A campanha salarial das universidades públicas paulistas:
do déjà vu à solucionática

Por Renato Dagnino

Talvez os colegas mais jovens não saibam da culposa sensação de déjà vu que assalta os mais velhos quando vemos se aproximar a campanha salarial nas universidades públicas paulistas.
Há quase 40 anos estamos falhando ao tentar melhorar nossas condições de trabalho e defender nosso salário.

O que segue é uma mea-culpa que fraternalmente analisa a “problemática” para convidar à concepção de uma “solucionática” que aponte para cursos de ação mais eficientes para nós, eficazes para nossas universidades e efetivos para a sociedade.

Intencionalmente ou não, nosso foco tem sido convencer os que poderiam usar seu poder político e econômico para tanto da importância do que fazemos.

Inadvertidamente, nos temos orientado na direção de um conhecimento enviesado para aumentar a competitividade de suas empresas e a chance de seus filhos conquistarem bons empregos.

Espelhando-nos em nossos pares “do norte”, temos privilegiado uma agenda de ensino e pesquisa motorizada pela dinâmica de exploração da fronteira de conhecimento tecnocientífico traçada pelas multinacionais.

Na expectativa que os profissionais que formamos – tão bons como os melhores de lá – venham a contribuir para que a competitividade se reverta em bem-estar para todos – como pensamos que tendencialmente ocorre – temos trabalhado muito e alcançado resultados que, haja vista os obstáculos, devem nos orgulhar.

Temos pautado nossa ação pelos quatro requisitos exigidos pelo comportamento que, por considerar que é o único verdadeiramente científico e legítimo, resolvemos emular.

O do cientificismo, requerido para que possamos acompanhar aquela dinâmica de exploração da fronteira de conhecimento; o do produtivismo, para assegurar que todos nós nos envolvamos com ela numa intensidade semelhante àquela dos nossos pares “do norte”; a do inovacionismo, para que nosso potencial de conhecimento gerador de riqueza sirva às empresas inovadoras/competitivas que idealmente a distribuem; e a do empreendedorismo, para que os filhos dos ricos e os pobres que crescentemente recebemos possam se inserir na jobless and jobloss growth economy em que estamos. E que tentem “empreender” sua própria mais-valia combinando-a, numa relação social de produção que aparece mais justa pela emergência da persona dupla e dúbia de detentor da força de trabalho e dos meios de produção, com o capital intelectual que nós ajudamos a empilhar.

Nem os “inexatos”, que fará os “desumanos” – como caricatamente nos desprezamos mutuamente (rs…) -, têm desenvolvido a capacidade de entender criticamente aquela dinâmica. Os primeiros, por ela escapar do seu foco social costumeiro, olham-na quase ofuscados e a consideram endogenamente determinada. Os segundos, por ela absorvê-los até quase à alienação, ficam obcecados pela sua aparente beleza, universalidade, neutralidade e confiabilidade.

Não percebemos que a dinâmica tecnocientífica global (ou das empresas globais) que perseguimos mediante os critérios que adotamos, embora se apresente como intrinsecamente verdadeira e sadia, se encontra “contaminada” com cinco vírus.

O da deterioração programada faz que nossa lava-roupa estrague no seu 366o dia de uso; o da obsolescência planejada, que torna o preço da nova, com suas inúmeras e variadas “vantagens”, uma pechincha (mesmo que o sistema financeiro faça com que custe o dobro!); o do desempenho ilusório, que nos faculta uma higienização ampliada por uma gama de arranjos matemáticos que decidem e operam velocidades e temperaturas de circulação de fluidos (água – potável e suja -, sabão, amaciante, ar) para nos proporcionar uma vestimenta impecável; além, é claro, de nos proporcionar uma adaptação flecha-tomada (com dois pinos excessivamente gordos e um neutro que inexiste por essas plagas!), absolutamente segura; o do consumismo exacerbado, que, como no caso dos vírus anteriores, engatilha atividades intensivas no conhecimento que, diretamente ou pela via dos nossos alunos, temos sem sucesso oferecido a quem pensamos que dele se deveria beneficiar; o da degradação socioambiental, que, por assinalar a insustentabilidade do que fazemos, nos assusta cada vez mais.

Tampouco percebemos que os requisitos que nos auto-impusemos, e os vírus de que padece a dinâmica tecnocientífica global, nos aproximava daqueles que, por serem achegados, pensávamos que iriam usar seu poder político e econômico para viabilizar as atividades a que, de corpo, mente e alma nos entregávamos.

Intencionalmente ou não, de modo incremental, pouco refletido, por agregação ou por default se foi consolidando uma política de alianças que excluía aqueles que, paradoxalmente, a maioria de nós queria incluir.

E que nosso compromisso com os pobres, que com seu imposto “bancam” a nossa entrega, se resumia a trilhar o caminho da excelência. O qual, vale ressaltar, raramente percebemos como autoreferenciado; ou imposto por uma lógica estranha aos nossos propósitos ou ao que merece o conjunto de nossa sociedade.

Embora soubéssemos que aquilo que a cada ano temos que pleitear depende diretamente do trabalho dos mais pobres (e indiretamente também!), muito pouca atenção temos dado a eles.

Pelo contrário, reforçando aquele paradoxo, quando paralisamos para nos fazer ouvir pelos poderosos, é o povo, que só sabe de nossa existência porque onde trabalhamos há um hospital, que também paradoxalmente é o único que tenta manter a sua saúde, a quem penalizamos.

Como escrevi no início, meu propósito aqui foi analisar a “problemática”. Espero que tenha conseguido motivar o colega que me lê a construir uma “solucionática” que, quando mais não seja, afaste o espectro da “oessipicização” que ameaçadoramente circunvoluteia. (Do GGN)

Renato Dagnino é professor titular da Unicamp.