.Por Luís Fernando Praga.

Vejo gente preocupadíssima com a disseminação da pedofilia, com o nu e com toda essa imoralidade expressa nas obras de arte.

Fazem campanhas contra museus, ameaçam artistas e podam a liberdade de expressão. Defendem o rigor moral e punições severas para se acabar com essa perversidade dos crimes sexuais de quadros e instalações artísticas.

Como tenho duas filhas, prefiro o esclarecimento às punições vingativas e defendo as artes e a liberdade de expressão, os defensores da moral e dos bons costumes costumam argumentar comigo nos seguintes termos: “quero ver quando acontecer com a sua filha!”; então me olham com certo sorriso de desdém, na torcida para que aconteça mesmo alguma barbaridade com minhas filhas, pra eu aprender e para me provarem que estavam certos.

Os “anti-nu” condenam as mulheres que se vestem “indecentemente”, as que se interessam por sexo tanto quanto os homens e as que frequentam ambientes “inadequados”. Replicam salmos e versículos a fim de ameaçar, condenar e culpar a todos aqueles pecadores que “só merecem o inferno” (informação adquirida na infância e reforçada, a cada dia, através de seus parentes, pastores e padres).

Tais fatos me levam a constatar que vivemos num país em que as mentes foram, contínua e arduamente, trabalhadas para que ignorassem o óbvio e as estatísticas, para que se guiassem por dogmas, para que refutassem as evidências científicas e abraçassem, cegamente, as mais improváveis e incoerentes histórias religiosas.

Proclamar-se um moralista não faz ninguém ser mais confiável e não será porque você grita contra a pedofilia que eu vá considerar seguro deixar minha filha perto de você. Somos todos imperfeitos; logo, todo puritano é um falso puritano.

Pastores e padres, por exemplo, são responsáveis por milhares de casos de abuso sexual no mundo todo a cada ano; e, no Brasil, pastores e padres estupram crianças também, mesmo que tenham gritado: “Aleluia, irmão! Vá na paz do senhor!”, instantes atrás.

Eles se declaram contrários à erotização infantil, dizem abominar a pedofilia e pregam punições terríveis aos estupradores e pedófilos, depois vão lá e estupram.

Eles usam suas batinas e seus terninhos e não expõem seus corpos nus em cultos e missas para estimular o erotismo nas crianças, mas eles as seduzem e ameaçam, fazem carícias em partes íntimas do corpo das crianças e as estupram quando não há ninguém por perto.

Essa aberração já é, infelizmente, um fato corriqueiro que nos ronda a todos, bem de perto. Há dados científicos, psicanalíticos, históricos e estatísticos que demonstram essa casuística, mas esses líderes religiosos não gostam da ciência, não gostam que se fale sobre o tema com a profundidade necessária e dissuadem seus fiéis de se informarem por fontes não religiosas, aleluia!

Eles difundem exatamente o mesmo discurso moralista que metade Brasil difunde nas ruas e redes sociais.

Dessa forma, metade do Brasil, curiosamente a mesma metade que, há pouco mais de um ano, se colocou na condição de juiz e condenou gente sem provas, a mesma que se viu como exímia analista política e nos entregou Michel Temer, a escola sem história, a perda dos direitos trabalhistas, deputados comprados cada vez mais caros e 14 milhões de desempregados; essa metade é hoje uma massa furiosa de críticos de arte, odeia artistas, subestima a ciência, faz vistas grossas para as estatísticas e se cega para os fatos.

Metade do Brasil é contrária à educação sexual nas escolas, mas é favorável ao ensino religioso.

E pior: vivemos um panorama em que metade do Brasil retrocedeu à idade média e considera toda nudez uma tentação pecaminosa, não a toleram e não conseguem controlar seus impulsos primitivos diante do nu.

Como se não fôssemos todos nus…

Mas tem metade do Brasil que pode ver uma menina voltando da balada, de madrugada, sem pensar em estuprá-la. Tem uma metade do Brasil em que os pais agem com naturalidade diante da natural nudez e querem ver seus filhos livres e bem instruídos. Existe uma metade do Brasil que não estupraria uma mulher por ela estar embriagada ou inconsciente nem um homossexual “porque ele gosta é disso mesmo”… nem uma criança, porque é bonitinha e inocente.

Os moralistas podem ter dificuldade em assimilar, mas existem pessoas no Brasil aptas a se depararem com um corpo vulnerável, por mais que esteja nu ou vestido de forma “provocante”, e sequer cogitam a prática de uma violência sexual.

Há pessoas no Brasil que prezam pela liberdade do próximo e respeitam o corpo dos outros como desejam ter seus corpos respeitados.

Mas a outra metade do Brasil, por pura ignorância, passa sua mão machista na cabeça do criminoso e condena as vítimas.

Enquanto adotarmos “soluções” medievais, que não resolveram nada até hoje, não evoluiremos nessa questão. E… sim, a opressão e a censura são medidas medievais.

