.Por Ricardo Pereira.
As questões de gênero estão na ordem do dia por mais que os conservadores queiram impedir seu debate utilizando todos os meios possíveis, embora seja a censura – que sempre revela a ausência de argumentos dos que a ela recorrem – o dispositivo preferido.
Alguns exemplos recentes confirmam esta estratégia: o cancelamento da exposição Queermuseu pelo Santander Cultural, na cidade de Porto Alegre (RS), cedendo às violentas pressões de entidades de direita como o Movimento Brasil Livre, cada vez mais de extrema-direita; a suspensão, por decisão judicial (o que é ainda mais grave) da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” motivada pela presença de um transexual no papel de Jesus; e a decisão de um juiz do Distrito Federal que conferiu a homossexualidade o status de doença contrariando, inclusive, a posição da Organização Mundial de Saúde. Sem contar, claro, o avanço do Projeto de Lei “Escola Sem Partido” em vários municípios do país, com Campinas, infelizmente, sendo um deles.
Sob a sombra destes episódios obscurantistas estreia no país o chileno “Uma Mulher Fantástica”, sensação do último Festival de Berlim, do qual saiu com o Prêmio de Melhor Roteiro. É uma estreia tímida, em poucas salas (em Campinas, apenas no Top Cineplex do Prado Boulevard, numa única sessão ao dia, às 21h), como costuma acontecer com os filmes que precisam realmente ser vistos pelo público. O próprio mercado exibidor, de certa forma, pratica sua censura, aqui não necessariamente homofóbica ou transfóbico, como nos exemplos dados acima, mas estética.
Como esta pequena introdução de alguma forma já sugeriu, “Uma Mulher Fantástica” é mais uma contribuição do cinema para o debate de gênero. Digo “mais uma contribuição” porque o cinema há muito vem retratando a difícil inserção numa sociedade pouco receptiva a questionamentos daquelas pessoas que não se encaixam nas caixinhas que os frágeis conceitos de “homem” e “mulher” impõem aos nossos corpos. Mas quem se encaixa?
A novidade nos últimos anos, a meu ver, é que se historicamente estes temas estavam confinados aos filmes independentes realizados de forma militante e que dialogavam basicamente com os já iniciados, começa a ganhar espaço dentre produções que visam atingir um público maior, muitas vezes distante desta questão, como foi o caso de “A Garota Dinamarquesa”. É verdade que o estilo “quadrado demais” do diretor Tom Hooper prejudicava o filme, mas este, como nenhum outro até então, alcançou as salas comerciais, antes alienadas a esta temática.
Se no discurso dos que não aceitam a transexualidade (ou mesmo a homossexualidade) esta ainda aparece como uma aberração, algo que contraria a natureza ou a vontade divina (?), o cinema tem servido para combater este discurso que não é outra coisa que não preconceito, homofobia ou transfobia. É preciso registrar, no entanto, que o próprio cinema, muitas vezes, contribuiu de forma negativa, retratando os transexuais de forma caricatural ou até mesmo ameaçadora – como o serial killer de “O Silêncio dos Inocentes”.
É difícil encontrar o ponto certo no tratamento do tema, tanto que, às vezes, até filmes bem-intencionados não escapam às críticas dos próprios transexuais. Uma das soluções, parece-me, é envolvê-los na produção do filme como fez Sean Baker em “Tangerine”. O roteiro do seu filme foi desenvolvido em conjunto com as duas atrizes trans que o protagonizam. O resultado é um retrato bastante realista da dura vida de transexuais negras e profissionais do sexo da periferia de Los Angeles – realidade que Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor conheciam bem.
Com isto a possibilidade de se escapar aos clichês e estereótipos é maior, ainda que as experiências retratadas possam ser demasiado subjetivas, o que não me parece o caso deste “Uma Mulher Fantástica” porque, ainda, que o filme retrate um episódio muito específico a partir dele é possível explorar toda a incompreensão e preconceito de que são vítimas as pessoas trans.
No filme do chileno Sebastián Lelio acompanhamos a história de Marina, uma garçonete transexual e aspirante a cantora, que perde o namorado repentinamente, vítima de um aneurisma. A partir daí a personagem para se despedir do companheiro precisará lidar com a rejeição da família do falecido, um homem de meia-idade que abandonou um casamento convencional para assumir seu relacionamento com a garota; mas também das instituições oficiais que mais do que questionarem sua identidade parecem despreparadas para lidar com uma realidade que a cada dia mais se impõem.
Para o papel de Marina, o diretor chamou a atriz trans e cantora lírica Daniela Vega que entrega uma das melhores interpretações do ano. A película foi escolhida pelo Chile para representar o país na próxima edição do Oscar e Vega é candidatíssima a ser a primeira atriz trans indicada ao prêmio da Academia. Num filme em que a câmera praticamente não se descola de sua protagonista a escolha de Vega revela-se acertada não apenas porque atriz e personagem se identificam, mas pelo empoderamento que isto significa. Daniela Vega como Marina abre uma porta para atrizes e atores trans que não poderá mais ser fechada.
Em tempo: depois de uma semana em cartaz – nas condições acima apresentadas – “Uma Mulher Fantástica” deixou de ser exibido na cidade de Campinas, o que é lamentável.
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