Me desculpe, Haddad, mas o senhor não entendeu nada de Junho de 2013
Por Guilherme Kranz
Nem charmosa, nem neoanarquista, nem antiestatal, nem estopim de golpe nenhum… Junho foi a explosão do povão na rua, revolta do vinagre, nada a ver com o vinagrete uspiano, foi a “patuleia” do tipo que governante mais teme: enraivecida e com razão.
Em cada lugar foi diferente, com suas peculiaridades, mas em geral foi extremamente progressista. Para quem viveu de perto tudo isso sacou: eram milhares de jovens secundaristas, universitários, os “nem-nem”, trabalhadores de todos os cantos, centenas de operadores de telemarketing que saíam da Contax e da Atento no centro pra se juntar às organizações, horizontais e leninistas (nenhum MBL, nenhuma CIA), que gritavam contra a passagem cara e a polícia.
Era um pouco do novo irrompendo no velho. Tinha ares de revolução. No Centro e na Paulista era o povão, estudante e trabalhador dispersos, recém saído da sala de aula ou do trabalho e putos com o preço do feijão. Foi o disparo de uma fúria há muito tempo contida. Teve classe média? Teve. Teve trabalhador? Ô se teve… teve Junho na e da periferia! O gigante acordou. Sem rumo claro, sem direção, com muitas contradições, mas com reivindicações substantivas, que iam muito além dos 20 centavos e se enfrentava contra todo tipo de mentira e ilusão.
Era por educação, por saúde, por todas as promessas nunca cumpridas por tantos e tantos governantes. Depois veio o sequestro midiático, e com ele a malta abobada do pato inflado, mas antes disso nós batemos o Datena ao vivo e apanhamos muito da polícia, erguemos nossas bandeiras vermelhas e fizemos história. A verdade é que quem não entende o que ocorreu naquele mês de 2013 não governa nunca mais. Pode tentar, mas está mais perdido que o Aécio em delação. É isso o que vem ocorrendo com basicamente todos os políticos tradicionais desde então, e foi bem isso o que ocorreu com ex-prefeito de São Paulo. Me desculpe, Haddad, mas o senhor não entendeu nada de Junho de 2013. (Nota da IHU On-Line: o autor do texto refere-se ao artigo de Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo – PT, analisando Junho de 2013. Para ler a integra do texto clique aqui).
A confluência entre alta dos preços (que ora estava “controlada”, segundo Haddad, ora “atingia 17% acumulada”…), escândalos nacionais que iam de Belo Monte até a comissão de direitos humanos do Marco Feliciano, as alianças espúrias do PT com a direita mais reacionária e nojenta do país, a violência policial nas periferias e os Amarildos surgindo a todo momento, um abismo crescente entre a participação popular e a política, a casta política enlameada em corrupção… tudo isso explica um pouco do que foi aquilo que o ex-prefeito de São Paulo caracterizou grosseiramente como o “estopim do impeachment”. E tudo ocorreu em meio a uma das maiores crises capitalistas da história chegando com peso no país.
A lista de razões para Junho eclodir é imensa, assim como a lista de erros do PT. Haddad não consegue entender Junho porque Junho se enfrentou contra todo o establishment, o que incluía o seu partido. O petismo não consegue compreender um movimento de massas que sai de seu controle e que questiona as bases de seu fundamento, calcados justamente nesse regime político que vem apodrecendo. A lógica deles é binária e simples: “se sai de nosso controle, é de direita”.
E com essa lógica vem as interpretações mais variadas e pitorescas, como a da filósofa Marilena Chauí, onde ela comparava as marchas de Junho com as filas do show da Madonna – a classe média “imbecil” que padece da insatisfação crônica, incurável e fascistizante. Acontece que o mundo não é bem como os petistas gostariam que fosse e as razões de Junho estão menos na imbecilização do povo do que na completa degradação da nossa sociedade capitalista e do nosso regime político que o PT, PSDB, PMDB e tantos outros partidos tentam resguardar.
Pois vamos lá. Haddad justifica Junho por basicamente três razões: o medo histórico da classe média em se proletarizar, a violência policial tucana e uma combinação entre espontaneísmo potencializado pela internet e ascensão de grupos de extrema direita, como MBL. Em síntese é isso.
Primeiro, o MBL só é criado em 2014. Nenhum desses grupos de jovens neoliberais existia na época. Se alguém me provar financiamento das fundações Koch e OpenSociety’s da vida a algum grupo de 2013 estou apto a rever meus argumentos, caso contrário não. O espontaneísmo é justamente uma das marcas de valor do movimento, que se viu expresso posteriormente nas ocupações secundaristas e universitárias de 2015 e 2016, e não no filé mignon da Fiesp e dos carros de som do PMDB e PSDB.