É terrível não enxergar que os verdadeiros responsáveis pelos estupros e pela violência sexual são os estupradores, não é a nudez, não é a roupa provocante, não são os lugares nem os horários inadequados, não é a fragilidade nem a suposta vadiagem das vítimas!

Os culpados pelos estupros são pessoas covardes e violentas, amparadas por um machismo sistêmico, misturadas e diluídas em nossas vidas comunitárias, muitas vezes pregadores da moral e acima de qualquer suspeita.

Artistas que pintam quadros “desavergonhados” apenas retratam e colocam em pauta a sexualidade humana, que é, muitas vezes, realmente chocante, como é chocante não haver disposição para se abordar o assunto de forma direta, como são chocantes a censura e o medo de que a discussão sobre o tema desagrade a Deus, mais que o ato em si.

É horrendo saber que, protegidos sob o manto nojento da cultura machista, pais continuam estuprando seus filhos e filhas, tios continuam estuprando seus sobrinhos e sobrinhas, avós continuam estuprando seus netos e netas. Vizinhos e amigos da família, até os muito religiosos, continuam estuprando nossas crianças, como padres e pastores estupram os filhos de seus fiéis, oh glória! Temos um estupro a cada 11 minutos no Brasil.

Com a pregação religiosa e o falso moralismo crescendo vertiginosamente nas rádios, TVs e em cada quarteirão de nossas cidades, o Brasil continua sendo um dos líderes mundiais em estupro e casamento infantil, os dízimos seguem engordando e o povo, emagrecendo.

Se você adotar o mesmo discurso moralizador dos líderes religiosos que também praticam estupros, você não ajudará a diminuir essa casuística, os responsáveis continuarão ocultos e você estará se tornando mais um hipócrita e, no mínimo, mais um suspeito.

Se você acredita que este assunto não deve ser abordado nas escolas para que as próximas gerações saibam se defender melhor que a nossa, se reage agressivamente à nudez e à beleza do corpo humano, se você erotiza tudo vê e se lhe causa desconforto o afeto entre as pessoas, talvez você seja uma pessoa perigosa que apenas não chegou às vias de fato com nenhuma criança… por enquanto.

São graves demais as sequelas pessoais e sociais que acumulamos ao longo de todos estes anos em que culpamos as vítimas; e é um péssimo indício ver tanta gente apegada ao equívoco, com medo de quebrar as velhas estruturas e adotar uma nova abordagem.

A maior arma da elite criminosa que controla o País é a ignorância do povo. Quanto mais ignorantes à disposição, maior o contingente de soldados manipulados para atuarem como juízes, analistas políticos, capatazes, carrascos e críticos de arte, sempre furiosos defensores da moral. Somos uma sociedade ignorante; por isso machista. Somos uma sociedade submissa ao machismo e, por isso, injusta. Somos uma sociedade injusta e, por isso retrógrada e conservadora, mergulhada numa sórdida inversão de valores.

Temos mais de 45.000 estupros por ano e milhões de “puritanos” furiosos culpando as artes plásticas… depois vão estuprar mais alguém, que já se passaram 11 minutos.

Bandidos gritam que são bons e honestos para continuarem sendo bandidos com cara de inocentes. Para poderem gritar tão alto que qualquer ignorante ouça e engula, eles dominam a mídia e as igrejas. As vítimas são caluniadas e difamadas nos templos e em rede nacional (e isso não fica só na questão sexual: a sacanagem política segue a mesma regra) e enfrentam uma vida de privações e opressão.

É muito duro dizer isso, mas tenho duas filhas que correm risco de serem estupradas por vivermos num país machista, falso moralista e recordista em estupros. Protejo minhas filhas estando aberto ao diálogo, com amor do meu abraço, com a educação, com a clareza dos fatos, com ciência e consciência.

Todavia, só haverá segurança para minhas filhas quando a segurança chegar aos filhos de todos, e nenhuma proteção será mais efetiva que uma sociedade culta, evoluída, onde as pessoas se respeitem sem distinção.

Não é feio nem errado se falar abertamente sobre a realidade, o feio é o estupro e o errado é o estuprador. O errado é se omitir, se entregar à ignorância e deixar que filhos de budistas, evangélicos, ateus, espíritas, católicos, filhos de todos nós, continuem sendo vítimas do estupro e pagando para viver nessa sociedade violenta.

Defendo a naturalização do debate e o pleno esclarecimento de adultos e crianças. Tenho vergonha do discurso moralista e quero distância do discurso de ódio.

Então, se você prefere deixar o assunto nas mãos de deus e que eu modere meu palavreado, se prefere que não se fale nada a respeito dessa chaga, que a ciência não se intrometa e que o corpo humanos continue sendo visto como algo pecaminoso, se você prefere praguejar contra a arte e os artistas, é bom que você saiba: minhas filhas já foram alertadas sobre pessoas como você e sobre o perigo que vocês representam.