico sabem qual substância está sendo administrada a qual grupo).

Eles dizem que esta é uma fase de muito marketing. A estratégia envolve distribuir amostras grátis – que têm boas chances de ‘prender’ pacientes a drogas mais caras –, promover grandes encontros e congressos em que palestrantes (e participantes) falam bem do novo medicamento e ter contato cara-a-cara com médicos em clínicas e hospitais, por exemplo.

Lembra o caso do Vioxx? A mesma matéria da IstoÉ Dinheiro, já citada, conta parte da receita do seu sucesso no Brasil: “A Merck trabalhou direitinho para convencer os médicos das vantagens de seu produto sobre os da concorrência. No Brasil, mobilizou um pequeno exército de representantes de elite (todos com curso universitário e um terço com pós-graduação) para o corpo a corpo com os doutores. Alves [José Tadeu Alves, então presidente da subsidiária brasileira] não revela quanto gastou na operação, mas um singelo sorriso revela seu grau de satisfação: ‘Não tem mais volta. Os usuários estão migrando das drogas com formulação antiga para os produtos mais modernos’”.

Um viés importante é o da publicação seletiva, quando os resultados desfavoráveis ficam ocultos e apenas os favoráveis são publicados. É óbvio que a não publicação pode acontecer por diversas razões, muitas delas perfeitamente legítimas. “O estudo pode não ter sido concluído, o pesquisador pode considerá-lo irrelevante, o artigo pode não ter sido aceito nas revistas. Isso é normal. Mas ele pode não ser publicado porque o financiador assim não o quis”, aponta Ruben. “Aí a fraude pode prosperar”.

Também acontece, como diz Gøtzsche, o “disfarce” dos resultados negativos: às vezes eles até são publicados ao longo do artigo, mas a conclusão é escrita de forma a conduzir para uma interpretação positiva.

José Carvalheiro e Cristiane Quental dizem neste artigo, que os periódicos têm critérios diversos para aprovar artigos, levando os pesquisadores (que, naturalmente, querem e precisam publicar) a selecionar resultados de acordo com isso. Um enorme problema é que um dos interesses de muitos periódicos é agradar justamente à indústria, que também age sobre eles, encomendando “milhares de exemplares para distribuir aos médicos”. E muitos também têm espaços para publicidade.

Angell, que atuou, ela própria, por 20 anos na New England Journal of  Medicine, uma das revistas científicas mais conhecidas do mundo, também tem muitas críticas a essas publicações. E escreve que várias empresas aproveitam os ensaios da fase 4 para burlar a lei e promover seus medicamentos para usos não autorizados pelas agências reguladoras, mesmo sem provas da eficácia nesses casos. Como o marketing direto para esses usos é proibido, mas os médicos podem prescrever, as empresas dão jeitos de fazer com que artigos sobre novos usos baseados nos ensaios (como já vimos, muitas vezes de péssima qualidade) sejam publicados e que circulem bastante no meio médico. Elas também financiam congressos e pagam palestrantes para falarem sobre os ‘benefícios’ dos remédios nesses usos.

A autora dá como exemplo a história do Neurotin, autorizado em 1994 para ser usado em epilepsia caso outros medicamentos falhassem. Não dava muito lucro. Então a empresa patrocinou publicações, pagou pesquisadores para assinarem artigos (alguns sequer continham dados, só comentários favoráveis), levou “contatos médicos” aos consultórios para tirar dúvidas e patrocinou conferências. Resultado: as prescrições aumentaram espantosos 70%. E o Neurotin, antes pouco rentável, se tornou um grande êxito, rendendo US$ 2,7 bilhões em 2003 – 80% das prescrições eram para usos não autorizados, como transtornos bipolares, transtornos por estresse pós-traumático, insônia, síndrome de pernas irrequietas, calores da menopausa e dor de cabeça.

Um dos truques citados no caso Neurotin – usar pesquisadores para assinar artigos que, na verdade, foram escritos por trabalhadores da empresa – é relativamente conhecido no meio acadêmico, embora seja difícil de se comprovar (por razões óbvias).  Depois do escândalo da Merck com o Vioxx, foram revelados documentos apontando que a empresa também fez exatamente isso para ocultar os efeitos nocivos da droga.

Quem faz um bom resumo dos efeitos disso tudo é o editor do prestigioso Lancet, Richard Horton: “Grande parte da literatura científica, talvez a metade, pode simplesmente não ser verdadeira. Afirmada por estudos com amostras pequenas, efeitos minúsculos, análises exploratórias inválidas e conflitos de interesse, juntamente com uma obsessão por perseguir tendências da moda de importância duvidosa, a ciência deu uma guinada em direção à escuridão”, escreve ele.

De quem são os dados?

Cada vez mais, são da indústria. E isso certamente ajuda a explicar o fato de as pesquisas financiadas por ela publicarem mais resultados positivos. Gøtzsche conta que, em 2005, um levantamento mostrou que 80% das faculdades de medicina permitiram um acordo para ensaios concordando em dar a propriedade dos dados ao patrocinador. E 50% permitiram que o patrocinador apresentasse a redação dos resultados para a publicação – aos pesquisadores, caberia revisar e sugerir revisões. No livro, ele descreve vários casos impressionantes que vão desde demissões e ações judiciais até ameaças de morte quando pesquisadores tentaram publicizar desfechos ruins.