A violência policial, por sua vez, não é patrimônio exclusivo dos tucanos, como sugere Haddad. Para além de colecionar verdadeiros campos de concentração em Belo Monte e Jirau, o governo do PT reprimiu muito Junho, em São Paulo com Haddad (apesar dele fazer corpo mole) e em Porto Alegre com direito a Tarso Genro chamar os manifestantes de “fascistas”. Sempre válido lembrar que a GLO, recentemente ativada por Temer em Brasília contra os manifestantes, é filha da Dilma e não dos golpistas. Inclusive uma das marcas de Junho foi se enfrentar com a violência policial, não só a dos protestos democráticos, mas também, e sobretudo, com a violência policial na periferia que assassina milhares de pessoas todos os anos, em sua grande maioria negros.
E sobre o medo da classe média, o que Haddad fez no texto foi deliberadamente confundir as manifestações golpistas com as manifestações de Junho de 2013, a base social do golpe com a base social de Junho. Ele iguala uma a outra, como se uma fosse continuação da outra, mesmo com composição social radicalmente distinta, bandeiras reivindicatórias radicalmente distintas, organizações de cunho político-ideológico opostas, cor diferente, idade diferente… tudo é radicalmente distinto! Ou alguém acha que quem vota na enquete do Brasil Urgente do Datena por mais vandalismo são os moradores de Higienopolis e Jardins? Mas é aquela coisa: se o PT não controla o movimento, é de direita.
Em referência a essa classe média, ele diz: “esse desconforto encontrou sua expressão possível pelo discurso da intolerância – contra pobres (Bolsa Família), pretos (cotas), mulheres (aborto), gays (kit) ou jovens (maioridade penal) –, que flertou com o fundamentalismo, violento ou religioso.” Pois onde estava esse povo em Junho? Se estivessem, era uma minoria insignificante e sem expressão de disputar de fato o rumo do movimento.
O problema central do texto do ex-prefeito de São Paulo é não reconhecer os enormes erros e traições cometidos pelo PT. Ao não fazer isso ele não compreende Junho e, pior, o impeachment. Culpa Junho pelo golpe mas se nega a olhar para si.
O fortalecimento da direita se deu a Junho ou a anos e anos governando com Renan Calheiros, Fernando Collor, Sarney, Eike Batista, Maluf, Katia Abreu, Henrique Meirelles, Marco Feliciano, Levy, Eduardo Cunha, Marcelo Odebrecht, Sergio Cabral, Silas Malafaia, Michel Temer? O fortalecimento das mídias golpistas, como a Globo, se deu por conta de Junho ou ao financiamento bilionário que os governos petistas fizeram ao longo de anos? Será que hoje o judiciário vem se tornando todo-poderoso por conta de Junho ou pelo fortalecimento e autonomia dados a esse poder durante os governos do PT?
Será que o poder econômico que derrubou Dilma se fortaleceu por causa de Junho ou tem a ver com as políticas de favorecimento dos banqueiros e mega empresários levadas a cabo durante anos do PT? Quem abriu espaço à direita golpista, Junho ou o PT que governou com ela durante anos? A multiplicação da terceirização nos últimos anos é culpa de Junho ou do governo? A violência policial contra os negros nas periferias, Junho é culpado também? Ou ainda manteremos Rafael Braga, preso político de Junho que Haddad se silencia, na cadeia? Sobre essas questões, Haddad fala pouco e se esconde sob os auspícios do patrimonialismo brasileiro.
Não conheço tanto assim Faoro, nem sou simpático a weberianos ou a sujeitos que apoiaram o golpe militar de 1964 no início. Mas se a tese de Faoro pressupõe que a política no Brasil é comandada secularmente por castas burocráticas em benefício próprio, com lógica de compadrio e de sesmaria, seria válido ver em Junho um rompimento com essa dimensão patrimonialista. O ‘encontro com o patrimonialismo brasileiro’, subtítulo do ensaio do prefeito, veio a calhar bem – o PT realmente cumpriu o papel de reproduzir a velha política com nova roupagem, habituado ao patrimonialismo e bem adestrado ao regime político atual. Quem rompe com isso é o extremo progressismo da política do povo na rua, do poder vindo de baixo irrompendo contra os de cima.
Não é de se espantar Haddad terminar o texto defendendo Lula 2018, para apaziguar os ânimos de revolta cada vez maiores. Enquanto o governo golpista aprova as reformas da previdência, trabalhista e os inúmeros ataques da agenda neoliberal, nós estaremos nas ruas, construindo a greve geral do dia 30 de Junho, carregando o espírito de 2013 no coração com a convicção de quem estava do lado certo naquele momento tão decisivo. São episódios como esses que a história nos prova. E nessa Haddad e o PT reprovaram, e reprovaram ao lado do conjunto da casta política.
Se há uma lição estratégica que temos que extrair de Junho é de que precisamos de organizações anticapitalistas fortes, que as nossas ferramentas em Junho não foram suficientes para canalizar por completo a revolta. Precisamos de força enraizada na classe trabalhadora e na juventude para conseguir dar vazão a essa revolta, que permanece muito forte entre a população, em direção a um projeto de fato revolucionário, que abale as estruturas dessa sociedade que vivemos, construa um governo da maioria e erga o novo.
Guilherme Kranz, militante do Coletivo às Ruas, em artigo publicado por Esquerda Diário, 09-06-2017, via IHU.