.Por João Neves.

A mais ou menos um mês, entre julho e agosto de 2017 – se é que podemos datar esses ocorridos –, Marta e outras 5 amigas, vítimas da violência machista de cada dia, pegam em armas.

E, na acelerada Vila Antônio Nóbrega, começam os disparos. Primeiro maridos, depois genros e cunhados. Assustados com os atos de vingança, os poderes do Estado tentam, mais uma vez, provocar o aborto.

Contudo, as investidas contra as mulheres, desta vez, foram frutadas. Os policiais também foram mortos. As agentes, com suas 38, não perdoaram, se juntaram ao movimento e disparam sobre seus colegas fardados. Ninguém conseguiu parar, até o momento, o derrame de sangue.

O dono do popular e tradicional armazém da região em que se insurgiu a matança foi o último, pelo que contam os jornais, antes das ações tomarem proporções nacionais.

“Com os dedos, cavou um punhado de terra encheu a boca do morto.

– vamos, coma! Coma…você, que nos comia!

As injurias redobraram. Aquela terra enfiada na sua boca era o pão que ele tinha recusado a elas. Todas as mulheres queriam se vingar.

A Queimada disse:

– Vamos castrá-lo!

– Isso mesmo! Esse porco aprontou demais!

Mouquette tirou as calças dele, enquanto a Levaque levantava-lhe as pernas. E a Queimada abriu as pernas de Maigrat, pegou sua virilidade morta e começou a puxar; fez tanta força que seus braços estalaram.

– Consegui! Aqui está! – e a velha ria, triunfante.”

(CENAS DE: ZOLA, ÉMILE. Germinal, 1885. – Não sou o único culpado em pensar nossa morte!)

Dado o acontecimento, – isso já era, se não me foge a memória, meados de agosto – os bem conhecidos homens engravatados e bem vestidos dos jornais televisivos ficaram responsáveis por noticiar os fatos. Em horário nobre vimos a fálica falácia sendo interrompida por tiros certeiros. Maju e demais colegas também estavam cansadas de Williamm e cia limitada. Apesar do medo, vi beleza no ato. O sangue caiando sobre a mesa do Jornal Nacional. As vozes feminas tomaram conta do rolê.

Desde então estou atordoado com a celeuma disparada por nós, homens que ainda estamos vivos, nas páginas do livro de faces. Os que permanecem não querem morrer, nem deixar o trono. Hoje, desde do cantar dos primeiros pássaros, leio os textos denunciando o milésimo homicídio de homens – hétero, macho alfa, misógino, sexistas que somos – perpetrado por mãos femininas. Por fim a mesa virou amigos! As estatísticas apresentadas giram para outro lado. No começo da semana já haviam sido mortos mais de 5000 homens e no decorrer dos dias, até o último momento que rolava o feed, outros milhares foram mandados para o inferno pelas mulheres. Os bolsomitas já não existem mais… Machistas e misóginos estão com os segundos contados. Uma cultura filógina talvez exija a morte…É necessário, à muito, a castração da epistemologia falocêntrica. A qualquer momento posso ser o próximo.

O relógio anota as 2 da madrugada. Elas chegaram a meu quarto. Imploro para que me deixem fazer um último pedido

– Durante o ritual de minha morte, por favor, faça-o ao som deste disco! Quero que a última parte do que me forma, ouça, em alto e bom som, as pulsões dessas canções…

* * *

Seria no mínimo empolgante ver meu cadafalso ritmado pelas composições de Letícia Novaes (compositora e musicista), Natália Carrera (mulher trans, guitarrista, sintetizadora), Arthur Braganti (teclado e sintetizadores), Thiago Rebello (baixo) e Lourenço Vasconcellos (bateria e percussões). TodXs dançariam LETRUX. Afinal, o disco do grupo serve, como indica o título, para noites de climão.

Imaginem só, próximo à morte, ouvir ecoar as seguintes frases:

“Que engraçado/ Sobrou tão pouco/ Que tragédia/ Foi tudo tanto/ Que engraçado/ Cê não tá louco/ Que tragédia/ Eu tô um pouco”

Os entoamentos iniciais já mostram quanto o restante da obra pode render. Sintetizadores, teclados, guitarras e baterias nos lançam à subjetividade e as angustias do universo feminino. Amor, ódio, sexo, sonhos e solidão se entrecruzam entre as melodias programadas nas composições do disco. Tudo, música e poesia, faz um grande estrago em nossos corpos disciplinados. Há momentos psicoativantes, imersões inconscientes conduzidas por sintetizadores sonoros que plasmam um ambiente intrasubjetivo.

Talvez ainda contaminado por textos passados ou por minhas pesquisas, vejo o punk ressoando nas linhas que montam esse trabalho. Como em Selvatica de Karina Burh, a produção dXs Letrux está contaminado pela estética punk. A capa montada com colagens e letras tortuosas, sob um vermelho vibrante, lembra, e muito, uma das primeiras coletâneas de punk no Brasil. O LP Sub de 1983, quetambém lançava mão das mesmas cores e propostas estéticas para, de início, no primeiro contato com o disco, sentirmos as agonias pulsarem. O desejo punk – (re)composto por revolta e ressentimento – em Letrux ganha forma nos compassos dançantes das canções e se evidencia com maior força no momento do interlúdio. – São sublimes os entoamentos dessas palavras…

YO NO CREO EN BRUJA, PERO LO SE QUE YO SOY UNA. CUANDO NO ME LLAMAS, PIENSO QUE ESTAS MUERTO, UN MUERTO MUY LOCO. VOY A JUGAR CON TU CUERPO, PIERNAS, BOCAS, NARIZ, MANOS, DEDOS, PIES, OREJAS. MUCHO GUSTO CUERPO, ENCANTADA CUERPO. MUCHO GUSTO CUERPO, ENCANTADA CUERPO. YO DENTRO DE MI MADRE, MI MADRE DENTRO DE MI ABUELA, MI ABUELA DENTRO DE SU MADRE, DENTRO, DENTRO, DENTRO, DENTRO, DENTRO, DENTRO, DENTRO, DENTRO…

Sem fôlego voltamos a dançar. Este disco noturno nos ambienta, como quer a protagonistas da obra, em nossos delírios para sobreviver. “Climão tem a ideia de nebuloso, sem nitidez. Mas é que nem quando se abre o olho dentro d’água. É embaçado, mas pode se ver beleza. Ou um tubarão”¹

Se as brincadeiras propostas por Letícia Novaes em Letuce envolveram muitXs, com Letrux, ressoando os jogos femininos, a cantora mostra que diversão continua.

Por fim, Tatuemos em nossas pernas que elas não vou passar batido!

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.