Isso quer dizer que, nesses casos, pesquisadores não deixam de publicar resultados negativos porque não querem, mas porque simplesmente não podem. “O problema é que a pesquisa clínica deveria se fazer de forma tão independente que um resultado negativo fosse considerado tão útil quanto o positivo”, analisa José Ruben, “porque, sob o aspecto científico, realmente é. Porém, à indústria, o resultado negativo não interessa. Um cientista independente que chegue a um resultado negativo não vai entrar em pânico por isso. Mas a indústria farmacêutica se move com essa intenção, quando há tanto dinheiro em jogo?”, questiona.

“Há tragédias por trás dos números”

Apesar de ser o caso mais notável de crime na indústria nos últimos tempos – tanto pelo número de mortes como por tudo o que os documentos revelados no processo trouxeram à tona – o do Vioxx não é o único. A questão é que, como escreve Gøtzsche, “há tragédias reais por trás dos números”. E, quando a tragédia é anunciada, o cenário se torna ainda mais sombrio. Depois que a Merck foi processada pelas complicações com o Vioxx, documentos mostraram que a empresa conhecia os riscos havia anos.

Ele narra também o caso do Paxil, antidepressivo da GSK cuja eficácia e segurança para uso em crianças e adolescentes foi garantida por um ensaio fraudulento. A fraude só foi descoberta quando a GSK foi processada… E então se soube que os estudos revelando a ineficácia haviam sido retidos. Pior ainda, entre os dados ocultados estava o fato de que “pelo menos oito crianças tornaram-se suicidas tomando Paxil, versus uma com placebo”. Entre 2001 e 2005, haviam sido feitas cinco milhões de prescrições por ano desse remédio para menores de idade. O autor também conta que a Eli Lilly excluiu 76 de 97 casos de suicídios com o Prozac (a fluoxetina, antidepressivo campeão de vendas) em um estudo de fase 4 que submeteu à FDA e, em 1999, a agência recebeu relatórios sobre mais de dois mil suicídios associados ao medicamento.

Será que terá?

Vários autores concordam que uma ação importante para impedir a fraude nas publicações – o que certamente melhoraria substancialmente a segurança – é exigir a publicação dos métodos e também de todos os resultados, sejam eles favoráveis à nova droga ou não. Além de evitar a publicação seletiva ou fraudulenta, isso daria transparência à relação com os participantes envolvidos.

Essa discussão já evoluiu bastante, da teoria à prática, nos últimos tempos. No ano 2000, dois grandes repositórios foram criados: o ClinicalTrials e o Current Controlled Trials. Sete anos depois, a Organização Mundial da Saúde (OMS) criou uma rede de registros chamada International Clinical Trials Registry Platform (ICTRP). Várias revistas importantes (no Brasil, é o caso de todos os periódicos indexados na LILACS e os disponíveis na SciELO) já exigem o registro como pré-requisito para aceitar manuscritos, uma iniciativa que começou com o International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE). E, no Brasil, a assessoria da Anvisa nos escreveu que desde 2015 é exigido que os ensaios realizados com objetivo de registro sejam publicados. O país já criou até sua própria base, o Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos.

No entanto, as coisas não são tão simples. “Do ponto de vista teórico é tudo muito claro mas, do ponto de vista prático, nem tanto. Porque sabemos que as conclusões dos resultados mudam quando são feitas por pessoas ligadas a laboratórios, então segue havendo um problema”, avalia Dirceu Greco.

Há outros. Marcia Angell escreve que, se precisasse escolher apenas uma mudança para melhorar a situação, ela mexeria no vespeiro do uso de placebo nas pesquisas. Isso permite que as empresas desenvolvam medicamentos muito semelhantes a outros já existentes, que inclusive às vezes têm piores resultados e mais efeitos colaterais, mas são aprovados – e patenteados – porque conseguiram se sair melhor do que nada nos ensaios.

Também como parte da solução, muitos periódicos pedem que os autores declarem, ao fim do próprio artigo, seus conflitos de interesses. mas essa é uma medida normalmente considerada ineficaz. “Quando se declara o conflito, ele não deixa de existir. Não é suficiente. Mas quando se vai a um evento em que o palestrante tenha conflitos declarados, pelo menos isso ajuda a evidenciar para as pessoas que aquela publicação tão boa que elas têm em mãos recebeu verbas da indústria sobre a qual está falando”, comenta Greco. Ele lembra também que, nos Estados Unidos, foi promulgado em 2014 o Sunshine Act, que obriga fabricantes a divulgarem em um site do governo os pagamentos feitos a médicos. Em Minas Gerais, o decreto 47.334, de dezembro do ano passado, tem o mesmo intuito.

“Algumas coisas podem ser óbvias, e algumas são mais simples de mudar, enquanto outras talvez sejam impossíveis. É complicado, não tem um jeito de se estar completamente protegido. Mas é possível colocar cada vez mais obstáculos para que a fraude não seja tão grosseira, e assim ao menos se diminuam um pouco os riscos”, analisa Dirceu Greco.

No Lancet, o médico Richard Horton criticou há pouco tempo o caminho que a própria academia tomou: “Parte do problema e que ninguém é incentivado a estar certo, em vez disso, cientistas são incentivados a serem produtivos e inovadores”, escreveu. O incentivo vem de um sistema acadêmico inteiro, mas, no caso da pesquisa de medicamentos, o que vem da indústria não pode deixar de ser considerado. Talvez por isso a solução nunca seja completa. Afinal, como lembra José Ruben Bonfim, o mundo dos negócios tem seus próprios valores: “Por acaso a indústria vai aplicar dinheiro pensando em perder?”

*O Outra Saúde entrou em contato com a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (Conep/CNS), mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.

As assessorias de imprensa da Anvisa e da Interfarma se posicionaram por e-mail, mas não responderam a todas as perguntas da reportagem. (Do OutraSaúde)

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